Hoje se completa um mês, apenas um mês que minha mãe deixou o hospital, após a sexta internação do ano. A mais grave de todas, que envolveu seis dias de UTI. Nunca estivemos tão perto de perdê-la. Toda a conjuntura foi tão estressante que parece ter abalado a minha capacidade de aferir o tempo. Sinto que faz muitos meses desde que ela recebeu alta. Meses e meses, como se fosse uma outra vida.
Acho que nem aconteceu tanta coisa nesse período, mas a sensação é de que aconteceu coisa demais. Tudo é estranho. De concreto e objetivo, temos uma rotina, na qual tentamos deixá-la o mais confortável possível. Nem sempre conseguimos, mas seguimos a convicção de que nada há a fazer senão lutar, insistir e cuidar.
E como já dito em postagem anterior, amar, amar e amar.
domingo, 30 de agosto de 2015
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Para onde caminhamos?
Semana passada, houve reunião de pais na escola de minha filha. Pelo tom da conversa, um item específico está incomodando bastante, porque se gastou a maior parte das duas horas e meia descrevendo comportamentos aversivos das crianças e, obviamente, de seus pais, nos quais se origina a anomalia. Concentro-me em um dos casos narrados.
Em uma das turmas existe um garoto que se comporta como um típico bully: dominante, arrogante, gosta de dar ordens e explorar os colegas, p. ex. exigindo que lhe comprem lanche, algo de que ele não precisa; faz apenas porque pode. A escola acionou a família e o pai compareceu. Apresentado o problema, o pai não ficou nem um pouco incomodado. Com a convicção própria dos canalhas, respondeu: "É o mundo cão, professora. Meu filho está aprendendo como as coisas são."
E assim fica tudo explicado: como a natureza não impede que sociopatas procriem, crianças chegam a famílias nas quais serão treinadas para realizar tudo que há de feio e indigno na humanidade, como se fosse algo bom e necessário.
Não sei como a educadora encerrou o atendimento, que se revelou um completo fiasco. Eu, se estivesse em seu lugar e tivesse condições (que, no caso concreto, existem) de tomar uma atitude desse tipo, recomendaria a esse ser abjeto que transferisse seu filho de escola por absoluta incompatibilidade entre os valores desta e os anseios particulares da família. São rumos de orientação inconciliáveis, então é melhor matricular a criança em uma escola mais adequada ao perfil (nem seria difícil encontrar uma, mesmo no down down down no high society).
E como eu sou eu, diria mais: Já que o senhor valoriza tanto o mundo cão, saiba que este possui outra regra importante, a do "com doido, doido e meio". Hoje, o senhor está satisfeito porque é o seu filho quem molesta terceiros. Mas dia chegará em que ele vai se chocar com alguém mais cínico e agressivo. Nesse dia, ele vai perder. Quando esse dia chegar, não me procure. Se ele for humilhado, roubado, espancado, não venha até a minha sala. Aqui, tudo que lhe direi é que esse é o mundo cão e que seu filho, que já aprendeu a agredir, agora precisa aprender a se defender.
E é isso. Estes são os valores da tradicional família brasileira em 2015. Não admira que protestos pela "democracia" e "moralidade" sejam marcados por lamentos sobre os militares não terem assassinado ainda mais pessoas durante a ditadura, que se quer de volta. O horror está vivo nas ruas porque é uma realidade dentro das casas. Honestamente, esse é um mundo em que não dá vontade de viver. Faço o meu papel e ensino a minha filha sobre a importância de ser decente e solidária. Mas não são justamente esses os primeiros a cair?
Em uma das turmas existe um garoto que se comporta como um típico bully: dominante, arrogante, gosta de dar ordens e explorar os colegas, p. ex. exigindo que lhe comprem lanche, algo de que ele não precisa; faz apenas porque pode. A escola acionou a família e o pai compareceu. Apresentado o problema, o pai não ficou nem um pouco incomodado. Com a convicção própria dos canalhas, respondeu: "É o mundo cão, professora. Meu filho está aprendendo como as coisas são."
E assim fica tudo explicado: como a natureza não impede que sociopatas procriem, crianças chegam a famílias nas quais serão treinadas para realizar tudo que há de feio e indigno na humanidade, como se fosse algo bom e necessário.
Não sei como a educadora encerrou o atendimento, que se revelou um completo fiasco. Eu, se estivesse em seu lugar e tivesse condições (que, no caso concreto, existem) de tomar uma atitude desse tipo, recomendaria a esse ser abjeto que transferisse seu filho de escola por absoluta incompatibilidade entre os valores desta e os anseios particulares da família. São rumos de orientação inconciliáveis, então é melhor matricular a criança em uma escola mais adequada ao perfil (nem seria difícil encontrar uma, mesmo no down down down no high society).
E como eu sou eu, diria mais: Já que o senhor valoriza tanto o mundo cão, saiba que este possui outra regra importante, a do "com doido, doido e meio". Hoje, o senhor está satisfeito porque é o seu filho quem molesta terceiros. Mas dia chegará em que ele vai se chocar com alguém mais cínico e agressivo. Nesse dia, ele vai perder. Quando esse dia chegar, não me procure. Se ele for humilhado, roubado, espancado, não venha até a minha sala. Aqui, tudo que lhe direi é que esse é o mundo cão e que seu filho, que já aprendeu a agredir, agora precisa aprender a se defender.
E é isso. Estes são os valores da tradicional família brasileira em 2015. Não admira que protestos pela "democracia" e "moralidade" sejam marcados por lamentos sobre os militares não terem assassinado ainda mais pessoas durante a ditadura, que se quer de volta. O horror está vivo nas ruas porque é uma realidade dentro das casas. Honestamente, esse é um mundo em que não dá vontade de viver. Faço o meu papel e ensino a minha filha sobre a importância de ser decente e solidária. Mas não são justamente esses os primeiros a cair?
domingo, 16 de agosto de 2015
Seria a rosa uma questão de aceitação?
Há dois meses, publiquei uma postagem na qual contei sobre estar lendo O pequeno príncipe para minha filha e, particularmente, como ela reagiu à passagem em que a raposa ensina ao principezinho o significado de cativar. Por razões variadas, ainda não terminei a leitura. Faltam poucas páginas, mas é justamente nelas que encontramos o clímax, quando o menino decide aceitar a oferta da cobra para retornar a seu planetinha e a sua rosa. Estou particularmente interessado em saber como Júlia lidará com o desfecho.
Ontem, fomos ao cinema para assistir à mais nova adaptação da obra imortal de Antoine de Saint-Exupéry. Desta vez, a saga do pequeno príncipe é contada em seus momentos cruciais, para servir de fio condutor à história pessoal de uma garotinha de 9 anos, cuja mãe é obcecada por sucesso (no caso, assegurar que a filha entre para a conceituada Werth Academy). O objetivo final dessa mulher é que a menina se torne "uma adulta maravilhosa" e, para isso, ela elabora um plano de vida, no qual estabelece o que a filha fará, literalmente, hora por hora de cada dia.
Na casa ao lado, porém, mora um homem que claramente é considerado amalucado e uma ameaça à vizinhança. Trata-se do "aviador", ou seja, a pessoa que viveu a estória narrada no livro, que caiu no deserto do Saara e passou uma semana em companhia de uma criança de cabelos dourados oriunda do Asteroide B-612, que vivia um dilema sobre como se relacionar com uma rosa que ele julgava única e que deixara para trás.
O aviador se queixa de que ninguém acredita em sua história, por isso ele conta a uma criança. Claro, os adultos são muito esquisitos e somente uma criança poderia enxergar a verdade. E essa verdade penetra na alma da menina e muda tudo. Aliás, muda não: transforma. Porque transformará também sua mãe e, consequentemente, toda a vida que ela conhece. Aqui, por sinal, vemos uma das decisões cênicas mais inteligentes da produção, ao fundir o universo do pequeno príncipe com os fantasmas interiores da menina, em uma eletrizante sequência completamente nova, em que ela e o príncipe, agora um rapaz fagocitado pelo sistema, tentam reencontrar a si mesmos.
A produção franco-americana The little prince, de 2015, é dirigida por Mark Osborne, um americano prestes a completar 45 anos que traz no breve currículo bobagens como Kung Fu Panda e Bob Esponja. O roteiro é de Irena Brignull (que escreveu o agradável e premiado Shakespeare apaixonado, vencedor de 7 Oscars) e de Bob Persichetti, que participou de diversas produções voltadas para crianças (Gato de Botas, Monstros vs. alienígenas, Planeta do tesouro, A nova onda do imperador, Fantasia 2000, Tarzan, Hércules, Mulan, O corcunda de Notre Dame e filmes da franquia Shrek).
O elenco de dubladores também impõe respeito, a começar pelo veterano Jeff Bridges (o aviador, no Brasil muito bem defendido pelo excelente Marcos Caruso). Ao lado de uma modesta Rachel McAdams (de filmes da franquia Sherlock Holmes e do seriado True detective, como a mãe), os nomes impressionam: Marion Cotillard (a atriz que ressuscitou Edith Piaf, como a rosa), James Franco (uma das vozes da raposa), Benício Del Toro (a cobra), Paul Giamatti (o professor), Vincent Cassell (a outra voz da raposa) e Ricky Gervais (o vaidoso).
Mas o que importa mesmo é a narrativa e a linguagem e, nisso, a equipe acertou em cheio. O filme é belíssimo, dividindo dois tipos de animação; um, mais naturalista, para contar a "vida real" da garotinha (encantador o detalhe dos dentes desiguais, porque ainda crescendo); outra, mais parecida com gravuras de um livro, para contar a saga do principezinho. E o roteiro é magnífico, capaz de mostrar o que afirmei na postagem supracitada: O pequeno príncipe é uma obra imortal "porque toca de imediato o coração, mesmo de uma criança, e produz um significado que pode ser levado para a vida real e se tornar parte do que somos".
Escutando os rumores ao meu lado, fiquei com a sensação de que O pequeno príncipe era, de fato, uma memória querida das pessoas ali reunidas para ver o filme, que levaram suas crianças para introduzi-las nesse mundo de encantamento, mas que é também um símbolo da dura tarefa de amadurecer, essa missão à qual não podemos escapar. O aviador é um idoso solitário, consciente de que seu tempo está chegando ao fim. A garotinha é uma menina que parece ter assimilado a insanidade materna de ser uma miniadulta perfeita, mas que traz em si a dor do abandono paterno e que reage com fúria ao perceber que o seu novo amigo também está prestes a partir.
Estamos diante, portanto, de um filme que fala sobre crescimento, em especial sobre a necessidade de lidar com as perdas, que virão inevitavelmente. E por tratar daquilo que diz respeito à vida de qualquer um de nós, emociona profundamente, do princípio ao fim. A moral da história que identifico ali é que não podemos mudar as coisas, mas podemos sobreviver a elas e seguir em frente. Aquilo que se perde não deixa de existir, porque subsiste em nossos corações. Se prestarmos muita atenção, talvez até possamos escutar sua risada ou sentir o seu perfume.
Tudo isso pode parecer um monte de clichês, mas estranhamente eu sinto que também é a mais pura verdade. Recomendo enfaticamente que vejam o filme, de coração aberto.
PS - A raposinha do filme é a coisa mais linda. Se vocês souberem onde posso comprar uma, por favor me informem!
O trailer do filme: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-178545/trailer-19543616/
Postagem elaborada com informações do IMDb.
Ontem, fomos ao cinema para assistir à mais nova adaptação da obra imortal de Antoine de Saint-Exupéry. Desta vez, a saga do pequeno príncipe é contada em seus momentos cruciais, para servir de fio condutor à história pessoal de uma garotinha de 9 anos, cuja mãe é obcecada por sucesso (no caso, assegurar que a filha entre para a conceituada Werth Academy). O objetivo final dessa mulher é que a menina se torne "uma adulta maravilhosa" e, para isso, ela elabora um plano de vida, no qual estabelece o que a filha fará, literalmente, hora por hora de cada dia.
Na casa ao lado, porém, mora um homem que claramente é considerado amalucado e uma ameaça à vizinhança. Trata-se do "aviador", ou seja, a pessoa que viveu a estória narrada no livro, que caiu no deserto do Saara e passou uma semana em companhia de uma criança de cabelos dourados oriunda do Asteroide B-612, que vivia um dilema sobre como se relacionar com uma rosa que ele julgava única e que deixara para trás.
O aviador se queixa de que ninguém acredita em sua história, por isso ele conta a uma criança. Claro, os adultos são muito esquisitos e somente uma criança poderia enxergar a verdade. E essa verdade penetra na alma da menina e muda tudo. Aliás, muda não: transforma. Porque transformará também sua mãe e, consequentemente, toda a vida que ela conhece. Aqui, por sinal, vemos uma das decisões cênicas mais inteligentes da produção, ao fundir o universo do pequeno príncipe com os fantasmas interiores da menina, em uma eletrizante sequência completamente nova, em que ela e o príncipe, agora um rapaz fagocitado pelo sistema, tentam reencontrar a si mesmos.
A produção franco-americana The little prince, de 2015, é dirigida por Mark Osborne, um americano prestes a completar 45 anos que traz no breve currículo bobagens como Kung Fu Panda e Bob Esponja. O roteiro é de Irena Brignull (que escreveu o agradável e premiado Shakespeare apaixonado, vencedor de 7 Oscars) e de Bob Persichetti, que participou de diversas produções voltadas para crianças (Gato de Botas, Monstros vs. alienígenas, Planeta do tesouro, A nova onda do imperador, Fantasia 2000, Tarzan, Hércules, Mulan, O corcunda de Notre Dame e filmes da franquia Shrek).
O elenco de dubladores também impõe respeito, a começar pelo veterano Jeff Bridges (o aviador, no Brasil muito bem defendido pelo excelente Marcos Caruso). Ao lado de uma modesta Rachel McAdams (de filmes da franquia Sherlock Holmes e do seriado True detective, como a mãe), os nomes impressionam: Marion Cotillard (a atriz que ressuscitou Edith Piaf, como a rosa), James Franco (uma das vozes da raposa), Benício Del Toro (a cobra), Paul Giamatti (o professor), Vincent Cassell (a outra voz da raposa) e Ricky Gervais (o vaidoso).
Mas o que importa mesmo é a narrativa e a linguagem e, nisso, a equipe acertou em cheio. O filme é belíssimo, dividindo dois tipos de animação; um, mais naturalista, para contar a "vida real" da garotinha (encantador o detalhe dos dentes desiguais, porque ainda crescendo); outra, mais parecida com gravuras de um livro, para contar a saga do principezinho. E o roteiro é magnífico, capaz de mostrar o que afirmei na postagem supracitada: O pequeno príncipe é uma obra imortal "porque toca de imediato o coração, mesmo de uma criança, e produz um significado que pode ser levado para a vida real e se tornar parte do que somos".
Escutando os rumores ao meu lado, fiquei com a sensação de que O pequeno príncipe era, de fato, uma memória querida das pessoas ali reunidas para ver o filme, que levaram suas crianças para introduzi-las nesse mundo de encantamento, mas que é também um símbolo da dura tarefa de amadurecer, essa missão à qual não podemos escapar. O aviador é um idoso solitário, consciente de que seu tempo está chegando ao fim. A garotinha é uma menina que parece ter assimilado a insanidade materna de ser uma miniadulta perfeita, mas que traz em si a dor do abandono paterno e que reage com fúria ao perceber que o seu novo amigo também está prestes a partir.
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É hora de partir. |
Estamos diante, portanto, de um filme que fala sobre crescimento, em especial sobre a necessidade de lidar com as perdas, que virão inevitavelmente. E por tratar daquilo que diz respeito à vida de qualquer um de nós, emociona profundamente, do princípio ao fim. A moral da história que identifico ali é que não podemos mudar as coisas, mas podemos sobreviver a elas e seguir em frente. Aquilo que se perde não deixa de existir, porque subsiste em nossos corações. Se prestarmos muita atenção, talvez até possamos escutar sua risada ou sentir o seu perfume.
Tudo isso pode parecer um monte de clichês, mas estranhamente eu sinto que também é a mais pura verdade. Recomendo enfaticamente que vejam o filme, de coração aberto.
PS - A raposinha do filme é a coisa mais linda. Se vocês souberem onde posso comprar uma, por favor me informem!
O trailer do filme: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-178545/trailer-19543616/
Postagem elaborada com informações do IMDb.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
terça-feira, 11 de agosto de 2015
De volta às origens
Por uma interessante coincidência, retorno na tarde de hoje ― dia da instituição dos cursos jurídicos no Brasil e dia do advogado ― a uma tarefa que marca o início de minha carreira docente.
Em 1999, participei de um processo seletivo para professor substituto do curso de Direito da Universidade Federal do Pará. Passei em segundo lugar, mas com muito orgulho de ter sido o único candidato a receber a nota máxima na prova didática, o que eu, aos 24 anos de pura inexperiência, interpretei como prova de minha vocação.
Aquela seleção fora para professor orientador do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), mas como esse serviço era vinculado ao Departamento de Direito Penal e Processual e faltavam professores para todos os lados, ganhei duas turmas de Penal I. Quase explodi de alegria com isso.Estava realizando o meu sonho.
Naquele mesmo ano, em setembro, fui contratado pelo CESUPA para lecionar Noções de Direito, Legislação e Ética para o curso de Tecnologia em Processamento de Dados. Quatro meses depois, recebi o convite para ser o primeiro professor de direito penal daquele curso então nascente. Naquele momento, éramos pouco professores e tínhamos a função de fazer um curso inteiro funcionar pela primeira vez, pois tudo era novidade, literalmente. Assim, eu também fui um dos fundadores do NPJ do CESUPA.
Em 2003, recebi o convite para trabalhar no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, o que me incompatibilizou com a advocacia e, por consequência, com a orientação no NPJ, já que eu não podia assinar peças nem fazer audiências.
Hoje, enfim, já tendo encerrado meu compromisso no TJE há 5 meses e retornado ao exercício da advocacia, voltarei também ao NPJ do CESUPA para um novo ciclo de orientação. Terei a oportunidade de conhecer turmas para as quais não dei aula, conviver um pouco mais com ex-alunos, ajudar de formas diferentes e, claro, aprender coisas que eu mesmo preciso saber, pela vivência dos casos que nos chegam e troca de experiências com os colegas e com os nossos alunos.
Estou feliz pela oportunidade de participar de mais um aspecto da formação acadêmica das novas gerações e, claro, pela lembrança do meu nome, o que representa mais uma carinhosa validação da instituição que me acolhe há quase 16 anos. Espero estar à altura da missão.
Em 1999, participei de um processo seletivo para professor substituto do curso de Direito da Universidade Federal do Pará. Passei em segundo lugar, mas com muito orgulho de ter sido o único candidato a receber a nota máxima na prova didática, o que eu, aos 24 anos de pura inexperiência, interpretei como prova de minha vocação.
Aquela seleção fora para professor orientador do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), mas como esse serviço era vinculado ao Departamento de Direito Penal e Processual e faltavam professores para todos os lados, ganhei duas turmas de Penal I. Quase explodi de alegria com isso.Estava realizando o meu sonho.
Naquele mesmo ano, em setembro, fui contratado pelo CESUPA para lecionar Noções de Direito, Legislação e Ética para o curso de Tecnologia em Processamento de Dados. Quatro meses depois, recebi o convite para ser o primeiro professor de direito penal daquele curso então nascente. Naquele momento, éramos pouco professores e tínhamos a função de fazer um curso inteiro funcionar pela primeira vez, pois tudo era novidade, literalmente. Assim, eu também fui um dos fundadores do NPJ do CESUPA.
Em 2003, recebi o convite para trabalhar no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, o que me incompatibilizou com a advocacia e, por consequência, com a orientação no NPJ, já que eu não podia assinar peças nem fazer audiências.
Hoje, enfim, já tendo encerrado meu compromisso no TJE há 5 meses e retornado ao exercício da advocacia, voltarei também ao NPJ do CESUPA para um novo ciclo de orientação. Terei a oportunidade de conhecer turmas para as quais não dei aula, conviver um pouco mais com ex-alunos, ajudar de formas diferentes e, claro, aprender coisas que eu mesmo preciso saber, pela vivência dos casos que nos chegam e troca de experiências com os colegas e com os nossos alunos.
Estou feliz pela oportunidade de participar de mais um aspecto da formação acadêmica das novas gerações e, claro, pela lembrança do meu nome, o que representa mais uma carinhosa validação da instituição que me acolhe há quase 16 anos. Espero estar à altura da missão.
domingo, 9 de agosto de 2015
Sintomático, não?
Chama a atenção que as últimas cinco postagens deste blog (seis, se contarmos esta), separadas por um período de quase dois meses, estejam todas sob a rubrica "pessoal". Só estou falando de mim e do meu entorno imediato. Parece que estou mesmo muito necessitado de retomar a terapia.
O primeiro dia dos pais
O título desta postagem provavelmente causaria estranheza a alguém ciente de que sou um homem de 40 anos, cujo pai vive e que tem uma filha de 7. Portanto, a matemática não bate. Como assim, primeiro dia dos pais?
O fato é que meu pai saiu de casa quando eu mal completara 3 anos de idade. E escolheu fazê-lo justamente no dia dos pais daquele ano de 1978. Cruel? Pois saiba que ele tomou uma decisão pior ainda: decidiu se separar não apenas da mulher, mas dos filhos também. Por incrível que pareça, muitos homens fazem isso, como pude constatar quando me tornei advogado. Durante meses, sequer soubemos do seu paradeiro e só conseguíamos algum contato indiretamente, através de minha avó paterna. Durante anos, ele se esforçou por não manter relações conosco, para estar livre em sua nova vida.
Em 1986, meu avô paterno teve um ataque cardíaco e morreu. Recordo-me de minha mãe tentando fazer meu pai ficar perto de mim (ou de nós; não me lembro da presença de meu irmão) durante o velório, mas ele me (nos) repelia. O fato é que o tempo passou e, suponho, a paternidade começou a ser ressignificada em seu coração. Aí ele ensaiou uma reaproximação, que não deu muito certo. Eu e meu irmão não estávamos disponíveis. Uma trajetória de vida como essa não acontece sem deixar muitos e graves danos.
O tempo seguiu seu curso e meu pai participou ocasionalmente de alguns momentos de nossas vidas, p. ex. de parte dos eventos de nossas formaturas. Não era uma pessoa presente, como se imagina que seria alguém da família. Sintomático que, por ocasião do meu casamento, ele estava junto a mim durante a cerimônia civil, quando a juíza - uma amiga muito querida - se referiu "aos pais" de Polyana e "à mãe" do Yúdice. Ela não sabia que eu tinha pai vivo e que ele estava lá! Anos antes, um colega de faculdade me perguntara se eu tinha pai, pois eu falava da família, mas nunca do meu pai.
Quando soubemos que Polyana estava grávida, eu telefonei para ele e contei que seria avô. Não fui a sua casa, todavia. Permiti que fosse avô de Júlia e foi uma escolha pessoal dele ser um avô distante, que aparece muito de vez em quando, geralmente em ocasiões festivas. Decidi que não o privaria de seus direitos.
E após vários anos telefonando em seu aniversário, mas nunca no dia dos pais, hoje ele veio almoçar conosco, em minha casa. A iniciativa foi de meu irmão, um sujeito bem mais espiritualizado do que eu. Alguém que se esforça mais por ser uma pessoa melhor. Nosso pai hesitou e precisou de um tempo para aceitar o convite. Mas aceitou, veio e disse que hoje foi "o dia mais feliz de sua vida", por estar conosco. Meu irmão, em resposta, deixou bastante clara a relevância do acontecimento. E eu estava ali, achando tudo muito estranho. Eu ainda preciso de um tempo. Cada pessoa tem o seu. Não consigo esquecer que tudo poderia ter sido mais fácil e não custava nada tentar.
Hoje, sem dúvida, foi um dia de aproximação, mas toldado pelo contexto da doença de nossa mãe, que nos ameaça com sua ausência. Não fazemos escolhas tranquilas, suponho; estamos vivendo no limite e as emoções extremas estão nos conduzindo. E com família não se brinca. Há quem diga e até tente acreditar que não se importa, mas a força das relações familiares é única. O que acontece e o que não acontece deixam marcas profundas. As nossas estão aqui, à flor da pele.
O que acontecerá amanhã não sabemos. Mas que hoje foi um dia importante, sem dúvida foi. Um dia inédito: o primeiro dia dos pais que me lembro de ter passado com o meu, celebrando a ocasião. Espero que isso nos ajude a sermos pessoas melhores e mais felizes no futuro que vem chegando.
O fato é que meu pai saiu de casa quando eu mal completara 3 anos de idade. E escolheu fazê-lo justamente no dia dos pais daquele ano de 1978. Cruel? Pois saiba que ele tomou uma decisão pior ainda: decidiu se separar não apenas da mulher, mas dos filhos também. Por incrível que pareça, muitos homens fazem isso, como pude constatar quando me tornei advogado. Durante meses, sequer soubemos do seu paradeiro e só conseguíamos algum contato indiretamente, através de minha avó paterna. Durante anos, ele se esforçou por não manter relações conosco, para estar livre em sua nova vida.
Em 1986, meu avô paterno teve um ataque cardíaco e morreu. Recordo-me de minha mãe tentando fazer meu pai ficar perto de mim (ou de nós; não me lembro da presença de meu irmão) durante o velório, mas ele me (nos) repelia. O fato é que o tempo passou e, suponho, a paternidade começou a ser ressignificada em seu coração. Aí ele ensaiou uma reaproximação, que não deu muito certo. Eu e meu irmão não estávamos disponíveis. Uma trajetória de vida como essa não acontece sem deixar muitos e graves danos.
O tempo seguiu seu curso e meu pai participou ocasionalmente de alguns momentos de nossas vidas, p. ex. de parte dos eventos de nossas formaturas. Não era uma pessoa presente, como se imagina que seria alguém da família. Sintomático que, por ocasião do meu casamento, ele estava junto a mim durante a cerimônia civil, quando a juíza - uma amiga muito querida - se referiu "aos pais" de Polyana e "à mãe" do Yúdice. Ela não sabia que eu tinha pai vivo e que ele estava lá! Anos antes, um colega de faculdade me perguntara se eu tinha pai, pois eu falava da família, mas nunca do meu pai.
Quando soubemos que Polyana estava grávida, eu telefonei para ele e contei que seria avô. Não fui a sua casa, todavia. Permiti que fosse avô de Júlia e foi uma escolha pessoal dele ser um avô distante, que aparece muito de vez em quando, geralmente em ocasiões festivas. Decidi que não o privaria de seus direitos.
E após vários anos telefonando em seu aniversário, mas nunca no dia dos pais, hoje ele veio almoçar conosco, em minha casa. A iniciativa foi de meu irmão, um sujeito bem mais espiritualizado do que eu. Alguém que se esforça mais por ser uma pessoa melhor. Nosso pai hesitou e precisou de um tempo para aceitar o convite. Mas aceitou, veio e disse que hoje foi "o dia mais feliz de sua vida", por estar conosco. Meu irmão, em resposta, deixou bastante clara a relevância do acontecimento. E eu estava ali, achando tudo muito estranho. Eu ainda preciso de um tempo. Cada pessoa tem o seu. Não consigo esquecer que tudo poderia ter sido mais fácil e não custava nada tentar.
Hoje, sem dúvida, foi um dia de aproximação, mas toldado pelo contexto da doença de nossa mãe, que nos ameaça com sua ausência. Não fazemos escolhas tranquilas, suponho; estamos vivendo no limite e as emoções extremas estão nos conduzindo. E com família não se brinca. Há quem diga e até tente acreditar que não se importa, mas a força das relações familiares é única. O que acontece e o que não acontece deixam marcas profundas. As nossas estão aqui, à flor da pele.
O que acontecerá amanhã não sabemos. Mas que hoje foi um dia importante, sem dúvida foi. Um dia inédito: o primeiro dia dos pais que me lembro de ter passado com o meu, celebrando a ocasião. Espero que isso nos ajude a sermos pessoas melhores e mais felizes no futuro que vem chegando.
sábado, 8 de agosto de 2015
Palavras trancadas
Não sou uma pessoa impulsiva e realmente não gosto de gente impulsiva. Acho importante pensar bem antes de agir e, ainda que com algumas traições, até mesmo antes de falar. Mas, parafraseando a cantora e compositora Ana Carolina, na canção "Vou deixar a rua me levar", as palavras têm um tempo exato para falar, isto é, para ser faladas. E quando esse tempo é perdido, palavras, ideias e sentimentos associados acabam se perdendo, ficam pelo caminho e ninguém toma conhecimento deles.
Há uma sensação de perda nisso. Você gostaria de ter falado. Gostaria, talvez, de ter dito o que estava sentindo, mas os dias se sucedem e o que hoje parece importante e urgente amanhã, possivelmente, não será mais nada. Sob certos aspectos, é possível que tenha sido melhor não dizer nada. Mas nunca saberemos.
Esse mal-estar pode advir justamente daí: da impossibilidade de saber como teria sido a realidade alternativa. E assim mais uma incompletude se inscreve em nossas almas.
Há uma sensação de perda nisso. Você gostaria de ter falado. Gostaria, talvez, de ter dito o que estava sentindo, mas os dias se sucedem e o que hoje parece importante e urgente amanhã, possivelmente, não será mais nada. Sob certos aspectos, é possível que tenha sido melhor não dizer nada. Mas nunca saberemos.
Esse mal-estar pode advir justamente daí: da impossibilidade de saber como teria sido a realidade alternativa. E assim mais uma incompletude se inscreve em nossas almas.
O pulso ainda quer pulsar
Este blog nasceu com a intenção de ser bastante ativo. Durante um tempo, ele foi. Basta que se veja o número sempre crescente de postagens em seus três primeiros anos de existência. Mas quem tem dois empregos, família e a expectativa de alguma vida social não pode viver com a cara na tela do computador, então nos anos seguintes houve atividade significativa, maior ou menor, de acordo com os ventos de cada ano, mas não equivalente ao triênio inaugural.
Graças a este blog, entrei para um time seleto - não que eu estivesse à altura deles, de gente como Juvêncio de Arruda, do 5ª Emenda, ou o projeto coletivo do Flanar, do qual me tornei depois um dos editores -, mas eu gostava de pensar que fazia parte do grupo, dadas as nossas boas relações, ainda que muitas vezes exclusivamente virtuais. Era o virtual positivo: a vida na grande rede não substituía a real, apenas era vivida com qualidade e honestidade. Eu realmente fiz amigos por aqui.
A partir de 2012, o ritmo começou a despencar. O mestrado me deixou sem tempo e, depois, a doença de minha mãe roubou minha alma. O último ano foi extremamente difícil e 2015 está sendo uma pedreira que só não classifico como intransponível porque ainda estamos aqui. Resulta daí que o blog chegou a um estado de estagnação, o que lastimo. Afinal, acredito que fiz alguns textos bem bacanas ao longo desses quase 9 anos, coisas que podem ser úteis ou até divertidas. Por conta disso, acho importante prosseguir.
Dia desses, preparando-me para assumir turmas novas de Direito Penal I, organizava o meu material e cheguei ao documento que encaminho aos alunos, citando este blog como um local para procurar textos de interesse de nosso curso. Daí pensei que existe muita coisa aqui que pode ajudá-los. Isto me confere razão mais do que suficiente para persistir um pouco mais. Então vamos em frente. Assim como na vida real, na blogosfera também eu hei de lutar um pouco mais para, quem sabe, trazer algo de benefício ou de satisfação para uma ou duas pessoas. Creio que isto já será justificativa suficiente.
Naturalmente, no território líquido da Internet (à moda de Bauman), se houver um público, ele responderá de acordo com a produtividade do blog. Neste momento, portanto, é provável que eu escreva para ninguém. Mas se tem alguém na linha, se tem alguém no ar, é possível que alguém volte a ler as minhas tentativas de ser cronista ou crítico de tudo. Afinal, dizem, sempre há um sapato velho para calçar um pé cansado.
Abraço quem estiver por aí.
Graças a este blog, entrei para um time seleto - não que eu estivesse à altura deles, de gente como Juvêncio de Arruda, do 5ª Emenda, ou o projeto coletivo do Flanar, do qual me tornei depois um dos editores -, mas eu gostava de pensar que fazia parte do grupo, dadas as nossas boas relações, ainda que muitas vezes exclusivamente virtuais. Era o virtual positivo: a vida na grande rede não substituía a real, apenas era vivida com qualidade e honestidade. Eu realmente fiz amigos por aqui.
A partir de 2012, o ritmo começou a despencar. O mestrado me deixou sem tempo e, depois, a doença de minha mãe roubou minha alma. O último ano foi extremamente difícil e 2015 está sendo uma pedreira que só não classifico como intransponível porque ainda estamos aqui. Resulta daí que o blog chegou a um estado de estagnação, o que lastimo. Afinal, acredito que fiz alguns textos bem bacanas ao longo desses quase 9 anos, coisas que podem ser úteis ou até divertidas. Por conta disso, acho importante prosseguir.
Dia desses, preparando-me para assumir turmas novas de Direito Penal I, organizava o meu material e cheguei ao documento que encaminho aos alunos, citando este blog como um local para procurar textos de interesse de nosso curso. Daí pensei que existe muita coisa aqui que pode ajudá-los. Isto me confere razão mais do que suficiente para persistir um pouco mais. Então vamos em frente. Assim como na vida real, na blogosfera também eu hei de lutar um pouco mais para, quem sabe, trazer algo de benefício ou de satisfação para uma ou duas pessoas. Creio que isto já será justificativa suficiente.
Naturalmente, no território líquido da Internet (à moda de Bauman), se houver um público, ele responderá de acordo com a produtividade do blog. Neste momento, portanto, é provável que eu escreva para ninguém. Mas se tem alguém na linha, se tem alguém no ar, é possível que alguém volte a ler as minhas tentativas de ser cronista ou crítico de tudo. Afinal, dizem, sempre há um sapato velho para calçar um pé cansado.
Abraço quem estiver por aí.
sexta-feira, 10 de julho de 2015
Hoje é o dia do meu aniversário
Hoje é o dia do meu aniversário.
Nunca fui de aniversários. Nada contra o seu; o que não me apetece, mesmo, é o meu. Fico extremamente feliz de ser lembrado e receber afagos em uma data simbólica, mas realmente acho que é um dia como qualquer outro. Para minha mãe, não: o dia em que você nasceu é o mais importante do ano. Ele deve ser celebrado com todas as honras, seja com uma fatia de bolo, seja com uma festa enorme, mas não pode "passar em branco", como tantas vezes me disse, quando eu rejeitava a todo custo as propostas de comemoração.
Hoje é o dia do meu aniversário. E não um aniversário qualquer pois, para as convenções sociais, as datas redondas são particularmente chamativas. Estou completando 40 anos. Quem diria, agora sou um quarentão. Muito se diz sobre esta fase. Eu só tenho a dizer que a vida seguiu seu curso.
Considerei muitas coisas sobre esta data. Fazer nada? Comemorar com uma festinha regada a rock? Deixar os amigos de lado e comemorar apenas em casa, com um almocinho à base de peixe, camarão e açaí? Fui aceitando esta última hipótese, para conter as exigências maternas que certamente viriam. Ia acontecer. Mas então minha mãe passou uma semana internada, recebeu alta e voltou ao hospital, desta feita por culpa exclusiva de um médico que errou o procedimento realizado. Ao instalar um cateter inadequado, impediu-a de fazer hemodiálise e colocou sua vida em risco.
Ela voltou ao hospital, com todo o sofrimento que isso impõe, e ontem foi substituído o cateter. E hoje o cateter não funcionou. Hoje, no dia do meu aniversário, minha mãe, que praticamente não dialisou nada na terça, não dialisou nada esta manhã. Está em um leito de hospital e nós em volta disso tudo.
Hoje é o dia do meu aniversário. Algumas pessoas me telefonaram e outras me mandaram mensagens pelo Facebook ou pelo WhatsApp. Elas querem me dizer coisas bonitas e não estou conseguindo escutar. Hesito em atender e, quando atendo, retribuo a festa que me fazem com toda a minha carga de escuridão, eu que sou tão fácil para obscurecer. Preciso deixar claro, todavia, que é sincera a minha gratidão por toda a generosidade que me tem sido manifestada nos últimos dois anos, sobretudo.
Hoje não é um dia de festa. Mas é o dia do meu aniversário e eu quero um presente, apenas um: quero abraçar minha mãe, em casa, e ficar com ela sem urgências e medos imediatos sobre o dia de amanhã. Não peço bailes nem ouros, mas é impressionante como o meu pedido parece muito mais difícil de alcançar.
Nunca fui de aniversários. Nada contra o seu; o que não me apetece, mesmo, é o meu. Fico extremamente feliz de ser lembrado e receber afagos em uma data simbólica, mas realmente acho que é um dia como qualquer outro. Para minha mãe, não: o dia em que você nasceu é o mais importante do ano. Ele deve ser celebrado com todas as honras, seja com uma fatia de bolo, seja com uma festa enorme, mas não pode "passar em branco", como tantas vezes me disse, quando eu rejeitava a todo custo as propostas de comemoração.
Hoje é o dia do meu aniversário. E não um aniversário qualquer pois, para as convenções sociais, as datas redondas são particularmente chamativas. Estou completando 40 anos. Quem diria, agora sou um quarentão. Muito se diz sobre esta fase. Eu só tenho a dizer que a vida seguiu seu curso.
Considerei muitas coisas sobre esta data. Fazer nada? Comemorar com uma festinha regada a rock? Deixar os amigos de lado e comemorar apenas em casa, com um almocinho à base de peixe, camarão e açaí? Fui aceitando esta última hipótese, para conter as exigências maternas que certamente viriam. Ia acontecer. Mas então minha mãe passou uma semana internada, recebeu alta e voltou ao hospital, desta feita por culpa exclusiva de um médico que errou o procedimento realizado. Ao instalar um cateter inadequado, impediu-a de fazer hemodiálise e colocou sua vida em risco.
Ela voltou ao hospital, com todo o sofrimento que isso impõe, e ontem foi substituído o cateter. E hoje o cateter não funcionou. Hoje, no dia do meu aniversário, minha mãe, que praticamente não dialisou nada na terça, não dialisou nada esta manhã. Está em um leito de hospital e nós em volta disso tudo.
Hoje é o dia do meu aniversário. Algumas pessoas me telefonaram e outras me mandaram mensagens pelo Facebook ou pelo WhatsApp. Elas querem me dizer coisas bonitas e não estou conseguindo escutar. Hesito em atender e, quando atendo, retribuo a festa que me fazem com toda a minha carga de escuridão, eu que sou tão fácil para obscurecer. Preciso deixar claro, todavia, que é sincera a minha gratidão por toda a generosidade que me tem sido manifestada nos últimos dois anos, sobretudo.
Hoje não é um dia de festa. Mas é o dia do meu aniversário e eu quero um presente, apenas um: quero abraçar minha mãe, em casa, e ficar com ela sem urgências e medos imediatos sobre o dia de amanhã. Não peço bailes nem ouros, mas é impressionante como o meu pedido parece muito mais difícil de alcançar.
quinta-feira, 2 de julho de 2015
De monografias e suas autoras
Já tive a oportunidade de orientar excelentes monografias de conclusão de curso, mas devo dizer que, neste semestre, estou particularmente feliz e orgulhoso. Isto porque me permiti fazer uma escolha de alunos e de temas que viessem mais ao encontro de minhas atuais inclinações acadêmicas. Sempre há uma demanda muito grande por orientação na área penal e, após alguns ajustes, inclusive para atender necessidades conjunturais dos próprios estudantes, terminei com uma equipe de quatro jovens que só me trouxeram alegria.
Para começo de conversa, uma feliz conjuntura interveio: era chegada a hora das monografias de turmas das quais eu podia esperar grandes realizações, a começar do fato de que, neste elenco, figuram duas das minhas monitoras, o que tornava natural que fossem minhas orientandas. Confiante no talento dessas garotas, tivemos uma primeira reunião em que pus as cartas na mesa: o que espero de vocês é que todas façam trabalhos que mereçam a nota dez. O compromisso foi assumido e a missão, meses depois, cumprida. Não por concessão, mas por real merecimento.
A primeira banca foi de Laís Vidigal Maia, que se comprometeu com um assunto que está na ordem do dia, na mídia, no Congresso Nacional, nas redes sociais, trazendo como primeiro mérito a atualidade e a relevância da discussão para a sociedade brasileira. Seu tema foi "A política de redução de danos como alternativa à tendência contemporânea de criminalização das drogas". Segundo anunciado, o Supremo Tribunal Federal deve decidir no próximo semestre se o porte de drogas para consumo pessoal pode ou não ser criminalizado, uma decisão de grande impacto, sem a menor dúvida. E até mesmo o incensado secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, admitiu publicamente que a guerra às drogas é um erro, devendo-se situar o problema no campo da saúde pública e não no da criminalidade.
Se já passou da hora de mudarmos o modelo de reação ao uso e ao tráfico de drogas no país, então precisamos discutir, com serenidade e bom senso, que modelo seria adequado para nós. Laís, concentrando-se mais na questão do uso para consumo pessoal, apresentou os problemas trazidos pela política de criminalização, confrontando-os com modelos adotados em diferentes países, e propondo uma política de redução de danos, que poderia ser implementada logo, enquanto se discute para onde vamos com os aspectos mais delicados do problema.
Na foto, aparecemos com a Profa. Dra. Cristina Lourenço, avaliadora.
Depois veio Emy Hannah Ribeiro Mafra (na foto, à esquerda), que se debruçou sobre um assunto considerado dos mais espinhosos para o direito penal: a aplicação da pena. Digo espinhoso porque entra ano, sai ano, a magistratura continua perpetrando sandices na hora de estipular a pena do réu, seja por meio de erros primários, inadmissíveis, seja pelo descumprimento do dever de fundamentar ou pela permissividade com absurdos juízos de valor. Mas quando o próprio STF resolve considerar como antecedentes criminais alguma coisa que não seja uma condenação penal transitada em julgado, só nos resta abandonar toda esperança.
Emy se concentrou na aplicação da pena-base e, especificamente, na primeira e mais complexa das circunstâncias judiciais. Seu tema foi "O conceito de culpabilidade e sua indefinição na aplicação da pena". Após revisitar o conceito de culpabilidade e analisar sentenças recentes das varas criminais de Belém, apresentou uma proposta de mudança na redação do dispositivo legal que rege a dosimetria. Uma pesquisa muito bem fundamentada.
Na mesma tarde, uma eloquente Tainá Ferreira e Ferreira (na foto, à direita) defendeu o tema "A interferência da mídia nos processos de criminalização: uma análise da atuação da mídia como agência criminalizadora e suas consequências para o direito penal".
A ação da mídia tem interessado a muitos alunos já há algum tempo. O mérito de Tainá foi fugir das abordagens mais comuns e fáceis, concentrando-se nos processos de criminalização, que são altamente influenciados pela mídia e sua obsessão por criar inimigos, em um interminável movimento de legitimação da punição. Para tanto, a aluna buscou fundamentação em referências da própria comunicação, com o que realizou a interseção do campo jurídico com outros saberes.
Fico devendo uma foto com o avaliador de ambas as acadêmicas, Prof. Me. Eduardo Lima Filho.
O fim do ciclo se deu com Vitória de Oliveira Monteiro e sua corajosa monografia "A ilegitimidade da criminalização dos protestos no Brasil: uma análise da repressão criminal nas manifestações de junho de 2013 à luz da criminologia crítica".
Temas como desobediência civil e direito de resistência me são particularmente caros, de modo que Vitória me proporcionou uma grande alegria ao eleger uma questão diretamente relacionada, que defendeu a partir de uma consistente bibliografia, parte dela inédita no universo do Direito, que tem aquela insuportável inclinação a ensimesmar-se. E, no arremate, foi de uma precisão incrível ao responder à arguição da avaliadora, Profa. Dra. Loiane Verbicaro, na foto conosco.
Tenho muito orgulho de incluir esses trabalhos em meu currículo, pela qualidade que apresentam desde a redação e adequação metodológica até o conteúdo, mostrando como o Direito, ciência aplicada que é, precisa abrir-se a outros saberes se quiser ter alguma coerência e efetividade, sob pena de só conseguir resolver as questiúnculas que ele mesmo engendra (prazos, formas, não conflitos sociais), se é que conseguiria ao menos isso. E servem de referência para as próximas gerações de concluintes, que devem escolher seus temas com conhecimento de causa, inclusive com base no estado da arte, para o que o nosso acervo de monografias é uma boa indicação.
Mas tudo isso somente foi possível graças ao talento destas quatro acadêmicas, que fizeram escolhas corretas e cumpriram as exigências próprias da pesquisa acadêmica. Poderiam ter feito diferente? Claro que sim. Poderiam ter feito melhor? Naturalmente, como todo e qualquer trabalho acadêmico sempre pode ser melhor. Mas o que elas nos ofereceram vale muito, muito mesmo, sem qualquer favor.
Para começo de conversa, uma feliz conjuntura interveio: era chegada a hora das monografias de turmas das quais eu podia esperar grandes realizações, a começar do fato de que, neste elenco, figuram duas das minhas monitoras, o que tornava natural que fossem minhas orientandas. Confiante no talento dessas garotas, tivemos uma primeira reunião em que pus as cartas na mesa: o que espero de vocês é que todas façam trabalhos que mereçam a nota dez. O compromisso foi assumido e a missão, meses depois, cumprida. Não por concessão, mas por real merecimento.
A primeira banca foi de Laís Vidigal Maia, que se comprometeu com um assunto que está na ordem do dia, na mídia, no Congresso Nacional, nas redes sociais, trazendo como primeiro mérito a atualidade e a relevância da discussão para a sociedade brasileira. Seu tema foi "A política de redução de danos como alternativa à tendência contemporânea de criminalização das drogas". Segundo anunciado, o Supremo Tribunal Federal deve decidir no próximo semestre se o porte de drogas para consumo pessoal pode ou não ser criminalizado, uma decisão de grande impacto, sem a menor dúvida. E até mesmo o incensado secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, admitiu publicamente que a guerra às drogas é um erro, devendo-se situar o problema no campo da saúde pública e não no da criminalidade.
Se já passou da hora de mudarmos o modelo de reação ao uso e ao tráfico de drogas no país, então precisamos discutir, com serenidade e bom senso, que modelo seria adequado para nós. Laís, concentrando-se mais na questão do uso para consumo pessoal, apresentou os problemas trazidos pela política de criminalização, confrontando-os com modelos adotados em diferentes países, e propondo uma política de redução de danos, que poderia ser implementada logo, enquanto se discute para onde vamos com os aspectos mais delicados do problema.
Na foto, aparecemos com a Profa. Dra. Cristina Lourenço, avaliadora.
Depois veio Emy Hannah Ribeiro Mafra (na foto, à esquerda), que se debruçou sobre um assunto considerado dos mais espinhosos para o direito penal: a aplicação da pena. Digo espinhoso porque entra ano, sai ano, a magistratura continua perpetrando sandices na hora de estipular a pena do réu, seja por meio de erros primários, inadmissíveis, seja pelo descumprimento do dever de fundamentar ou pela permissividade com absurdos juízos de valor. Mas quando o próprio STF resolve considerar como antecedentes criminais alguma coisa que não seja uma condenação penal transitada em julgado, só nos resta abandonar toda esperança.
Emy se concentrou na aplicação da pena-base e, especificamente, na primeira e mais complexa das circunstâncias judiciais. Seu tema foi "O conceito de culpabilidade e sua indefinição na aplicação da pena". Após revisitar o conceito de culpabilidade e analisar sentenças recentes das varas criminais de Belém, apresentou uma proposta de mudança na redação do dispositivo legal que rege a dosimetria. Uma pesquisa muito bem fundamentada.
Na mesma tarde, uma eloquente Tainá Ferreira e Ferreira (na foto, à direita) defendeu o tema "A interferência da mídia nos processos de criminalização: uma análise da atuação da mídia como agência criminalizadora e suas consequências para o direito penal".
A ação da mídia tem interessado a muitos alunos já há algum tempo. O mérito de Tainá foi fugir das abordagens mais comuns e fáceis, concentrando-se nos processos de criminalização, que são altamente influenciados pela mídia e sua obsessão por criar inimigos, em um interminável movimento de legitimação da punição. Para tanto, a aluna buscou fundamentação em referências da própria comunicação, com o que realizou a interseção do campo jurídico com outros saberes.
Fico devendo uma foto com o avaliador de ambas as acadêmicas, Prof. Me. Eduardo Lima Filho.
O fim do ciclo se deu com Vitória de Oliveira Monteiro e sua corajosa monografia "A ilegitimidade da criminalização dos protestos no Brasil: uma análise da repressão criminal nas manifestações de junho de 2013 à luz da criminologia crítica".
Temas como desobediência civil e direito de resistência me são particularmente caros, de modo que Vitória me proporcionou uma grande alegria ao eleger uma questão diretamente relacionada, que defendeu a partir de uma consistente bibliografia, parte dela inédita no universo do Direito, que tem aquela insuportável inclinação a ensimesmar-se. E, no arremate, foi de uma precisão incrível ao responder à arguição da avaliadora, Profa. Dra. Loiane Verbicaro, na foto conosco.
Tenho muito orgulho de incluir esses trabalhos em meu currículo, pela qualidade que apresentam desde a redação e adequação metodológica até o conteúdo, mostrando como o Direito, ciência aplicada que é, precisa abrir-se a outros saberes se quiser ter alguma coerência e efetividade, sob pena de só conseguir resolver as questiúnculas que ele mesmo engendra (prazos, formas, não conflitos sociais), se é que conseguiria ao menos isso. E servem de referência para as próximas gerações de concluintes, que devem escolher seus temas com conhecimento de causa, inclusive com base no estado da arte, para o que o nosso acervo de monografias é uma boa indicação.
Mas tudo isso somente foi possível graças ao talento destas quatro acadêmicas, que fizeram escolhas corretas e cumpriram as exigências próprias da pesquisa acadêmica. Poderiam ter feito diferente? Claro que sim. Poderiam ter feito melhor? Naturalmente, como todo e qualquer trabalho acadêmico sempre pode ser melhor. Mas o que elas nos ofereceram vale muito, muito mesmo, sem qualquer favor.
sábado, 13 de junho de 2015
Apenas duas de amor
Terminar um relacionamento nunca é algo simples. E se ele envolveu muito tempo, muita intimidade e, em especial, convivência conjugal, torna-se ainda pior. Afinal, todo relacionamento constitui parte de nossa história e, consequentemente, parte daquilo que somos, para o bem e para o mal. Estando correta a conhecida máxima do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), de que todos somos nós e nossas circunstâncias, a vivência de um amor provavelmente é das circunstâncias que mais ajudam a moldar quem somos.
A arte, por seu turno, é a principal expressão daquilo que vai na alma de cada ser humano, por isso a expressão artística, com suas metáforas, símbolos e provocações, tem a capacidade de nos inspirar reflexões profundas sobre as experiências do mundo, sejam pessoais ou não.
Esta manhã, enquanto dirigia meu carro a caminho da clínica onde minha mãe faz hemodiálise, circunstância que sempre me põe reflexivo e sentimental, escutei duas canções estrangeiras que descrevem a mesma situação: o término de um relacionamento amoroso. Então me pus a matutar sobre como experiências em tese semelhantes dispararam reações tão diferentes por parte de seus protagonistas. E, com isso, podemos tentar algumas inferências sobre a personalidade de cada qual.
[Os links para os videoclips estão nos títulos das canções. Vale muito a pena conferir.]
A primeira canção se chama "I'm gonna be strong" e foi composta por uma conhecida (na época) dupla de autores: Barry Mann e Cynthia Weil. Foi originalmente gravada por Frankie Laine (1963) e, no ano seguinte, por Gene Pitney (1964), em ambos os casos como singles. Mas somente se tornou um grande sucesso em 1980, quando gravada no único álbum (auto-intitulado) da banda de rockabilly e new wave Blue Angel, da qual era vocalista Cyndi Lauper (1953- ). Tornou-se o maior sucesso da mal-sucedida banda, da qual Lauper se desligou em 1982. Ela regravou a canção em 1994, incluindo-a em sua coletânea de sucessos Twelve deadly cyns... and then some. Esta é a versão que conheço e é simplesmente arrebatadora1.
A composição data da década de 1960. Os tempos eram outros: mais sentimentais, mais melosos, em que o amor romântico era bastante enfatizado explorando a relação com a dor, com a perda. Àquela altura, perder um romance era quase um fim do mundo, mesmo para homens (a canção, escrita em primeira pessoa, relata os sentimentos de um homem), treinados desde cedo para ser fortes e inabaláveis. Quando criança, ouvi várias vezes a frase "homem não chora; só quando a mulher vai embora". E, criança, nunca entendi o significado dessa afirmação.
"I'm gonna be strong" é o que classifico como canção de mimimi, ou seja, é o desabafo de uma pessoa mal resolvida, que adora se vitimizar e se faz de coitadinha para tentar manter o relacionamento. Como se a piedade fosse um modo razoável de conservar relações. O poema pinta um cenário tristonho, derrotista, em que o protagonista se esforça por fingir, à ex-amante, que está bem. Aparentemente, o romance acabou apenas porque, às vezes, as pessoas percebem que não amam mais. Não há menção a conflitos ou a uma nova paixão. E um indivíduo chorão nunca deixa de ressaltar o fato de ter sido trocado, se for esse o caso. A ausência de briga se percebe pelo fato de a mulher que vai embora se despedir carinhosamente, com um beijo.
Daí ela sai e o cara desmorona em sua imensa dor. E como qualquer chorão, ele chora. Com o detalhe de que, em inglês, o mesmo verbo também significa "gritar", permitindo uma interpretação ainda mais dramática.
Devo admitir que me identifico muito com esses coitados à deriva, na linha Álvares de Azevedo. Adoro esta canção. E a interpretação de Cyndi Lauper me deixa sem fôlego.
A segunda canção se chama "Everything" e foi composta pela roqueira canadense Alanis Morissette. Lançada primeiro em CD single, fez parte do repertório do álbum So-called chaos (2003) e também se tornou um grande sucesso2. Mas aí os tempos eram outros. Mesmo em se tratando de uma mulher deixada para trás (a canção, também em primeira pessoa, deixa claro que é uma mulher falando), o tempo das mulheres submissas, que dependiam dos homens para ser felizes, já ficou para trás. Nossa personagem quer insistir na relação e não está lá muito feliz, mas a linguagem é bastante diferente, mais ácida e me impressiona pela franqueza.
A protagonista desta separação faz questão de se desnudar: não sente medo de ressaltar suas virtudes e seus defeitos (e, pelo visto, os defeitos vêm em maior quantidade, mas provavelmente somos todos assim). Quer ser amada do jeito que realmente é, não dando sinais de que mudaria para "merecer" esse amor. E, no fundo, ela parece acreditar que o parceiro é que sairia perdendo com o afastamento. Por isso provoca: "Você ainda está aqui". Acabe logo com isso, antes que seja tarde. Porque você não encontrará outra mulher que seja tudo o que eu sou, por pior que eu seja, neste mundinho repleto de gente pior ainda. Quer arriscar?
Adoro esta canção e gosto da atitude da moça (cuja autoestima é reforçada pelo belo e festejado videoclip). Uma atitude mais século XXI, que nos pede mais autoconfiança, mais controle dos sentimentos, mais convicção de que a vida segue, apesar de tudo.
Não ouso dizer que alguma dessas canções descreva comportamentos melhores ou piores. Somos humanos: em geral, fazemos o que podemos, de acordo com o que acreditamos acerca de nossas capacidades. E erramos demais. Eventualmente, acertamos algumas. Os acertos nos engrandecem e os erros... também! Porque são uma oportunidade de aprendizado. E a zona de conforto nem sempre é uma boa conselheira.
Não recomendo procurar saber qual amor é melhor ou pior. Confiando na premissa aposte na simplicidade, minha recomendação é mais singela: apenas ame. Tentando acertar.
_________________________________
1 Desculpem, mas copiei estas informações da Wikipedia, mesmo. Isto aqui não é um trabalho científico. Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/I'm_Gonna_Be_Strong; http://pt.wikipedia.org/wiki/I'm_Gonna_Be_Strong; http://pt.wikipedia.org/wiki/Blue_Angel e http://pt.wikipedia.org/wiki/Cyndi_Lauper.
2 E novamente a Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Everything_(Alanis_Morissette_song) e https://en.wikipedia.org/wiki/Alanis_Morissette.
* O título desta postagem alude à bela canção "Apenas mais uma de amor", de Lulu Santos.
A arte, por seu turno, é a principal expressão daquilo que vai na alma de cada ser humano, por isso a expressão artística, com suas metáforas, símbolos e provocações, tem a capacidade de nos inspirar reflexões profundas sobre as experiências do mundo, sejam pessoais ou não.
Esta manhã, enquanto dirigia meu carro a caminho da clínica onde minha mãe faz hemodiálise, circunstância que sempre me põe reflexivo e sentimental, escutei duas canções estrangeiras que descrevem a mesma situação: o término de um relacionamento amoroso. Então me pus a matutar sobre como experiências em tese semelhantes dispararam reações tão diferentes por parte de seus protagonistas. E, com isso, podemos tentar algumas inferências sobre a personalidade de cada qual.
[Os links para os videoclips estão nos títulos das canções. Vale muito a pena conferir.]
A primeira canção se chama "I'm gonna be strong" e foi composta por uma conhecida (na época) dupla de autores: Barry Mann e Cynthia Weil. Foi originalmente gravada por Frankie Laine (1963) e, no ano seguinte, por Gene Pitney (1964), em ambos os casos como singles. Mas somente se tornou um grande sucesso em 1980, quando gravada no único álbum (auto-intitulado) da banda de rockabilly e new wave Blue Angel, da qual era vocalista Cyndi Lauper (1953- ). Tornou-se o maior sucesso da mal-sucedida banda, da qual Lauper se desligou em 1982. Ela regravou a canção em 1994, incluindo-a em sua coletânea de sucessos Twelve deadly cyns... and then some. Esta é a versão que conheço e é simplesmente arrebatadora1.
I can see
You're slipping
away from me
And you're so
afraid
That I'll plead
with you to stay
But I'm gonna be
strong
I'll let you go
your way
Love is gone
There's no sense
in holding on
And your pity
now
Would be more
than I could bare
So I'm gonna be
strong
I'll pretend I
don't care
I'm gonna be
strong
And stand as
tall as I can
I'm gonna be
strong
And let you go
along
And take it like
a man
When you say
it's the end
I'll hand you a
line
I'll smile and
say
"Don't you
worry, it's fine"
But you'll never
know, darling
After you kiss
me goodbye
How I'll break
down and cry
Cry
Cry
Cry
|
Eu posso ver
Que você está
escapando de mim
E você tem tanto
medo
De que eu lhe implore
para ficar
Mas eu serei
forte
Eu deixarei você
seguir seu caminho
O amor se foi
Não há sentido
em continuar
E a sua piedade
agora
Seria mais do
que eu poderia suportar
Então eu serei
forte
Eu fingirei não
me importar
Eu serei forte
E ficarei o mais
altivo que puder
Eu serei forte
E deixarei você
ir adiante
E encarar isso
como um homem
Quando você
disser que é o fim
Eu lhe darei
corda
Eu sorrirei e
direi
“Não se
preocupe, está tudo bem”
Mas você jamais
saberá, querida
Como depois de seu
beijo de despedida
Eu vou me quebrar
e chorar
Chorar
Chorar
Chorar
|
A composição data da década de 1960. Os tempos eram outros: mais sentimentais, mais melosos, em que o amor romântico era bastante enfatizado explorando a relação com a dor, com a perda. Àquela altura, perder um romance era quase um fim do mundo, mesmo para homens (a canção, escrita em primeira pessoa, relata os sentimentos de um homem), treinados desde cedo para ser fortes e inabaláveis. Quando criança, ouvi várias vezes a frase "homem não chora; só quando a mulher vai embora". E, criança, nunca entendi o significado dessa afirmação.
"I'm gonna be strong" é o que classifico como canção de mimimi, ou seja, é o desabafo de uma pessoa mal resolvida, que adora se vitimizar e se faz de coitadinha para tentar manter o relacionamento. Como se a piedade fosse um modo razoável de conservar relações. O poema pinta um cenário tristonho, derrotista, em que o protagonista se esforça por fingir, à ex-amante, que está bem. Aparentemente, o romance acabou apenas porque, às vezes, as pessoas percebem que não amam mais. Não há menção a conflitos ou a uma nova paixão. E um indivíduo chorão nunca deixa de ressaltar o fato de ter sido trocado, se for esse o caso. A ausência de briga se percebe pelo fato de a mulher que vai embora se despedir carinhosamente, com um beijo.
Daí ela sai e o cara desmorona em sua imensa dor. E como qualquer chorão, ele chora. Com o detalhe de que, em inglês, o mesmo verbo também significa "gritar", permitindo uma interpretação ainda mais dramática.
Devo admitir que me identifico muito com esses coitados à deriva, na linha Álvares de Azevedo. Adoro esta canção. E a interpretação de Cyndi Lauper me deixa sem fôlego.
A segunda canção se chama "Everything" e foi composta pela roqueira canadense Alanis Morissette. Lançada primeiro em CD single, fez parte do repertório do álbum So-called chaos (2003) e também se tornou um grande sucesso2. Mas aí os tempos eram outros. Mesmo em se tratando de uma mulher deixada para trás (a canção, também em primeira pessoa, deixa claro que é uma mulher falando), o tempo das mulheres submissas, que dependiam dos homens para ser felizes, já ficou para trás. Nossa personagem quer insistir na relação e não está lá muito feliz, mas a linguagem é bastante diferente, mais ácida e me impressiona pela franqueza.
I can be an
asshole of the grandest kind
I can withhold
like it's going out of style
I can be the
moodiest baby
And you've never
met anyone as negative
As I am
sometimes
I am the wisest
woman you've ever met
I am the kindest
soul with whom you've connected
I have the
bravest heart that you've ever seen
And you've never
met anyone who is as positive
As I am
sometimes
You see
everything, you see every part
You see all my
light and you love my dark
You dig
everything of which I'm ashamed
There's not
anything to which you can't relate
And you're still
here
I blame everyone else not my own partaking
My
passive-aggressiveness can be devastating
I'm terrified
and mistrusting
And you've never
met anyone who is as closed down
As I am
sometimes
(…)
What I resist
persist and speaks
Louder than I
know
What I resist
you love no matter
How low or high
I go
I'm the funniest
woman that you've ever known
I'm the dullest
woman that you've ever known
I'm the most
gorgeous woman you've ever known
And you've never
met anyone as everything
As I am
sometimes
|
Eu posso ser uma
babaca do pior tipo
Posso resistir de
um jeito fora de moda
Posso ser o bebê
mais temperamental
E você jamais
conheceu ninguém tão pessimista
Quanto eu sou
algumas vezes
Sou a mulher
mais sábia que você já conheceu
Sou a alma mais
bondosa com que já teve contato
Tenho o coração
mais valente que você já viu
E você jamais
conheceu ninguém tão otimista
Quanto eu sou
algumas vezes
Você enxerga
tudo, cada detalhe
Você enxerga
toda a minha luz e ama minha escuridão
Você vasculha
todas as coisas das quais me envergonho
Não existe nada
com que não consiga se relacionar
E você ainda
está aqui
Eu culpo todo
mundo e não assumo a minha parte
Minha
passividade agressiva pode ser devastadora
Eu sou medrosa e
desconfiada
E você nunca
conheceu alguém tão fechada
Quanto eu sou
algumas vezes
(...)
O que eu
resisto, persiste e fala
Mais alto do que
eu achava
O que eu
resisto, você ama, não importa
Quão pra baixo
ou pra cima
Eu esteja
Eu sou a mulher
mais engraçada que você já conheceu
Eu sou a mulher
mais enfadonha que você já conheceu
Eu sou a mulher
mais maravilhosa que você já conheceu
E você nunca
conheceu ninguém que seja tudo
Quanto eu sou
algumas vezes
|
A protagonista desta separação faz questão de se desnudar: não sente medo de ressaltar suas virtudes e seus defeitos (e, pelo visto, os defeitos vêm em maior quantidade, mas provavelmente somos todos assim). Quer ser amada do jeito que realmente é, não dando sinais de que mudaria para "merecer" esse amor. E, no fundo, ela parece acreditar que o parceiro é que sairia perdendo com o afastamento. Por isso provoca: "Você ainda está aqui". Acabe logo com isso, antes que seja tarde. Porque você não encontrará outra mulher que seja tudo o que eu sou, por pior que eu seja, neste mundinho repleto de gente pior ainda. Quer arriscar?
Adoro esta canção e gosto da atitude da moça (cuja autoestima é reforçada pelo belo e festejado videoclip). Uma atitude mais século XXI, que nos pede mais autoconfiança, mais controle dos sentimentos, mais convicção de que a vida segue, apesar de tudo.
Não ouso dizer que alguma dessas canções descreva comportamentos melhores ou piores. Somos humanos: em geral, fazemos o que podemos, de acordo com o que acreditamos acerca de nossas capacidades. E erramos demais. Eventualmente, acertamos algumas. Os acertos nos engrandecem e os erros... também! Porque são uma oportunidade de aprendizado. E a zona de conforto nem sempre é uma boa conselheira.
Não recomendo procurar saber qual amor é melhor ou pior. Confiando na premissa aposte na simplicidade, minha recomendação é mais singela: apenas ame. Tentando acertar.
_________________________________
1 Desculpem, mas copiei estas informações da Wikipedia, mesmo. Isto aqui não é um trabalho científico. Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/I'm_Gonna_Be_Strong; http://pt.wikipedia.org/wiki/I'm_Gonna_Be_Strong; http://pt.wikipedia.org/wiki/Blue_Angel e http://pt.wikipedia.org/wiki/Cyndi_Lauper
segunda-feira, 8 de junho de 2015
"Isso é muito bonito!"
Todo mundo que chegue a ler esta postagem conhece, é claro, O pequeno príncipe, obra-prima do escritor, ilustrador e aviador (não necessariamente nesta ordem) Antoine de Saint-Exupéry. E desde que conheça em algum nível a novela classificada como infanto-juvenil, conhece e toma como síntese a frase "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas".
Mas o esquecimento, a confusão ou mesmo o fato de jamais se ter lido o livro leva muitos a pensarem que a apoteótica sentença acima foi proferida pelo personagem-título. Ledo engano. O autor desse pensamento tão profundo, no texto, é a raposa.
Durante a jornada que empreendeu entre vários corpos celestes (o texto confunde o tempo inteiro planetas e asteroides), o principezinho conheceu uns tantos adultos esquisitos, mas foi na Terra que ele se deparou com essa figura solene e poética, que lhe ensinou a beleza de cativar alguém e, com isso, tornar-se singular entre tantos outros seres iguais a nós.
Há alguns dias, comprei O pequeno príncipe para Júlia, por se tratar de uma leitura obrigatória. Naturalmente, decidi ler para ela. Não que ela precise, mas quis que fosse algo nosso. Fui lendo um pouco, nas noites possíveis, até chegar no encantador trecho da conversa com a raposa. À medida que eu lia a explicação sobre cativar, a expressão de Júlia foi-se transformando. Séria, ela subitamente exclamou a frase que nomeia esta postagem. Na singeleza de seus menos de 7 anos, foi capaz de compreender a força daquele discurso. E compreendeu mesmo, porque ainda há pouco me explicou como sua amiga Alice, entre tantas meninas de 7 anos iguais a ela, tornou-se única para a minha pequena.
E assim eu concluí, por experiência própria, que O pequeno príncipe é muito mais do que a leitura favorita das candidatas a miss, que sempre querem a paz mundial. Trata-se de um livro verdadeiramente imortal, porque toca de imediato o coração, mesmo de uma criança, e produz um significado que pode ser levado para a vida real e se tornar parte do que somos. Isto é simplesmente maravilhoso.
Um abraço para os futuros advogados
Sempre lembro os mais afoitos que quem se forma em Direito torna-se bacharel em Direito e não advogado. Alguns, ainda mais apressados, escrevem #finalmenteadvogado quando aprovado na banca do trabalho de conclusão de curso. Então é sempre bom colocar as coisas em termos. Advogado é quem está inscrito nessa condição, junto à Ordem dos Advogados do Brasil. E, para chegar a isso, é preciso concluir o curso de Direito e, requisito cumulativo, ser aprovado no Exame de Ordem. Coisas completamente distintas.
Com isso em mente, aqui vai o meu abraço caloroso para esta equipe de ex-alunos e ainda alunos do nosso curso, que superaram a importante etapa do exame de proficiência. Alguns estão prontos para iniciar formalmente o exercício profissional e outros, no começo do próximo ano, quando formados, já estarão aptos a fazê-lo. Parabéns.
E para todos, cada um a seu modo: vamos trabalhar!
Com isso em mente, aqui vai o meu abraço caloroso para esta equipe de ex-alunos e ainda alunos do nosso curso, que superaram a importante etapa do exame de proficiência. Alguns estão prontos para iniciar formalmente o exercício profissional e outros, no começo do próximo ano, quando formados, já estarão aptos a fazê-lo. Parabéns.
Amanda Eutrópio Oliveira Amaral
Ana Carolina Alves Coelho
Ana Carolina Alves Coelho
Ana Paula Lima Monteiro
Ana Thalita
Gomes Ferreira
Cristiane da Silva Fretes
Danielle Alves Guerra
Danilo Couto Marques
Gabriela Bessa Ferreira
Gabriela Figueira de Mello
Giovana Pimentel Farias da Silva
Isadora Tostes Lobato Silva
Jodelma
Costa Salomão
Júlia Tótola Força
Juliana Coelho dos Santos
Juliana
Salame de Lima Torres
Juliana Santos Marques
Kássya Lessa Bengtson
Kelly Cristina Moraes
Cavalcante
Laís Vidigal
Maia
Lissandro Tavares da Costa
Lizandra
Takanashi Baseggio Bonna
Lucas Pereira Wanzeller Rodrigues
Manuel Albino Ribeiro de
Azevedo Júnior
Marcella
Fernandes Pingarilho
Mariana Costa da Silva
Marília do
Valle Farias
Miguel Resque Santiago
Patricia Moreira
Santos
Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto
Roberta Gonçalves Pereira Ikeda
Roberto Luiz Batista Serrão Filho
Sidnei Vogel
Stéphanie Renée Mery Giraud Galvão
Tainá Ferreira e Ferreira
Tamires
Vasconcelos Tavares
Verena Matos
Tandaya
Victor Augusto de Oliveira Meira
Victor Hugo Ramos Reis
Vinícius Muniz Vasco
Vítor Luiz Cardoso
Walmir
Hugo Pontes dos Santos Neto
Sinais exteriores
Belém continua com seus problemas crônicos, decorrentes em boa medida do mais crônico de todos: falta de governo. O diagnóstico é objetivo e pode ser constatado mediante um simples passeio pela cidade. As ruas continuam engarrafadas por toda parte; os pontos de ônibus, quando possuem abrigos, estão em mau estado de conservação; o transporte público é cada vez mais caro e ao mesmo tempo ineficiente; a iluminação pública deficitária nos colocou em uma cidade escura e soturna; os serviços públicos municipais são ruins, etc.
Isso nos leva a pensar em um panorama de empobrecimento geral. Contudo, aquele colunista de negócios publicou em sua coluna de ontem algumas informações curiosas. Noticiou, p. ex., que enquanto as concessionárias nacionais amargam uma queda acentuada nas vendas, aqui em Belém, em maio foi incrementada a venda de veículos importados de alto valor. A rebote, a venda de carros usados aumentou 3,5%.
Fenômeno semelhante acontece no mercado imobiliário: imóveis populares encalham, mas a procura pelos de luxo só aumenta, a tal ponto que o metro quadrado nos bairros de Umarizal e de Batista Campos já chegou a 10 mil reais!
A coluna destaca, como se fosse novidade, a venda de bicicletas de 50 mil reais em lojas especializadas da cidade e a expansão de comodidades nas marinas, para quem curte a vida a bordo de lanchas ou jet skis. Eu mesmo, que tento ser observador, posso afiançar o surgimento, nos últimos anos, de concessionárias de marcas mais sofisticadas, como Mercedes, BMW, Mini e Jeep.
Inevitável pensar que as condições socioeconômicas da região metropolitana de Belém estão mudando a olhos vistos, mas isso não é necessariamente algo bom. Afinal, segundo penso, a concentração de renda pode ser pior do que a pobreza. Certamente, ela tende a ser mais aviltante, porque torna mais evidente a diferença ― usemos o termo distinção, por ter um sentido mais contundente ― entre os brasileiros dos tipos A/B e os demais, classificados por letrinhas menos valorizadas.
Mas não é uma simples questão de aparência. Longe disso. À medida que o abismo se aprofunda, as consequências éticas e morais igualmente se problematizam. Quanto mais os A/B se encastelam em condomínios exclusivos e carros blindados, mais necessidade sentem de somente interagir com aqueles que considerem seus iguais. Os extranei não podem sentar-se à mesma mesa e somente podem frequentar os mesmos ambientes na condição de serviçais. Daí os shopping centers cada vez mais elitizados, que ainda não existem por aqui; só temos as salas VIP. E outros estabelecimentos cujos serviços vão-se tornando mais restritos simplesmente por causa dos custos. É como se todo tipo de comércio fosse virando uma espécie de clube social, onde você ingressa se preencher certos pré-requisitos. Até os campinhos onde antes se jogava pelada agora "evoluíram" para arenas de futebol society.
Não à toa, a intolerância tem sido a marca mais ostensiva nas interações sociais involuntárias, notadamente via internet. É a falta de empatia, de reconhecimento do valor alheio, ditando os modos de viver em um mundo crescentemente individualista e mau. Porque maldade é falta de empatia. E daí advém muito sofrimento.
Isso nos leva a pensar em um panorama de empobrecimento geral. Contudo, aquele colunista de negócios publicou em sua coluna de ontem algumas informações curiosas. Noticiou, p. ex., que enquanto as concessionárias nacionais amargam uma queda acentuada nas vendas, aqui em Belém, em maio foi incrementada a venda de veículos importados de alto valor. A rebote, a venda de carros usados aumentou 3,5%.
Fenômeno semelhante acontece no mercado imobiliário: imóveis populares encalham, mas a procura pelos de luxo só aumenta, a tal ponto que o metro quadrado nos bairros de Umarizal e de Batista Campos já chegou a 10 mil reais!
A coluna destaca, como se fosse novidade, a venda de bicicletas de 50 mil reais em lojas especializadas da cidade e a expansão de comodidades nas marinas, para quem curte a vida a bordo de lanchas ou jet skis. Eu mesmo, que tento ser observador, posso afiançar o surgimento, nos últimos anos, de concessionárias de marcas mais sofisticadas, como Mercedes, BMW, Mini e Jeep.
Inevitável pensar que as condições socioeconômicas da região metropolitana de Belém estão mudando a olhos vistos, mas isso não é necessariamente algo bom. Afinal, segundo penso, a concentração de renda pode ser pior do que a pobreza. Certamente, ela tende a ser mais aviltante, porque torna mais evidente a diferença ― usemos o termo distinção, por ter um sentido mais contundente ― entre os brasileiros dos tipos A/B e os demais, classificados por letrinhas menos valorizadas.
Mas não é uma simples questão de aparência. Longe disso. À medida que o abismo se aprofunda, as consequências éticas e morais igualmente se problematizam. Quanto mais os A/B se encastelam em condomínios exclusivos e carros blindados, mais necessidade sentem de somente interagir com aqueles que considerem seus iguais. Os extranei não podem sentar-se à mesma mesa e somente podem frequentar os mesmos ambientes na condição de serviçais. Daí os shopping centers cada vez mais elitizados, que ainda não existem por aqui; só temos as salas VIP. E outros estabelecimentos cujos serviços vão-se tornando mais restritos simplesmente por causa dos custos. É como se todo tipo de comércio fosse virando uma espécie de clube social, onde você ingressa se preencher certos pré-requisitos. Até os campinhos onde antes se jogava pelada agora "evoluíram" para arenas de futebol society.
Não à toa, a intolerância tem sido a marca mais ostensiva nas interações sociais involuntárias, notadamente via internet. É a falta de empatia, de reconhecimento do valor alheio, ditando os modos de viver em um mundo crescentemente individualista e mau. Porque maldade é falta de empatia. E daí advém muito sofrimento.
73 anos
Para a maioria das pessoas, fazer aniversário é uma questão de abrir os olhos na data certa e tentar aproveitar tudo que de melhor o dia possa oferecer. Para outras, entretanto, é o resultado de uma interminável sequência de lutas diárias, muitas delas extremas. Luta-se contra o próprio corpo e, às vezes, contra a própria alma. Luta-se contra o que parece não fazer qualquer sentido.
Hoje, minha mãe completa 73 anos de idade. A foto ao lado é do ano passado, porque hoje em dia ela está mais fraquinha e não gosta de se ver assim. De lá para cá, muita coisa aconteceu. Muita coisa mesmo. Contudo, entre inventariar esses episódios e me concentrar no fato de que estamos aqui, com nossa mãezinha, opto pela segunda alternativa. Em parte inspirado pelas belas palavras que meu irmão escreveu mais cedo.
Estamos juntos e continuaremos lutando um tanto a cada novo dia, venham eles como vierem. Porque estamos aprendendo que viver é persistir e ter coragem, mesmo quando nos falta uma coisa e outra. E precisamos seguir o exemplo desta mulher que todo dia acorda, pede forças a Deus e enfrenta o que houver para enfrentar. Vamos envelhecendo, mas ela segue nos ensinando como devemos ser, ensinando pelo exemplo, que é a melhor forma.
Feliz aniversário, mãe. Sei que as lutas do futuro serão travadas com mais convicção, porque aprendi que isso é possível. Por isso e por tudo o mais, te amo.
Hoje, minha mãe completa 73 anos de idade. A foto ao lado é do ano passado, porque hoje em dia ela está mais fraquinha e não gosta de se ver assim. De lá para cá, muita coisa aconteceu. Muita coisa mesmo. Contudo, entre inventariar esses episódios e me concentrar no fato de que estamos aqui, com nossa mãezinha, opto pela segunda alternativa. Em parte inspirado pelas belas palavras que meu irmão escreveu mais cedo.
Estamos juntos e continuaremos lutando um tanto a cada novo dia, venham eles como vierem. Porque estamos aprendendo que viver é persistir e ter coragem, mesmo quando nos falta uma coisa e outra. E precisamos seguir o exemplo desta mulher que todo dia acorda, pede forças a Deus e enfrenta o que houver para enfrentar. Vamos envelhecendo, mas ela segue nos ensinando como devemos ser, ensinando pelo exemplo, que é a melhor forma.
Feliz aniversário, mãe. Sei que as lutas do futuro serão travadas com mais convicção, porque aprendi que isso é possível. Por isso e por tudo o mais, te amo.
quinta-feira, 4 de junho de 2015
Até onde a burrice é uma escolha?
Esta é uma pergunta que me faço cotidianamente. E voltei a ela quando li matéria sobre a soltura dos dois rapazes inicialmente presos pelo latrocínio em que foi vítima o estudante Lucas Silva da Costa, no último dia 23 de maio.
Embora exígua, a matéria do Diário do Pará afirma que o delegado responsável pelo inquérito policial decidiu indiciar, tão somente, um taxista (já identificado) acusado de ajudar dois adolescentes, que seriam os verdadeiros autores do delito. Se a autoridade policial não encontrou elementos para formalizar uma acusação contra os dois suspeitos iniciais, nada mais correta a decisão do juiz da 1ª Vara de Inquéritos Policiais e Medidas Cautelares, mandando liberá-los.
Mas os psicopatas que comentam notícias na internet não perdoaram, é claro. Felizmente, até aparece uma ou outra manifestação lúcida, contudo prevalece a sandice. Fala-se em impunidade, que os dois rapazes foram para casa "brincar", que são "parasitas", apela-se a um tal "total descrédito no judiciário" e por aí vai. Recusei-me a prosseguir nessa leitura doentia.
Somente a mais tosca burrice ou a mais convicta má-fé para explicar como alguém pode pinçar os aspectos mais secundários da questão e enxergar apenas o que quer, mesmo diante de fatos concretos.
Minha mente, que tenta ser racional, insiste que, mesmo que eu defendesse a punição a todo custo, ela somente poderia ser aplicada em relação a quem fosse o verdadeiro culpado. Não me interessa pegar qualquer um, até porque quando se consomem os recursos estatais com o acusado errado, o verdadeiro criminoso está livre e... impune! Será tão difícil perceber isso?
Eu sei que várias pessoas que estavam no ônibus assaltado reconheceram os dois rapazes como os autores do crime. Mas somos obrigados a nos perguntar: será que elas estavam em condições emocionais de depor e de fazer o tal reconhecimento? Hoje em dia, um dos bons usos que se pode fazer da Psicologia em favor do Direito está no campo das falsas memórias. Ao se apresentar uma pessoa a uma vítima, dizendo que aquele é o criminoso, é possível que essa vítima o reconheça de fato, em uma inconsciente manifestação do seu desejo de encontrar alívio para o mal sofrido. A testemunha não está mentindo: seu cérebro, em tumulto, está buscando mecanismos para mitigar o estresse. Então ela acredita no que diz e, mesmo assim, pode estar errada.
Para citar um caso que ganhou repercussão nacional, Vinícius Romão de Souza, na época com 26 anos, foi preso sob acusação de assalto, em fevereiro de 2014. A vítima o reconheceu. Mas aí veio à tona que aquele rapaz (negro, bem a propósito) era ator da Globo, a família se mobilizou, a imprensa deu atenção e... a vítima passou a dizer que não podia mais reconhecê-lo. O reconhecimento formal, ainda que hesitante, deu-se logo depois do crime, no calor dos acontecimentos. E não se sustentou mais tarde.
Perceber isso não implica em ser indiferente ao sofrimento de ninguém, em ser a favor do crime, em desejar a barbárie. Entretanto, é cada vez mais difícil à população em geral percebê-lo.
Tudo isso mostra o quão grave é o processo penal. A partir do momento em que você é acusado, cai em desgraça, não importa que seja inocente. E nestes tempos de internet, a perda de credibilidade é imediata e irreversível. Foi preso, é um parasita. Mesmo que inocente. Aliás, sua inocência não será percebida, mesmo que declarada por um juiz. Afinal, os juízes são todos moleques irresponsáveis, de acordo com esse admirável mundo novo alimentado na internet.
A cada dia que passa, é um pouco mais difícil e sofrido ter algum bom senso neste mundo.
Embora exígua, a matéria do Diário do Pará afirma que o delegado responsável pelo inquérito policial decidiu indiciar, tão somente, um taxista (já identificado) acusado de ajudar dois adolescentes, que seriam os verdadeiros autores do delito. Se a autoridade policial não encontrou elementos para formalizar uma acusação contra os dois suspeitos iniciais, nada mais correta a decisão do juiz da 1ª Vara de Inquéritos Policiais e Medidas Cautelares, mandando liberá-los.
Mas os psicopatas que comentam notícias na internet não perdoaram, é claro. Felizmente, até aparece uma ou outra manifestação lúcida, contudo prevalece a sandice. Fala-se em impunidade, que os dois rapazes foram para casa "brincar", que são "parasitas", apela-se a um tal "total descrédito no judiciário" e por aí vai. Recusei-me a prosseguir nessa leitura doentia.
Somente a mais tosca burrice ou a mais convicta má-fé para explicar como alguém pode pinçar os aspectos mais secundários da questão e enxergar apenas o que quer, mesmo diante de fatos concretos.
Minha mente, que tenta ser racional, insiste que, mesmo que eu defendesse a punição a todo custo, ela somente poderia ser aplicada em relação a quem fosse o verdadeiro culpado. Não me interessa pegar qualquer um, até porque quando se consomem os recursos estatais com o acusado errado, o verdadeiro criminoso está livre e... impune! Será tão difícil perceber isso?
Eu sei que várias pessoas que estavam no ônibus assaltado reconheceram os dois rapazes como os autores do crime. Mas somos obrigados a nos perguntar: será que elas estavam em condições emocionais de depor e de fazer o tal reconhecimento? Hoje em dia, um dos bons usos que se pode fazer da Psicologia em favor do Direito está no campo das falsas memórias. Ao se apresentar uma pessoa a uma vítima, dizendo que aquele é o criminoso, é possível que essa vítima o reconheça de fato, em uma inconsciente manifestação do seu desejo de encontrar alívio para o mal sofrido. A testemunha não está mentindo: seu cérebro, em tumulto, está buscando mecanismos para mitigar o estresse. Então ela acredita no que diz e, mesmo assim, pode estar errada.
Para citar um caso que ganhou repercussão nacional, Vinícius Romão de Souza, na época com 26 anos, foi preso sob acusação de assalto, em fevereiro de 2014. A vítima o reconheceu. Mas aí veio à tona que aquele rapaz (negro, bem a propósito) era ator da Globo, a família se mobilizou, a imprensa deu atenção e... a vítima passou a dizer que não podia mais reconhecê-lo. O reconhecimento formal, ainda que hesitante, deu-se logo depois do crime, no calor dos acontecimentos. E não se sustentou mais tarde.
Perceber isso não implica em ser indiferente ao sofrimento de ninguém, em ser a favor do crime, em desejar a barbárie. Entretanto, é cada vez mais difícil à população em geral percebê-lo.
Tudo isso mostra o quão grave é o processo penal. A partir do momento em que você é acusado, cai em desgraça, não importa que seja inocente. E nestes tempos de internet, a perda de credibilidade é imediata e irreversível. Foi preso, é um parasita. Mesmo que inocente. Aliás, sua inocência não será percebida, mesmo que declarada por um juiz. Afinal, os juízes são todos moleques irresponsáveis, de acordo com esse admirável mundo novo alimentado na internet.
A cada dia que passa, é um pouco mais difícil e sofrido ter algum bom senso neste mundo.
quarta-feira, 3 de junho de 2015
Cotidiano brasileiro - uma grande proposta
Em tempos de campanha contra a empresa O Boticário por causa de um delicado filme publicitário, este cidadão produziu uma pérola digna de ser compartilhada por todos aqueles que, como eu, entendem que um Estado democrático de direito e laico é simplesmente inconciliável com bancadas religiosas de qualquer credo, se elas pretendem impor suas vontades sobre toda a nação.
Quase estilo Occupy
Penso que greve deve ser de ocupação. Esse negócio de declarar greve e a galera ficar em casa, simplesmente curtindo o descanso, é leviano. Se estamos em greve, devemos batalhar pelas reivindicações formuladas, marcando presença, protestando, pressionando as negociações. Greve é para quem quer trabalhar com dignidade; não é para encostados.
No caso particular dos professores do Estado do Pará, uma ocupação é complicada, porque a categoria é grande e trabalha em diversas unidades (mesmo considerando o âmbito de uma única cidade). Fica complicado, imagino, manter um comando de greve em cada local. E quando se trata de ocupar um prédio governamental, como aconteceu aqui, os ânimos tendem a se acirrar. Quando grevistas arrombaram o portão do Centro Integrado de Governo, dias atrás, isso gerou uma repercussão ruim, principalmente entre aqueles que não sentem empatia com lutas trabalhistas. Que são muitos, quiçá a maioria.
Os professores em greve decidiram ocupar a Feira Pan-Amazônica do Livro, desde o início. Em que pese essa feira ser um evento infinitamente mais comercial do que cultural, já que - em relação ao público - se resume a reunir vários distribuidores em um mesmo espaço, para vender livros a preços elevadíssimos, a presença dos professores, nela, é mais do que justificável. Apesar das contradições tipicamente tucanas, livros rimam com educação e cultura, por isso os professores agiram acertadamente ao se instalarem lá.
Soube agora que os professores estão fazendo uma legítima greve de ocupação: estão utilizando o espaço da feira para dar aulas (preparatórias para o ENEM), fazer jogos educativos, oficinas, teatro e contação de estórias. Ótimas pedidas, sobretudo para crianças. De repente, até encontrei um motivo para visitar a feira. Há anos desisti dela, já que, para um consumidor comum, simplesmente não vale a pena. Até podemos encontrar alguns títulos interessantes e usualmente indisponíveis na cidade, mormente nas editoras universitárias. Mas isso exige um esforço de garimpagem, que não paga o desconforto de caminhar no aperto de um espaço abafado quando podemos garimpar e comprar pela internet, receber o livro em casa e, com sorte, pagar menos.
A greve já ultrapassou 70 dias e os prejuízos ao alunado são imensos. Com isso, o movimento tende a perder os apoios externos que possua. A esta altura, ruim para a categoria, bom para um governo caracterizado pela indolência crônica, que insiste em não negociar e que, ao menos, vai repor os descontos sobre os dias parados. Ou disse que o faria.
Enquanto isso, o governador-cantor-pescador, que raramente dá as caras, apareceu na feira apenas para fazer o que tucanos (não as aves) fazem: firula. Vestiu trajes típicos do país homenageado, Japão, e juntamente com seus penduricalhos da prefeitura de Belém e da Assembleia Legislativa, avacalhou um ritual xintoísta, que deveria trazer bênçãos, como conta a jornalista Franssinete Florenzano (link abaixo).
Não é à toa que o Pará não consegue bênção alguma. Está dominado por tucanos, que só dão marretadas. E ainda por cima na forma e na hora erradas.
Fontes:
No caso particular dos professores do Estado do Pará, uma ocupação é complicada, porque a categoria é grande e trabalha em diversas unidades (mesmo considerando o âmbito de uma única cidade). Fica complicado, imagino, manter um comando de greve em cada local. E quando se trata de ocupar um prédio governamental, como aconteceu aqui, os ânimos tendem a se acirrar. Quando grevistas arrombaram o portão do Centro Integrado de Governo, dias atrás, isso gerou uma repercussão ruim, principalmente entre aqueles que não sentem empatia com lutas trabalhistas. Que são muitos, quiçá a maioria.
Os professores em greve decidiram ocupar a Feira Pan-Amazônica do Livro, desde o início. Em que pese essa feira ser um evento infinitamente mais comercial do que cultural, já que - em relação ao público - se resume a reunir vários distribuidores em um mesmo espaço, para vender livros a preços elevadíssimos, a presença dos professores, nela, é mais do que justificável. Apesar das contradições tipicamente tucanas, livros rimam com educação e cultura, por isso os professores agiram acertadamente ao se instalarem lá.
Soube agora que os professores estão fazendo uma legítima greve de ocupação: estão utilizando o espaço da feira para dar aulas (preparatórias para o ENEM), fazer jogos educativos, oficinas, teatro e contação de estórias. Ótimas pedidas, sobretudo para crianças. De repente, até encontrei um motivo para visitar a feira. Há anos desisti dela, já que, para um consumidor comum, simplesmente não vale a pena. Até podemos encontrar alguns títulos interessantes e usualmente indisponíveis na cidade, mormente nas editoras universitárias. Mas isso exige um esforço de garimpagem, que não paga o desconforto de caminhar no aperto de um espaço abafado quando podemos garimpar e comprar pela internet, receber o livro em casa e, com sorte, pagar menos.
A greve já ultrapassou 70 dias e os prejuízos ao alunado são imensos. Com isso, o movimento tende a perder os apoios externos que possua. A esta altura, ruim para a categoria, bom para um governo caracterizado pela indolência crônica, que insiste em não negociar e que, ao menos, vai repor os descontos sobre os dias parados. Ou disse que o faria.
Enquanto isso, o governador-cantor-pescador, que raramente dá as caras, apareceu na feira apenas para fazer o que tucanos (não as aves) fazem: firula. Vestiu trajes típicos do país homenageado, Japão, e juntamente com seus penduricalhos da prefeitura de Belém e da Assembleia Legislativa, avacalhou um ritual xintoísta, que deveria trazer bênçãos, como conta a jornalista Franssinete Florenzano (link abaixo).
Não é à toa que o Pará não consegue bênção alguma. Está dominado por tucanos, que só dão marretadas. E ainda por cima na forma e na hora erradas.
Fontes:
- http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-332612-professores-fazem-enterro-simbolico-no-hangar.html
- http://uruatapera.blogspot.com.br/2015/06/kagami-wari-tupiniquim.html
sábado, 30 de maio de 2015
Fieis à corrupção
Em uma faculdade privada localizada em uma cidade muito distante daqui, esta semana a funcionária responsável pelo processamento dos pedidos de financiamento estudantil (FIES) desabafou na sala dos professores. Estava indignada com a quantidade de safadezas praticadas no programa. Destacou, em especial, a grande quantidade de pedidos formulados por pessoas que simplesmente não precisam dessa política pública.
As malinagens são de todo tipo. Gente que é filho de fazendeiro, por exemplo, indica no formulário que é filho de agricultor e aponta um endereço lá no meio do mato. E como o governo federal coloca toda a carga da investigação sobre as instituições de ensino, são estas que precisam se certificar de que está tudo correto. Felizmente, essa valorosa brasileira leva muito a sério o seu trabalho e não dá sossego aos vigaristas.
Em um caso peculiar, um sujeito, titular de uma boa posição na Aeronáutica, não podia ocultar sua renda mensal superior a 8 mil reais. Que fez ele? Indicou no formulário um monte de dependentes, incluindo a sogra e sobrinhos. Como a legislação do FIES permite que a instituição requisite qualquer documento capaz de comprovar a situação socioeconômica do requerente, nossa zelosa brasileira requisitou a declaração de ajuste anual do cara. Queria, é óbvio, confirmar que aquele batalhão de dependentes também havia sido declarado à Receita Federal.
A funcionária, então, começou a receber telefonemas de alguém em Brasília, exigindo explicações sobre por que o processo do requerente não havia sido solucionado ainda. E acusando-a de estar aplicando mal a lei, porque o sujeito não seria obrigado a apresentar sua declaração de rendimentos. Mas nossa valorosa brasileira primeiro questionou por que uma pessoa estranha ao processo estava intervindo nele (e não recebeu explicação sobre isso). Depois, esclareceu que se o requerente não apresentasse a declaração de ajuste anual, o seu pedido seria indeferido e ele poderia, nos termos da lei, recorrer, se quisesse.
Como você já pode imaginar, o requerente não comprovou os seus dependentes, teve indeferido o seu pedido, mas não recorreu. Ele simplesmente sumiu. Sabe por quê? Porque nos precisos termos do art. 299 do Código Penal, inserir, em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante constitui crime de falsidade ideológica, passível de 1 a 5 anos de reclusão, se o documento for público, ou 1 a 3 anos, se privado, além de multa.
E é assim, para dar apenas um exemplo, que pessoas comuns renovam, todo dia, a infatigável capacidade do brasileiro de se locupletar de tudo, transformando qualquer boa iniciativa em bandalheira.
O pequeno provocador que existe em mim está gritando aqui no meu ouvido que esse fulano da Aeronáutica, com certeza, é um dos milhões de brasileiros que esbraveja contra a corrupção dos políticos ou dos servidores públicos em geral, que se diz farto de tanta criminalidade, que exige leis penais mais duras e a redução da maioridade penal, que comemora a existência de uma "bancada da bala" no Congresso Nacional, que repete a cantilena imbecilizante do "bandido bom é bandido morto" e se enche de menosprezo para aludir ao "pessoal dos direitos humanos".
E já que estou falando de um fato ocorrido sabe-se lá onde e sabe-se lá quando (só confirmo que é verídico e recente), ouso especular que esse cidadão de bem que tentou fraudar o programa FIES também é um dos milhões de brasileiros que sente nojo das políticas de transferência de renda ou de cotas nas universidades, implantados ou ampliados de 2003 para cá. Considera-os prejudiciais porque negam a meritocracia e criam uma legião de malandros que viverão para sempre pendurados no produto do esforço dos ditos cidadãos de bem. Como cereja do bolo, ele provavelmente repercutiu, no Facebook, o meme sobre o esgotamento de recursos para o FIES, agora em 2015, como uma prova cabal de que a atual presidente aplicou um estelionato eleitoral.
O canalha somente se esqueceu do estelionato particular, aquele ocorrido dentro de seu próprio raio de ação, que provavelmente ele não viu como nada demais. Afinal de contas, todo mundo faz, né? Que que tem? Então deixa eu ir ali falar mal do governo.
As malinagens são de todo tipo. Gente que é filho de fazendeiro, por exemplo, indica no formulário que é filho de agricultor e aponta um endereço lá no meio do mato. E como o governo federal coloca toda a carga da investigação sobre as instituições de ensino, são estas que precisam se certificar de que está tudo correto. Felizmente, essa valorosa brasileira leva muito a sério o seu trabalho e não dá sossego aos vigaristas.
Em um caso peculiar, um sujeito, titular de uma boa posição na Aeronáutica, não podia ocultar sua renda mensal superior a 8 mil reais. Que fez ele? Indicou no formulário um monte de dependentes, incluindo a sogra e sobrinhos. Como a legislação do FIES permite que a instituição requisite qualquer documento capaz de comprovar a situação socioeconômica do requerente, nossa zelosa brasileira requisitou a declaração de ajuste anual do cara. Queria, é óbvio, confirmar que aquele batalhão de dependentes também havia sido declarado à Receita Federal.
A funcionária, então, começou a receber telefonemas de alguém em Brasília, exigindo explicações sobre por que o processo do requerente não havia sido solucionado ainda. E acusando-a de estar aplicando mal a lei, porque o sujeito não seria obrigado a apresentar sua declaração de rendimentos. Mas nossa valorosa brasileira primeiro questionou por que uma pessoa estranha ao processo estava intervindo nele (e não recebeu explicação sobre isso). Depois, esclareceu que se o requerente não apresentasse a declaração de ajuste anual, o seu pedido seria indeferido e ele poderia, nos termos da lei, recorrer, se quisesse.
Como você já pode imaginar, o requerente não comprovou os seus dependentes, teve indeferido o seu pedido, mas não recorreu. Ele simplesmente sumiu. Sabe por quê? Porque nos precisos termos do art. 299 do Código Penal, inserir, em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante constitui crime de falsidade ideológica, passível de 1 a 5 anos de reclusão, se o documento for público, ou 1 a 3 anos, se privado, além de multa.
E é assim, para dar apenas um exemplo, que pessoas comuns renovam, todo dia, a infatigável capacidade do brasileiro de se locupletar de tudo, transformando qualquer boa iniciativa em bandalheira.
O pequeno provocador que existe em mim está gritando aqui no meu ouvido que esse fulano da Aeronáutica, com certeza, é um dos milhões de brasileiros que esbraveja contra a corrupção dos políticos ou dos servidores públicos em geral, que se diz farto de tanta criminalidade, que exige leis penais mais duras e a redução da maioridade penal, que comemora a existência de uma "bancada da bala" no Congresso Nacional, que repete a cantilena imbecilizante do "bandido bom é bandido morto" e se enche de menosprezo para aludir ao "pessoal dos direitos humanos".
E já que estou falando de um fato ocorrido sabe-se lá onde e sabe-se lá quando (só confirmo que é verídico e recente), ouso especular que esse cidadão de bem que tentou fraudar o programa FIES também é um dos milhões de brasileiros que sente nojo das políticas de transferência de renda ou de cotas nas universidades, implantados ou ampliados de 2003 para cá. Considera-os prejudiciais porque negam a meritocracia e criam uma legião de malandros que viverão para sempre pendurados no produto do esforço dos ditos cidadãos de bem. Como cereja do bolo, ele provavelmente repercutiu, no Facebook, o meme sobre o esgotamento de recursos para o FIES, agora em 2015, como uma prova cabal de que a atual presidente aplicou um estelionato eleitoral.
O canalha somente se esqueceu do estelionato particular, aquele ocorrido dentro de seu próprio raio de ação, que provavelmente ele não viu como nada demais. Afinal de contas, todo mundo faz, né? Que que tem? Então deixa eu ir ali falar mal do governo.
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