Há coisas que vejo no Facebook e que vou suportando para não gerar mal estar com pessoas pelas quais tenho consideração, mas confesso que tem ficado difícil. Algumas atitudes pedem um mínimo de reflexão e por isso tentarei fazer a minha. Encare como uma crítica estritamente construtiva.
Volto à grande polêmica brasileira do momento: o caso Marco Feliciano, sobre o qual já fiz uma postagem. Como a questão envolve religião - e religião é, provavelmente, a seara que mais deixa as pessoas furiosas e irracionais, o que torna tragicamente compreensível os milhões de cadáveres que a História já contabilizou por causa dela -, os ódios têm-se elevado a níveis superlativos. Em nome da empatia religiosa, muitas pessoas defendem Feliciano mas, não tendo a ousadia de vir a público dizer "sim, eu acho que gays e negros devem ser discriminados", a solução é desviar o verdadeiro foco da discussão. É importante corromper os fatos e impedir o debate esclarecido. Uma das formas de fazê-lo é desqualificar o adversário.
Recordo, uma vez mais, um dos livros mais úteis que já li: Como vencer um debate sem precisar ter razão: em 38 estratagemas (Dialética Erística), de Arthur Schopenhauer, definido pelos próprios editores como um "manual de patifaria intelectual". É o próprio Schopenhauer (1788-1860), célebre filósofo alemão cuja obra mais importante é O mundo como vontade e representação (1819), quem explica: "Dialética erística é a arte de discutir, mais precisamente a arte de discutir de modo a vencer, e isto per fas et per nefas (por meios lícitos ou ilícitos)" (em minha edição da Topbooks, Rio de Janeiro, 1997, transcrito da p. 95). E isto como decorrência da perversidade natural do gênero humano ou de sua vaidade congênita. Diz o autor: "se no fundo fôssemos honestos, em todo debate tentaríamos fazer a verdade aparecer, sem preocupar-nos com que ela estivesse conforme à opinião que sustentávamos no começo ou com a do outro" (p. 96).
Chega-se, assim, à primeira imagem que ilustra esta postagem. Ela mostra, segundo consta, um deboche público no qual homossexuais satirizam a paixão de Cristo. É o mote para a conclusão brilhante: esses, que desrespeitam os outros, exigem respeito, mas não o merecem. Por meio desse tortuoso raciocínio, o que se pretende na verdade é dizer que os homossexuais não devem ser respeitados, independentemente de suas ações, mas por si mesmos. Afirmo-o porque a imagem mostra duas pessoas e, ainda que admitindo que seja uma festa, um desfile, uma passeata, quantas pessoas tomaram parte da coisa? Quantos homossexuais realizaram ou avalizaram o escárnio? Quantos deles mereceriam censura, considerando a esmagadora maioria que não tomou parte de qualquer manifestação do gênero, talvez na vida inteira?
Quantos homossexuais simplesmente vivem as suas vidas e, hoje, ainda que poucos e a duras pequenas, conquistando alguns direitos, têm-se tornado mais visíveis (o que deve incomodar muitos!), limitam-se a fazer apenas e tão-somente o que fazem os heterossexuais: estudar, trabalhar, constituir família, ser cidadãos socialmente úteis, etc.? Acaso estes não merecem respeito?
Além do mais, mesmo que tenhamos as nossas preferências morais, agentes públicos não podem levá-las para o exercício de suas funções, de maneira absoluta. No caso, uma pessoa avessa ao pluralismo sexual ou étnico por motivos ideológicos, religiosos ou de outra ordem, uma vez titular de um mandato parlamentar, não pode deixar de agir no interesse dos grupos que pessoalmente repudia porque está jungido ao juramento que fez de respeitar a Constituição da República e esta afirma que o Brasil é um Estado pluralista. Goste ou não, assim que é.
Curiosamente, o que me deixou ainda mais irritado foi a segunda imagem. Nela, uma pseudocomparação entre o atual super-heroi da classe média brasileira (papel que já foi ocupado por Fernando Collor, em fins da década de 1980), o Ministro do STF Joaquim Barbosa, e o deputado federal Jean Wyllys, um dos principais protagonistas internos do esforço contra Feliciano. Wyllys se elegeu graças a uma agenda política em favor dos homossexuais e mais não faz do que ser coerente a ela. Mas é gay, então deve ser demonizado. E o que escolheram para fazê-lo? Sua "origem" no pior programa da TV brasileira (que, provavelmente, o cara que fez essa montagem assiste!).
Esta segunda imagem me irritou mais porque desvarios religiosos são esperados e previsíveis, mas aqui se apelou para a educação, minha área de trabalho, mas não exatamente por isso, e sim porque é o instrumento mais libertador que existe, aqui usado como ferramenta de emburrecimento. É a manipulação mais descarada dos fatos para, deliberadamente, colocar uma venda sobre os olhos alheios e impedir a lucidez.
A trajetória de vida de Joaquim Barbosa é das mais exemplares: negro, num país racista, nascido pobre, fez todos os esforços e conseguiu uma educação muito superior à da quase totalidade dos brasileiros, mesmo os nascidos ricos. Palmas para ele. Mas isso muda o quê, em relação a Wyllys? BBB à parte, Wyllys é jornalista com mestrado e professor universitário. Recebeu, em 2012, o Prêmio Congresso em Foco de melhor deputado federal do Brasil. Não é nenhum gênio, jamais venceu um Pulitzer, mas... é o avesso da educação, por acaso?
Não dá para argumentar nesse nível. Estas duas imagens foram copiadas hoje do Facebook, mas se eu tivesse tempo e paciência para procurar, encontraria muito mais. Schopenhauer, se tivesse vivido para ver o que os novos recursos de comunicação fizeram com o mundo, teria arrancado os cabelos para compor o seu pequeno e profundo manual de patifaria, que não deixou de ser atual. Logo ele, que acreditava no amor como meta da vida.
Termino com a pergunta que deveria conduzir todos nós: qual é mesmo, de verdade, o foco da discussão?
3 comentários:
Eu penso que o Cristo crucificado, colocado sobre as mesas de negociações e patifaria do Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiro é forma mais torpe e naturalizada de atentar contra o cristianismo. E por falar na Erística, o Cristo está lá, presente nas salas de audiências, onde o que menos se busca é a verdade. Dois gays pendurados sobre um madeiro vermelho só é um ícone de escarnecimento para quem decodifica o signo da cruz como algo santo e da homossexualidade como algo torpe, reificando o preconceito. Eu sou cristão e, sinceramente, sinto profunda amargura quando vejo atentados cotidianos ao Cristo, como as frases lapidares apostas em veículos populares ou de luxo, tão aceitas e absorvidas pela nossa vil indiferença ao signo: "foi Jesus quem me deu". Aí, sim, vejo afronta ao mais humilde de todos os homens que esta terra já abrigou. Veja, caro amigo, em uma sociedade aberta à interpretação, tudo é discurso e sempre é tempo de ouvir o outro, fazer concessões e auto-vigilância axiológica.
Amigo Yúdice,
Faz muito tempo que, pra mim, o seu blog ultrapassou a barreira do informativo e estimulador de boas coisas pra se ficar pensando.
Com muita frequência você escreve exatamente sobre assuntos que estão remoendo na minha cabeça e que me fazem perguntar se sou só eu que estou vendo as coisas sobre aquela ótica.
Felizmente você está aí pra me mostrar que eu sou normal (ou, se eu não for, tem pelo menos mais um anormal por perto).
Um abraço.
Impressionado com suas palavras, das 19h20. Vou repercuti-las. Grato.
André, que me lembre, este foi o elogio mais intenso que este bloguinho pessoal já recebeu. Se algum dia ele for referência de alguma coisa, e houver uma retrospectiva das reações de um público, estas tuas palavras estarão lá com certeza, em destaque. Agradeço reconhecido. Só não vou repercuti-las para não ser pernóstico!
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