domingo, 28 de abril de 2013

Uma nota "inocente" sobre um perigo incerto

Em 1936, uma grande área fora do espaço urbano de Belém foi adquirida pelo então Ministério da Guerra e  nela foi instalado o Campo de Souza, sede do 7º Regimento de Aviação. No ano seguinte, foi criado o Aeroclube do Pará, com a missão de formar pilotos civis, utilizando a área como aeródromo. Em agosto de 1976, o mesmo foi alçado à condição de aeroporto, aberto ao tráfego civil. Foi batizado de Aeroporto "Júlio Cézar", em alusão a Júlio Cézar Ribeiro de Souza (1843-1887), paraense de Acará, pioneiro dos estudos sobre dirigibilidade aérea. Em abril de 2010, o aeroporto passou a denominar-se "Aeroporto de Belém - Brigadeiro Protásio de Oliveira" e o nome de Júlio Cézar foi transferido para o Aeroporto Internacional de Val-de-Cans.

Em 77 anos de existência, ou pelo menos 37 anos como aeroporto civil, raros foram os acidentes ocorridos naquele campo. Eu mesmo me recordo de ter visto um pequeno avião caído de ponta-cabeça na pista da Av. Pedro Álvares Cabral, quando eu era adolescente. E na última sexta-feira houve a queda, com drásticas consequências para quem estava na aeronave, mas sem vítimas externas, p. ex. em solo. Sem dúvida houve diversos outros, mas de proporções pequenas o bastante para não nos recordarmos, nem ter havido nenhum resgate das notícias pela imprensa.

Mesmo assim, aquela conhecidas coluna de negócios publicou hoje a seguinte nota: "Voo. Risco permanente com o aeroporto Júlio César no coração da cidade."

Existe mesmo o aludido perigo? Sim, claro. A navegação aérea é uma atividade inerentemente perigosa. Não há como evitar, por isso se defende que os aeroportos sejam construídos longe das cidades. No caso do Brasil, o problema é sério, porque o crescimento desmesurado das cidades fez com que os aeroportos, originalmente distantes, acabassem englobados pelo fenômeno da conurbação urbana. Trata-se de um problema irreversível, porque com todas as deficiências de infraestrutura já existentes, não se justifica gastar bilhões e bilhões em transferências de sede, além de que isso seria um paliativo tolo: a cidade cresceria para os lados do novo aeroporto.

Eu me preocupo com o assunto, porque se um avião em pouso ou decolagem em Val-de-Cans despencasse, haveria alguma chance de cair em cima da minha casa ou da de minha mãe (lá seria até mais provável). Mas nem por isso vivemos com pânico de desastres aéreos. Eu, pelo menos, tenho prazer em ver os aviões passando. Então qual seria, afinal, o motivo do grande medo do colunista de negócios, expresso na nota acima?

Longe de mim ser leviano, mas é que desde 2009, quando a área daquele aeroporto foi reduzida para construção da Av. Brigadeiro Protásio, e também pela inauguração do Hangar Centro de Convenções da Amazônia (ou seja lá que nome ele tenha), toda aquela imensa gleba se tornou a menina dos olhos da especulação imobiliária. Foi quando se começou a debater sobre a possibilidade de mandar o aeroporto menor para outro lugar (cogitou-se acerca de Marituba e Mosqueiro) e construir, no local, um bairro novo, planejado. Prédios residenciais e comerciais surgiriam, no segundo caso formando o Complexo Hoteleiro do Hangar. Como na época ainda se contava que Belém seria sub-sede da Copa do Mundo, dizia-se que precisaríamos de hoteis, restaurantes e outros equipamentos, capazes de atender às inúmeras novas demandas.

Como a proposta sempre deve aparecer travestida de útil para o cidadão comum, falou-se que logradouros como a Marquês de Herval e a Pedro Miranda seriam prolongadas até a Júlio César, desafogando o trânsito, argumento que costuma chamar a atenção por estas bandas. O fato é que, se a ideia vingasse, a indústria da construção civil lucraria a rodo. Seria o mais importante empreendimento imobiliário da cidade. Mas o tempo passou, o assunto esfriou e tudo ficou como dantes. Até que um acidente aconteceu e, de repente, tirar o aeroporto de onde se encontra voltou a ser uma alternativa. Ou ao menos assim pensam os capitalistas e seus ardorosos defensores.

Em tempo, por maiores que fossem as manifestações nesse sentido, o Aeroporto de Congonhas continua exatamente no mesmo lugar e nem sequer houve a redução de seus usos ou do volume de tráfego, cogitadas por ocasião do trágico acidente com o voo 3054 da TAM, em julho de 2007, com 199 mortes. A tragédia foi particularmente emblemática porque a aeronave chegou a pousar, mas não parou. Se o aeroporto ficasse em outro lugar e possuísse uma pista mais longa, vidas teriam sido salvas, senão todas, ao menos as das vítimas em solo.

Nada mudou lá. Aqui mudaria por quê? Para vermos mais espigões emporcalhando a paisagem de Belém?

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Informações históricas: http://www.infraero.gov.br/index.php/br/aeroportos/para/aeroporto-de-belem-brigadeiro-protasio-de-oliveira.html

Sobre os nomes dos aeroportos de Belém: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2010/05/nomes-dos-aeroportos-de-belem.html

Sobre a possível mudança do aeroporto e suas implicações: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2008/11/o-aeroclube-de-belm.html (vale ler os links)

6 comentários:

Daniel Scortegagna disse...

O risco é real. Como ex-servidor da ANAC digo e repito: o risco é real. O risco se torna maior ainda pelo fato de que a ANAC foi reduzida a quase nada no estado do Pará. De uma gerência com mais de 45 servidores, entre civis e militares remanescentes do período em que FAB comandava a aviação civil, em 2008, para somente uns 4 ou 5, não me recordo agora,no ano de 2013. Tente achar o posto da ANAC no aeroporto internacional de Belém, Manaus, Natal, Santarém, Macapá, Florianópolis, Foz do Iguaçu... Todos estes aeroportos internacionais, frise-se, com homologação para grandes aeronaves e bem movimentados. Em alguns outros aeroportos ainda ficou um posto, mas meramente figurativo, pois na maioria não possuem servidores e sim terceirizados que recebem e protocolam documentos, reclamações e outras coisas. Você acha um posto da ANVISA nos aeroportos brasileiros com mais facilidade que um da ANAC, estranho não? O esvaziamento ocorreu pela política de centralização da agência no Rio, DF e SP, deixando o norte, nordeste e sul com quadros minguados de servidores e somente fiscalizações realizadas por amostragem, o que é muito pouco para um pais que tem o segundo maior número de aeroportos e pistas homologadas no mundo, perdendo apenas para os EUA. O número de incidentes e acidentes aeronáuticos cresceu vertiginosamente depois da debandada dos servidores para os três locais citados,e isto não ocorre a toa. Frise-se ainda que os servidores foram removidos de ofício, e muitos deles não queriam sair de suas cidades, o que fez com que a ANAC tivesse um alto número de desligamentos de servidores a pedido (eu me incluo neles). A fiscalização grossa agora é realizada como dados indicados pelas empresas aéreas, ou seja a empresa diz que fez manutenção preventiva, a ANAC acredita e pronto, tá feito. Mas, estamos no Brasil, sabemos como as coisas são por aqui... Abraços e parabéns pelo conteúdo!

Yúdice Andrade disse...

Agradeço por tuas informações abalizadas, Daniel, mas o meu texto começa admitindo que riscos existem, inerentes ao tipo de atividade. Posso admitir, também, que o risco aumente se não há fiscalização, o que é bastante óbvio. O que questiono na postagem são as razões obscuras do comentário. Questiono se não haveria a intenção de insuflar medo nas pessoas, para reforçar interesses capitalistas.
Fazer o povo acreditar que uma causa é sua, quando na verdade está apenas sendo usado como massa de manobra, é uma estratégia recorrente - e a imprensa adora se prestar a ela.
Basta pensar que o aeroporto de Val-de-Cans fica ali perto e, obviamente, representa um risco incomparavelmente maior. No entanto, nada foi dito a respeito. Por que a nota não se reportou aos riscos representados por dois aeroportos dentro da cidade, em vez de falar apenas daquele que interessa à especulação imobiliária?
Abraço.

Daniel Scortegagna disse...

Verdade, verdadeira!! Com certeza o risco no internacional é bem maior, até porque o ataque dele é em angulo mais favorável a desgraça. Quanto a questão da especulação, nem me toquei nos interesses escusos da notícia, uma vez que toda vez que me vem lembranças dos aeroportos e da ANAC me cego de raiva pelas barbaridades que vi lá dentro. Um abraço!

Yúdice Andrade disse...

Eu entendo, Daniel. Entendo as indignações, porque frequentemente me sinto assim em relação a certos assuntos. No final das contas, estamos mais de acordo do que parecia antes, não?

Anônimo disse...

Sou vizinha do aeroporto Julio Cesar. Desde os anos 80 escuto que irão fecha-lo e dar outra destinação à área. Já ouvi que seria centro administrativo, conjunto habitacional para funcionários públicos, parque ambiental, etc. Como sempre, nenhum momento a população interessada é consultada. Mas, desde quando vi, os diretores da Construtora que mais lança espigões em Belém fazendo uma vistoria no antigo hangar da Kovacs, eu amarelei. Portanto, devemos ficar atentos para qualquer manobra de privatização desse importante espaço , pois se ele for desativado, penso que deve virar uma área verde nos moldes do Bosque, como forma de compensar as futuras gerações pela depredação atual com as áreas verdes de Belem. Mira Santini

Yúdice Andrade disse...

Mira, dou-lhe inteira razão. Aquela é uma área da maior importância para esta cidade degradada. É a oportunidade que temos de manter uma gleba relativamente saudável, como toda boa metrópole deveria possuir.
Quando anunciaram o tal superparque ambiental, achei a ideia ótima, publiquei no blog, mas desconfiei do óbvio: não sairia do papel. Não saiu e, em vez daquela promessa, a mata foi rasgada para uma grande avenida, com amplos protestos populares. Era para ser apenas a avenida, mas aí veio o shopping e o tal bairro requintado Cidade Cristal. Vitória das empreiteiras.
Esse exemplo é uma prova cabal do modo como as coisas funcionam por aqui, confirmando que todo cuidado é pouco.