segunda-feira, 3 de junho de 2013

Antecedentes criminais

Brasileiros têm uma verdadeira obsessão pelo passado desviante dos outros. Não à toa, o inconstitucional conceito de reincidência faz o maior sucesso por estas bandas. Não ouse pensar em aboli-lo, como se tentou, em vão, conforme comentamos recentemente.

Enquanto isso, está em curso, na Suprema Corte do Reino Unido, uma ação que pretende julgar a inconstitucionalidade do registro de antecedentes criminais. Veja a notícia:

A Suprema Corte do Reino Unido aceitou julgar se a lista de antecedentes criminais viola
direitos fundamentais da pessoa. Os juízes do tribunal, instância máxima da Justiça do Reino
Unido, vão analisar se a legislação britânica sobre o assunto respeita o direito à privacidade
e intimidade de cada um. As audiências preparatórias para o julgamento foram marcadas
para os dias 24 e 25 de julho.
O tribunal vai julgar recurso do governo contra decisão tomada pela Corte de Apelação
em janeiro deste ano. Na ocasião, a corte decidiu que as regras que ditam o que entra e 
o que sai da ficha criminal violam a Convenção Europeia de Direitos Humano e pediu ao
Parlamento para reescrever a lei sobre o assunto. O governo não concordou com o
julgamento e apelou à Suprema Corte.
A lista de antecedentes criminais foi questionada na Justiça por duas pessoas que
reclamaram que o passado negro estava atrapalhando suas vidas profissionais. No Reino
Unido, assim como no Brasil, a ficha criminal de todos é pública e pode ser solicitada por
quem se interessar. A exigência dessa ficha é pré-requisito para a contratação de
profissionais para determinados cargos, especialmente aqueles que vão lidar diretamente
com crianças ou com adultos incapazes. Qualquer item nessa lista é suficiente para acabar
com a carreira de um professor ou psicólogo, por exemplo.
T. e JB., que tiveram seus nomes preservados pelos juízes, receberam uma advertência da
Polícia por furto há mais de 10 anos. A advertência policial está prevista pela legislação
britânica para crimes considerados inofensivos. Casos que no Brasil seriam desconsiderados
pela Justiça com base no princípio da insignificância, na Inglaterra, nem chegam aos tribunais.
A Polícia reconhece a insignificância do crime e adverte formalmente o infrator. Essa
advertência é considerada um antecedente criminal.
T., hoje com 23 anos, foi advertido duas vezes pela Polícia quando tinha 11 anos por roubar
bicicletas. JB. recebeu a advertência aos 40 anos por tentar furtar de uma loja um pacote de
unhas postiças. Nos dois casos, passados 10 anos, as advertências continuam a fazer parte
da ficha criminal dos dois. T. foi impedido de trabalhar numa escola de futebol e JB. teve de
desistir de sua carreira no serviço social.
Ao analisar os relatos, os juízes da Corte de Apelação reconheceram que há uma flagrante
violação de direitos fundamentais dos dois envolvidos. Eles consideraram que a falta de regras
claras que determinem até quando uma condenação ou uma advertência deve integrar lista de
antecedentes criminais é uma interferência indevida na vida privada de cada um, o que viola o
previsto no artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos. O dispositivo garante o
respeito à vida privada e familiar e estabelece que as autoridades públicas só podem interferir
nesse direito para garantir a segurança nacional, o bem-estar social e econômico do país e os
direitos de terceiros.
Aline Pinheiro é correspondente da revista Consultor Jurídico na Europa.

Revista Consultor Jurídico, 2 de junho de 2013
Tratando-se de uma questão constitucional, com fortes efeitos sobre a vida das pessoas em geral, o judiciário britânico teve o bom senso de submeter o caso ao crivo da própria sociedade, por meio de audiências preparatórias ao julgamento. Por aqui, esse tipo de cautela ainda é recente. O primeiro caso foi o da ADPF 54, sobre abortamento de fetos anencéfalos. Suspeito que não foi exatamente por espírito democrático, e sim pela pressão dos religiosos, que insistem em querer administrar o país.

Moralistas e avessos ao perdão (desde que o foco sejam terceiros, é claro), os brasileiros não tolerariam, de modo algum, uma proposta semelhante por aqui. Saber que o sujeito um dia bateu ou ameaçou alguém pode ser essencial para, sei lá, contratá-lo para servir mesas. Essa informação pode ter um peso maior do que saber que ele amadureceu, constituiu família, tem filho para sustentar e precisa de um emprego, etc. Enfim, as pessoas mudam, segundo consta.

Vale destacar, ainda, que a legislação brasileira é bem mais restritiva que a britânica. Por aqui, as tais certidões de antecedentes criminais voltam a ser negativas depois da reabilitação (dois anos após a extinção da pena, nos termos dos arts. 93 a 95 do Código Penal), além de que é proibido exibir qualquer anotação referente à adolescência. Mas os prejuízos são genuínos e graves.

Vamos ver o que decidem os súditos da rainha. Quem sabe isso não inspira outros países a discutir a questão.

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