sábado, 29 de junho de 2013

Refletindo a partir de Burke

"Até a liberdade deve ser limitada, a fim de ser possuída."

Li esta frase muitos anos atrás e, como era meu hábito, anotei-a em um caderno cheio de citações. O caderno, com os anos, se perdeu. Felizmente, contudo, as palavras de Edmund Burke permaneceram em minha memória.

Burke foi um filósofo e político (hoje em dia, atividades incompatíveis entre si) irlandês, que viveu entre 1729 e 1797. Faz muito tempo, portanto, que proferiu estas palavras, que seguem sendo tão atuais. Vale destacar que ele foi entusiasta da soberania do povo e percebeu que a democracia podia levar a maioria a oprimir as minorias (uma discussão hoje muito em voga na filosofia do direito, podendo-se citar Ronald Dworkin entre os que se interessam pelo tema). Pensamentos sensatos. A Burke também se atribui outra citação que prezo muito: "Aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la".

Quando li a frase que inaugura esta postagem, nos dias de minha juventude, considerei-a instantaneamente correta. Pareceu-me um truísmo, ainda que, naquela época, eu não soubesse o que era um truísmo. Mas também me pareceu que, sendo eu um garoto muito pouco propenso a desafiar regras, a empatia com esse aforismo não era de surpreender. Eu me preocupava, naquele tempo, com comportamentos transgressores. Hoje, em uma fase da existência em que vejo na transgressão uma forma legítima de lutar por bens necessários à vida, à felicidade, à realização de nossas aspirações mais profundas, minha preocupação é outra.

Preocupo-me com o fato de que se lutou tanto por liberdade, tantos morreram por ela, mas uma vez alcançada, tal qual o cachorro que corre atrás do automóvel e um dia finalmente o alcança, as pessoas simplesmente não sabem o que fazer com ela. Aí vieram as tecnologias de comunicação e todos nós ganhamos a capacidade de produzir ideias nos cantos mais obscuros do mundo e disseminá-las por todo o planeta. Isso serviu para quê?

Para que nos tornássemos uma geração de covardes, que se escondem atrás de uma tela para não precisar olhar mais ninguém nos olhos. Uma geração de tolos, que abreviam palavras e com elas ideias, mal disfarçando a nossa dificuldade de pensar. Uma geração de consumidores, que no ter uma infinidade de coisas, desaprende o valor de cada uma. Uma geração de membros de redes sociais, grupos virtuais e congêneres, que assim se desobrigam de interagir de verdade com seres humanos. Uma geração de críticos inclementes e sempre furiosos (e o mais das vezes, totalmente desinformados). Uma geração que não perde a oportunidade de atacar, ferir, humilhar, seja lá pelo motivo que for. É uma espécie de inclinação natural, como se a internet houvesse desvelado que somos um bando de psicopatas surtados.

Ao mesmo tempo, somos uma geração débil. Débeis de conhecimento, de tanto que sorvemos informações desconectadas e inúteis, porque só a inteligência seria capaz de lhes dar serventia. Débeis de generosidade, porque precisamos de incentivos para fazer o que é certo, já que nosso primeiro impulso é causar dor. Débeis de futuro, porque nada construímos; aquilo que não pode ser comprado não será possuído, porque não temos mais criatividade para produzir. Somos a massa, que consome as mesmas comédias ruins, a mesma música ruim, os mesmos programas ruins, os mesmos alimentos industrializados e somos orientados, por terceiros, sobre aquilo de que devemos gostar. Esportes, p. ex. Esportes rendem muito dinheiro, embora não para nós. Fomos  programados para gostar de futebol e, mais recentemente, de lutas. Aguarde o próximo surto criativo da indústria do entretenimento. Você também vai gostar da coisa, seja lá o que for.

Somos, por fim, a geração do trauma, aquela que com tudo se ofende; que não tolera nem a mais leve crítica; que acredita piamente possuir um direito à felicidade; que não valoriza a história, a experiência e a boa vontade dos que vieram antes de nós. A geração que acredita não poder ser restringida em suas ambições, independentemente do motivo. Principalmente se esse motivo disser respeito àquilo que não nos interessa: um tal de outro.

Somos uma geração de carros desgovernados, ladeira abaixo, que nada pode deter. Se tentar, que seja atropelado. Porque temos direito à liberdade absoluta. O desfecho de uma tal perspectiva, todos deveríamos conhecer: não vai dar certo.

***

Ninguém se preocupe: não estou jogando a toalha. Estes foram apenas lampejos de ideias incompletas, reunidos a partir de alguns acontecimentos recentes pouco animadores. Mas a vida segue. E pode ser melhor do que tudo quanto dito acima. Sempre pode. Porque somos livres para isso.

3 comentários:

André Uliana disse...

Amigo Yúdice,

Mais uma vez, venho fazer um elogio sincero ao seu blog, que é, de longe, o meu favorito.

Confesso que fico impressionado quando leio um texto que expressa tão claramente pensamentos e sentimentos que vagam desordenados pela minha cabeça e que poderia ter eu mesmo escrito, se tivesse a capacidade para traduzir estas ideias em palavras.

Yúdice Andrade disse...

Meu Deus, André, isso que é elogio!
Mas eu estava mesmo com algumas angústias entaladas há bastante tempo. Uma hora elas iam sair. Então, no silêncio da noite, com a família dormindo, eu me permiti o desabafo. Folgo em saber que serviu para alguém.

Anônimo disse...

Prezado Yúdice, compartilho a mesma perplexidade e desânimo com as novas gerações, a despeito das manifestações de ruas e protestos virtuais, pois a três anos trabalho com jovens universitários. No geral, não conhecem história, pois desprezam os velhos (alguem com mais de 35 anos). Não podem ser criticados porque senão logo vira assédio moral ou bulling.Não tem curiosidade intelectual alguma,a não ser o que saia no face ou instagram. Não sei não, se um dia um vírus acabar com os dados armazenados nos tabltes e smartphones da vida, esse povo todo morre. Os adultos, por sua vez, contribuem para isso, adotando um comportamento idiotizante, faltando referências para a juventude alienada e alienante. É perceptível como a intolerância grassa no mundo todo. Para mim é o " o horror, o horror". Ainda bem que "não transmitirei a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".