quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A última semana

Somente hoje tive acesso ao prontuário da última internação hospitalar de minha mãe, que corresponde a sua última semana de vida. Preciso desse documento para empreender uma jornada ao fundo do ego e decidir se vale a pena uma ação judicial contra o plano de saúde ou se não. Uma decisão a ser compartilhada com meu irmão, naturalmente.

Ler o documento me transportou de novo para aqueles tempos sombrios, que no fundo não são tão diferentes dos atuais. A maior diferença era que, antes, eu tinha certeza de estar imerso na vida real e agora... eu não sei. É como se eu assistisse às cenas mais desinteressantes de um filme em que nada acontece que seja digno de nota.

Uma anotação do prontuário, contudo, martela a minha cabeça de modo incessante. "Ao exame físico: consciente e orientada".

Minha mãe ficou indignada por ser levada ao hospital. Se era para morrer, que fosse em casa. Mas nós iniciamos a segunda-feira, 28 de setembro, levando-a para o hospital, mentindo descaradamente que ela talvez não fosse internada. Nossa intenção era melhorar a sua capacidade respiratória, porque ela não dormia mais. Nas conversas com a médica paliativista, a intenção era clara: melhorar sua condição geral e devolvê-la para o conforto de seu lar, pelo tempo que fosse possível.

No setor de triagem, à espera de um leito, recebeu o meu beijo e a minha despedida, pois eu precisava trabalhar. Felizmente, eu disse que a amava. Deitada de lado, na posição que suportava, ela não me respondeu. Ela nunca mais falou comigo. Exceto, talvez, o "não" quando tentei lhe fazer uma higiene, à noite. Dormi no hospital naquela noite, mas a despeito de minhas tentativas, ela não se comunicou. No entanto, estava consciente e orientada.

Dia 29, 12h04. Paciente consciente e orientada. Fui vê-la à tardinha. Estava completamente ausente. Emitia sons que não sabíamos se ainda eram algum arremedo de resposta ou apenas o sofrimento pulmonar. A médica anota: "Progressão de doença?".

Dia 30, 9h06, na companhia de meu irmão. "Paciente não quer conversar, fecha os olhos durante visita. Fala pouco, humor deprimido." Às 10h41: "Deprimida, não está querendo falar com a equipe". Vou vê-la depois e sua condição é de quem já foi levado pela doença. Não posso acreditar que ela se recusa a falar com os filhos, embora a médica nos tenha avisado disso.

Dia 1º.10, 11h13. Fui chamado por meu irmão para tomar decisões que ele não podia nem queria tomar sozinho. "Paciente gravíssima, rebaixada quanto ao nível de consciência... em progressão de doença". Decidimos não a mandar para a UTI, onde ficaria isolada; receberia apenas uma sedação, para alívio (?) de seu sofrimento. Começa a macronebulização. Daí por diante, só vejo minha mãe por trás de uma máscara. Lembro, mas queria apagar da memória, a expressão de seu rosto.

Dia 2.10, 11h59, na companhia de minha esposa, o quadro é de pneumonia hospitalar com piora da infecção respiratória devido à progressão da doença. Às 12h31, ainda a anotação "não quer conversar". Na deliberação sobre quem passará a noite, chegamos à conclusão de que ela queria morrer, mas não podia desligar-se na presença dos filhos. Era demais para ela. Damos a incumbência para a irmã, Jose.

Dia 3 de outubro, às 8h33, uma anotação objetiva: "Evoluiu com PCR. Óbito constatado às 7:30". É assim que termina.

Recebi instruções ao longo daquela semana sobre o que podia estar acontecendo com minha mãe. Instruções sobre ela ter mergulhado para dentro de si mesma, a fim de revisitar a própria vida, resolver suas pendências, buscar o autoperdão. Coisas que você não escuta dos médicos comuns, mas escuta dos paliativistas. E dos enfermeiros paliativistas, como meu amigo Renato, que de longe me ofertou palavras de apoio. As únicas que realmente me ajudaram, enquanto ao meu redor as pessoas só sabiam falar sobre a tal vontade de Deus.

Conheço minha mãe bem o bastante para saber que, se ela preferiu não falar mais conosco, embora pudesse fazê-lo, um sofrimento indescritível gritava dentro dela. Para isso, não tenho respostas. Ainda acordo de madrugada me perguntando: "Por que a senhora não se despediu de mim? Por que não apertou a minha mão?"

Por que tudo isso aconteceu? Qual a utilidade? Qual a finalidade? Agora me calo. Digito as últimas palavras para retornar à correção de provas, recurso para esquecer. Recurso inútil, mas é o que tenho.

Há decisões a tomar. E a vida segue, do seu jeito.

Da minha sacada, é o que vejo neste momento.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Loucura: amor, saudade, ciúme, despeito e outras humanidades

Dia desses comprei o CD Loucura, com releituras de Adriana Calcanhotto para canções do famosíssimo cantor e compositor porto-alegrense Lupicínio Rodrigues (1914-1974). Não é preciso muito para eu comprar um disco de Adriana, já que é minha cantora/compositora favorita. Dona de uma voz peculiar, aveludada, e de um estilo curioso, que às vezes a aproxima da Família Addams, neste trabalho ela se permite ser intérprete, sem perder o seu senso de humor muito próprio, seja na escolha do repertório, que inclui o Hino do Grêmio, seja no modo como apresenta os músicos que a acompanham.

Lupicínio Rodrigues é um ícone de sua geração. Um dos grandes luminares da música brasileira de antigamente, cantava os sentimentos da gente simples, da gente verdadeira, que não tem muito de bens materiais, mas cujo coração pulsa com a força de diversos sentimentos, nem todos bons. Daí que suas canções constituem arrebatadoras declarações de amor, mas há muito de rancor, de ódio, de inveja, de ciúme. Aliás, a canção "Vingança" é, provavelmente, uma das mais perfeitas traduções de ressentimento por um relacionamento fracassado.

O disco, lançado em 24 de julho deste ano, é o primeiro trabalho de Adriana após a viuvez. Sua esposa, a cineasta Suzana de Moraes, faleceu no último dia 27 de janeiro, após mais de 25 anos de uma união honesta e monogâmica que faria corar de vergonha os patéticos homofóbicos que hoje dominam a cena internética e política. Por isso mesmo, ao escutar aqueles versos tão doridos, não pude deixar de pensar em como a cantora se sentiu ao entoar palavras como estas, da canção "Homenagem":

Levem estas flores pr'aquela que agora deve estar chorando
Por não poder estar neste momento aqui junto de mim
Pra receber estas honras que a outra está desfrutando
O nosso amor clandestino é que obriga a vivermos assim
Levem estas flores
E digam pra ela ficar me esperando
Que no que termine a festa eu irei abraçar meu amor
Pois apesar de não sermos casados
É quem me inspira e está sempre a meu lado
Me acompanhando nas horas difíceis, nas horas de dor


O projeto rendeu um belo show, gravado em Porto Alegre, cidade natal da homenageante e do homenageado. Esse concerto virou o disco e um DVD. Como se pode ver na imagem ao lado, Adriana aparece vestida a rigor, como um homem, em um cenário que lembra um bar ou talvez um cabaré, estabelecimento comum na vida dos homens do tempo de Lupicínio. A voz doce e triste ponteia as letras profundamente sentimentais e encontram o coro do público na conhecidíssima e terna canção "Felicidade".

Para quem gosta do estilo, recomendo muito. É possível que até o seu cotovelo doa. Contudo, é mais provável que a sua alma voe.

Renovando

Hoje, sem mais nem menos, senti vontade de mudar o blog. Sou do tipo que enjoa e precisa de uma novidade, vez em quando. E a aparência do blog estava igual há muito tempo ― sabe-se lá quanto; só sei dizer que foi em uma outra vida. Eu já nem me lembrava mais de como fazer esses ajustes.

O fato é que o Arbítrio do Yúdice está de cara nova. Deixou para trás as cores quentes, aquele inferno de informações cromáticas que, provavelmente, cansou a vista de uns tantos, os quais, educadamente, não se manifestaram. Assumiu um modelo dentre os disponíveis no Blogger, sem a intenção de buscar firulas. Poucas particularidades foram alteradas no leiaute padrão e todas com vistas a produzir um resultado mais limpo e confortável. Agora a tela é dominada por um delicado tom de azul, com o tema geral de uma estrada, sintoma de um desejo de andar, de respirar, de estar em um mundo que pareça belo.

A esquisitíssima fonte anterior deu lugar à batidíssima Arial, com a qual estou absolutamente acostumado em minha escrita acadêmica. Estou aplicando o mesmo aforismo que recomendo para a vida de todos: aposte na simplicidade. Há beleza na simplicidade. E um blog só precisa ser funcional. Podemos deixar as luzes faiscantes para as árvores de natal.

Outros ajustes serão feitos, em relação ao conteúdo, mas isso demanda um tempo e uma paciência de que não disponho no momento. Ficamos assim, com estas suficientes novidades, prenúncio de que o blog respira e quer sobreviver. E eu não quero soltar a pena. Nem deixar de dar minha opinião sobre tudo aquilo que ninguém me perguntou.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Quero aprender com teu pequeno grande coração

Eu realmente não gosto de postar nada que possa redundar em elogios, porque isso me soa como um simulacro de auto-elogio e, como aprendi com meu mestre de direito penal, Prof. Hugo Rocha, "elogio em boca própria é vitupério". Mas hoje abrirei uma exceção, porque o elogio não é para mim e eu quero guardar esta data.

Estava chegando a um restaurante perto de casa, junto com minha filha, quando ela avistou um rapaz dormindo no batente de uma porta. O cheiro dele era perceptível de longe, mas Júlia não pareceu notar ou não se importou. Apenas olhou o homem e disse que precisávamos ajudá-lo de algum modo. Perguntei o que ela achava que poderíamos fazer e me respondeu: dar um pouco de dinheiro ou de comida. Então lhe fiz uma proposta.

Fizemos nossa refeição. Questionei se ela realmente gostaria de levar a comida e me disse que sim. Então fui preparar uma quentinha, com alguns itens que me pareceram adequados: arroz, saladinha de feijão, carne. E acrescentei um refrigerante, porque sou contra a ideia de que doações devem se limitar a sopa e água. A gente não quer só comida. Também precisamos de um pouco de prazer, especialmente aqueles para quem a vida não costuma concedê-los.

Saímos do restaurante e eu expliquei para Júlia que aquele gesto, para nós, talvez fosse muito pequeno. "Mas, para aquele homem, certamente significará muito. Não se trata de comida: é fazê-lo ver que alguém se importou. Talvez, se em algum momento ele pensar em fazer algo ruim  roubar, p. ex. ―, ele se lembre que ainda existe gente como você." Então lhe passei a sacola, porque era essencial que ela mesma fizesse a entrega.

Nesse momento, havia um rapaz de bicicleta, conversando. Do pouco que escutei, pareceram palavras de incentivo. Aproximamo-nos e eu introduzi o assunto: "Passamos por aqui e lhe vimos. Minha filha gostaria de lhe dar algo para comer." Júlia então entregou a sacola e os dois homens reagiram com alegria. Desejaram coisas boas na vida de minha filha e não tive como não me emocionar muito. Veio-me à mente a lembrança de minha mãe, que ficaria maravilhada vendo sua netinha tendo aquela atitude  ― ela, que passou tantas privações na vida.

Desejei boa noite e seguimos nosso caminho. Júlia disse que sempre quis praticar uma boa ação como aquela. Eu a abracei e lhe disse que ela ainda fará muitas outras na vida. E eu espero que faça, mesmo. Que ela tenha tempo e oportunidades de fazê-lo e que nunca lhe falte o desejo sincero no coração de fazê-lo.

Foi a primeira vez que me senti de novo perto de minha mãe, conectado a ela de algum modo, através da criatura que ela mais amava na vida. Estou tentando cumprir minha promessa. Hoje, parece que algo funcionou.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Palavras ao vento, quando minhas

Desde criança, escrevi muitas estórias. Contos, projetos de romances. Já naquela época, leitor convicto, eu sonhava em ser escritor. Achava que podia produzir livros incríveis.

Ainda criança, houve um concurso de redação na escola. Podíamos inscrever mais de um trabalho, então tirei o segundo e o primeiro lugar. No dia da proclamação do resultado, recebemos a visita do grande Ruy Paranatinga Barata. Ele me entregou o prêmio, que muito acertadamente era um conjunto de livros, inclusive livros dele, um dos quais foi autografado. No autógrafo, ele me sugeria: "agora escreva um conto". Ingênuo, bobo mesmo, achei que um conto era pouco e comentei que pretendia escrever um romance. Sábio e paciente, ele apenas respondeu que eu devia começar por um conto.

Lá pelos 10, 11 anos, ganhei uma pequena máquina de escrever manual. Entenda: era o ano de 1985 ou 1986, então não há como pensar em microcomputador. Aquela maquininha sem nada de especial significou muito para mim. Talvez tenha sido o melhor presente de aniversário que ganhei de minha mãe. Ingênuo, bobo mesmo, eu achava que, a partir daquele momento, poderia escrever romances magníficos e me tornar um escritor rico. Mais ou menos como acontecera com Stephen King, que se tornou milionário graças a seus livros de terror, alguns dos quais eu adorava na época.

O destino de todos aqueles escritos foi o mesmo: as chamas. Bastava passar um pouquinho de tempo e eu me envergonhava daqueles exercícios canhestros. Não suportava a ideia de que alguém pudesse lê-los, então os queimava. Comigo é assim: nada de jogar no lixo; o negócio é queimar. Adoro fogo. Além disso, o fogo tem uma simbologia interessante e, no contexto, adequada. O fogo foi exorcizando aquele meu sonho de infância que, juntamente com todos os outros, ficou para trás.

O mais perto que cheguei de ser um escritor, afora algumas incursões pela redação acadêmica, foi este blog. Aqui me permiti falar, exercitar estilo, experimentar algumas vezes, testar a ironia, abrir combate direto. Um blog pode funcionar como um repositório de crônicas, então, com excesso de boa vontade, posso me considerar um cronista. O detalhe é que sou eu mesmo a fazer esse julgamento.

A propósito, neste blog, tive o atrevimento de publicar quatro textos de minha autoria: "Abandono" (28.7.2007), "Na sacada do sétimo andar" (30.6.2007), "Miniconto psiquiátrico" (23.11.2007, uma brincadeira de apenas 49 palavras) e "O desejo" (10.8.2012). Estão aí, dispersos na internet, onde sequer posso defender meus direitos autorais. Mesmo que alguém diga o contrário, esses textos são meus. Para o bem ou para o mal.

Esta semana, li matéria sobre pintura hiperrealista, uma forma de arte que me interessa bastante. Curiosamente, ela me inspirou uma ideia. Esta manhã, a ideia cresceu em minha mente a tal ponto que precisei me sentar à frente do computador. Ao que escrevi, chamei de "prólogo". Ingênuo, bobo mesmo, estou dizendo a minha própria vaidade que a coisa terá desdobramento, talvez vire algo grande. Tolice. Todas as minhas ideias fantásticas definham em alguns dias. A se repetir o que sempre aconteceu, nenhuma inspiração virá para completar o tal prólogo e, dentro em breve, a premissa extraordinária parecerá, tão somente, uma bobagem.

E assim deixamos de ter uma estória sobre arte, assassinato e remorsos, por um motivo trágico, que foi explorado pelo escritor e filósofo Jostein Gaarder, em seu romance O vendedor de histórias (2001): as ideias maravilhosas estão por aí, à procura de um escritor que as realize. Mas se falta o talento, elas morrem.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Polícia de trânsito estilo Belém

Dia desses, uma viatura da SEMOB, modelo Toyota Etios hatch, adesivada com as características do órgão de trânsito, estacionou na Av. Júlio César, no sentido Almirante Barroso - Aeroporto, em frente ao Cassino dos Oficiais da Aeronáutica. Obstruindo a ciclofaixa, diga-se de passagem. Ali foi instalado um radar móvel de velocidade, que deve ter causado infelicidade a muita gente. Afinal, há anos o Superior Tribunal de Justiça assentou que são válidas as autuações por excesso de velocidade registradas por radar, mesmo que sem qualquer aviso aos condutores. O objetivo óbvio é que todos se controlem o tempo inteiro, não apenas no momento e nos locais onde há fiscalização.

Hoje, a viatura e o radar móvel estão novamente no mesmo local. Mas eles têm companhia! Na Duque de Caxias, sentido Marco - São Brás, salvo engano entre as travessas Perebebuí e Pirajá, encontra-se um Fiat Uno branco, contendo apenas um adesivo azul na porta, indicativo de veículo a serviço da Prefeitura de Belém, sem especificação do órgão. Convenientemente estacionado à sombra das mangueiras, em cima da calçada. Por isso, os condutores não prestarão atenção. Nem verão o radar móvel posicionado bem ao lado.

Não sou contra a fiscalização de surpresa. O que me emputece na atuação da SEMOB são as coisas de sempre: primeiro, o caráter exclusivamente punitivo (e consequentemente arrecadatório), sem qualquer interesse em medidas educacionais, em abordagem ao condutor, nem que fosse para passar um pito antes de realizar a autuação, o que poderia ter algum efeito pedagógico, que certamente não será alcançado com o mero recebimento da multa pelo correio.

O segundo ponto revoltante é a seletividade. A SEMOB parece obcecada com o controle de velocidade e até está reduzindo o limite em várias vias da cidade (Zé-Nada Coutinho jamais admitirá que está se inspirando em Haddad), mas simplesmente não se interessa por filas duplas e triplas ou por cruzamentos bloqueados, que são diários e causam gravíssimos prejuízos à mobilidade urbana. Não aguento mais falar disso, porque nada é feito. A cidade vive travada e mecanismos, legais e simples, que poderiam ajudar não são aplicados, por falta de interesse.

O resultado é que, entra ano, sai ano, as coisas só pioram. E o meu dia de fúria se aproxima.

Twitterítica XXXVII

Sabe quando você termina de elaborar a prova e diz para si mesmo: "Estou de parabéns!"?
Pois é.

domingo, 22 de novembro de 2015

Luz negra

A pessoa mais pé-no-saco do mundo provavelmente é aquela que desponta como protagonista da belíssima composição de Nelson Cavaquinho, "Luz negra".

O sujeito é tão babaca que se atreve a proclamar que ninguém no mundo sofre mais do que ele. Fome, doença, guerra, injustiças as mais dantescas... nada disso é páreo para a extrema dor de cotovelo desse egocêntrico sem o menor traço de maturidade. Fico me perguntando se ele realmente acha que conseguirá despertar a simpatia de seu interesse amoroso demonstrando um temperamento tão depressivo e descontrolado.

Mas um sujeito como eu, no fundo, consegue entender como é que alguém se torna tão desequilibrado a esse ponto. E talvez por isso eu goste tanto dessa canção, inclusive interpretada na graciosa e convincente versão de Cazuza (aqui o vídeo do YouTube), gravada no programa Chico & Caetano, da TV Globo (1986), em cuja voz eu a escutei pela primeira vez.

Veja o tamanho da doença:

Sempre só
Eu vivo procurando alguém 

Que sofra como eu também
Mas não consigo achar ninguém

Sempre só
A vida vai seguindo assim
Não tenho quem tem dó de mim

Tô chegando ao fim

A luz negra de um destino cruel
Ilumina um teatro sem cor
Onde estou representando o papel
Do palhaço do amor

Sempre só
A vida vai seguindo assim
Não tenho quem tem dó de mim
Eu tô chegando ao fim

Eu tô chegando ao fim...
Eu tô chegando ao fim...

Eu tô chegando ao fim...

Serei eu um impostor?

Enquanto muitas pessoas fazem de tudo por parecer o que não são, em relação a qualquer coisa ― inteligência, beleza física, felicidade pessoal, realização profissional, harmonia no casamento, prosperidade financeira, etc. ―, outras têm motivos reais para comemorar suas conquistas. No entanto, não comemoram. E não o fazem simplesmente porque duvidam de seu merecimento em relação a elas.

Pode ser modéstia, mas também pode ser coisa mais séria. Você já ouviu falar na síndrome do impostor (ou fenômeno impostor)?

Trata-se de um transtorno psicológico basicamente de autoquestionamento intelectual, descrito ainda na década de 1978 pelas psicólogas Suzanne Imes e Pauline Rose Clance, então pesquisadoras da Universidade Estadual da Geórgia, a partir da observação de grandes empreendedores que não se mostravam capazes de internalizar e de aceitar o próprio sucesso. Como consequência, atribuíam seus avanços à sorte e desenvolviam o temor de serem desmascarados, o que pode conduzir a um quadro de ansiedade e de depressão. Os impostores tendem a ser perfeccionistas e não gostam de pedir ajuda para realizar suas tarefas. Podem chegar ao ponto de não perceber que é possível viver sem esse tipo de angústia.

Quem se acha uma fraude duvida de suas habilidades e, até mesmo, de seu pertencimento ao ambiente em que se encontra. Resulta daí que essas pessoas têm dificuldades até de falar sobre o problema, já que padecem de um medo abrangente de ser descobertas como farsantes. A questão é confundir a aprovação pelo sucesso como amor ou reconhecimento da dignidade.

O tema tem sido objeto de pesquisas e de publicações recentes, embora ainda não reúna condições para ser catalogado como transtorno mental pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Segundo as psicólogas que o analisaram primeiro, e que inicialmente consideraram as mulheres como mais propensas, uma causa pode estar na criação por famílias extremamente preocupadas com o sucesso, mormente se incorrerem em práticas de excesso de elogios ou de críticas. Pressões sociais potencializam o problema. Enquadrar-se em um grupo vulnerável, como uma minoria étnica, também foi considerado. Será que você foi ajudado por questões de simpatia? Outra questão relevante é você estar envolvido com algum tipo de novo empreendimento, como iniciar um curso superior.

Posso dizer que, no universo acadêmico, sofrer da síndrome do impostor é previsível, já que estamos o tempo inteiro sob alguma espécie de fiscalização. Imagino que, nos dias correntes, todos nós, professores, vivenciamos um pouco disso, de ambos os lados do balcão: o problema está em nós mesmos e em nossos alunos, que devemos ajudar, na medida do possível.

A American Psychological Association, responsável pela matéria que baseou esta postagem (link abaixo), lista algumas medidas para enfrentar a síndrome:

Conversar com os mentores. Eles podem oferecer suporte por meio da supervisão dos trabalhos, além de tentar convencer o pupilo da irracionalidade de seus sentimentos. De minha parte, sendo professor da graduação, penso que desvincular o aluno da obsessão por notas pode ser um caminho útil.

Admitir os próprios conhecimentos. Além de olhar para os que estão à frente, o impostor deve trabalhar com quem está em posição menos privilegiada, p. ex. realizando tutorias, o que pode ajudá-lo a perceber que já avançou em sua caminhada e que pode ajudar outros. De quebra, isso ainda permite ajudar outras pessoas, o que sempre vale a pena.

Identificar as próprias habilidades. Obviamente, ninguém é bom em tudo, então o impostor deve avaliar honestamente suas habilidades, a fim de separar aquelas em que já é bom e aquelas outras, que realmente lhe pedem dedicação para o aprimoramento.

Admitir que ninguém é perfeito. Não adianta buscar a perfeição; o seu compromisso deve ser fazer suas tarefas bem o suficiente e, ainda, reservar um tempo para apreciar os frutos do seu trabalho árduo, inventar recompensas para o sucesso e aprender a comemorar. Como sempre digo, nenhum trabalho se justifica por si mesmo. Não é saudável trabalhar por trabalhar: usufruir é humano.

Mudar de ideia acerca das próprias realizações. O impostor precisa romper com o ciclo supersticioso acerca de suas realizações, reduzindo expectativas ou compartilhando responsabilidades (pedindo ajuda para cumprir compromissos).

Procurar ajuda. Sim, procurar ajuda profissional é uma grande ideia.

Fonte: http://www.apa.org/gradpsych/2013/11/fraud.aspx

Mais:

  • Página de Pauline Clance (em que se pode ver que, como boa americana, ela já inventou uma escala para mensurar o transtorno): http://paulineroseclance.com/impostor_phenomenon.html
  • Em português: http://ihjtkent.org.br/pdf/anexo-salixfragilis.pdf

Novembro Criminológico: 1º evento

Foi excelente o IV Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisas "Direito Penal e Democracia", realizado nos dias 19 e 20 últimos, no Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará.

Não digo isso porque sou integrante do grupo, porque fui um dos palestrantes ou por amizade a tantos dos que tomaram parte ativa no evento. Fornecerei argumentos específicos para esta opinião.

Penso que já esgotamos nossa cota de juristas de gabinete, entrincheirados em suas vestes forenses e salas refrigeradas, discutindo questões estéreis que muitas vezes homenageiam uma concepção autocêntrica do Direito, uma visão ególatra, que perde a dimensão do Direito como uma ciência de razões práticas, ou seja, destinada a orientar o comportamento humano de forma concreta.

Penso que precisamos urgentemente de juristas ativistas, que não apenas detenham sólido conhecimento, mas sejam sobretudo fortemente comprometidos com a transformação da realidade ― que, convenhamos, não anda nada boa. Para tanto, precisamos debater com afinco temas substanciais, mas fazer isso não apenas por senso estético e sim com a preocupação de aprimorar o conhecimento jurídico e, na sequência, nossas condições existenciais. Por isso, já merece elogio a menção a "mobilização" no título do seminário e a escolha, para homenageada, de uma professora que representa tudo isto que estou mencionando.

O seminário reuniu uma gama de elementos para torná-lo um respeitável evento acadêmico: teve chamada de artigos e apresentação dos mesmos ao público, após aprovação (e eu não poderia deixar de mencionar a participação de respeitáveis integrantes da comunidade do CESUPA, tais como João Victor Araújo, Emy Mafra, Vitória Oliveira e Tainá Ferreira); teve palestrantes cujo renome extrapola as fronteiras do Brasil, a exemplo de Juarez Tavares, Adriana Facina e, claro, a homenageada, Vera Andrade; teve a presença de ilustres representantes locais, de instituições públicas e da sociedade civil, verdadeiramente comprometidos com as temáticas; teve intensa participação de estudantes na organização; teve envolvimento interinstitucional; teve temas cuidadosamente escolhidos, sobre assuntos urgentes e claramente voltados à valorização do ser humano.

Um aspecto que considero particularmente louvável foi reunir acadêmicos aos ativistas e a integrantes da sociedade civil organizada, dando voz, em pé de igualdade, àqueles que muitas vezes não são ouvidos.


Na foto acima, temos a força jovem que arregaçou as mangas e viabilizou o projeto, à frente a Profa. Luanna Thomaz. Palestrante do primeiro dia, apareço aí entre minha querida amiga dos tempos da graduação, Anna Cláudia Lins, hoje aguerrida advogada de direitos humanos, e o Prof. Juarez Tavares. À direita dele, a Profa. Adriana Facina.



Na segunda foto, nossa equipe comemora a palestra final tendo ao centro a Profa. Lorena Fabeni, que comanda um bonito trabalho em Marabá (UNIFESPA), e à direita dela, a homenageada, Profa. Vera Andrade.

Outro aspecto altamente meritório foi a dimensão cultural do evento. As mesas de trabalho se alternavam com apresentações musicais ou performances, tornando visíveis certos segmentos habitualmente vulneráveis.



No primeiro dia, uma dupla do Guamá se apresentou. Eu, que não gosto de rap, tive que dar o braço a torcer: as letras eram excelentes, de elevada qualidade linguística e com uma mensagem viva, de quem sente na pele aquilo que canta.



No segundo dia, três representantes de um grupo duplamente discriminado ― por serem mulheres e por serem negras ― mandaram o seu recado em uma mesa também composta apenas por mulheres.

Eu estou orgulhoso do que vi. Quem soube aproveitar, p. ex. dando um tempo no onipresente celular, recebeu um grande produto em suas mãos. Já quero mais.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Finalmente, algo sendo feito

Um ano e quatorze dias depois da chacina que vitimou dez pessoas em cinco diferentes bairros de Belém, sendo a primeira um cabo da Polícia Militar e as demais, civis que se supõe terem sido mortos por membros daquela corporação, como retaliação, finalmente foi praticado um ato formal que pode levar ao esclarecimento do caso. Trata-se da instauração do conselho de justificação, instrumento legal de caráter persecutório, por meio do qual se analisa a capacidade de um oficial em permanecer no serviço ativo. Como consequência, o oficial pode ser excluído da força, se responsabilizado por violações graves aos seus deveres funcionais ou ao pundonor militar.

No curso do conselho de justificação, como nos demais procedimentos persecutórios, serão colhidas provas para se decidir se os acusados ("justificantes") são culpados das acusações. Em caso afirmativo, e se os conselheiros decidirem pela indignidade, o governador do Estado deve deliberar e, se acolher a decisão do CJ, pode aplicar prisão por até 30 dias, transferir os oficiais para a reserva remunerada ou, se cabível a declaração de indignidade para o oficialato, remeter os autos para o Tribunal de Justiça do Estado, a quem cabe esse julgamento de ratificação.

Há muitas questões que precisam ser explicadas, seja para se confirmar as suspeitas contra todos os mortos, seja para se limpar seus nomes, pois a ninguém interessa um denuncismo generalizado, capaz de provocar insegurança social. Precisamos saber, por exemplo, se o cabo Antônio Figueiredo realmente possuía envolvimento com o crime organizado, um possível grupo de extermínio e/ou milícia, porque esse tipo de câncer é o que existe de pior dentro de uma corporação policial. Ele precisa ser combatido sem trégua, porque o mínimo que se espera de uma força pública destinada a proteger os cidadãos é que ela não se converta em uma empresa de extorsão e assassinato, dentre outras perversidades.

E precisamos, também, de atitudes enérgicas para combater o vale tudo das ruas, que elimina qualquer legalidade e transforma o mundo real em uma espécie de jogo de video game, daqueles ultraviolentos, em que a meta do jogador é matar o maior número possível de inimigos. Há motivos os mais diversos para isso, sejam os de ordem legal (não existe pena de morte no Brasil), sejam os éticos, que deveriam estar o tempo todo na mente das pessoas, como critério preponderante para as suas decisões.

Por fim, estão de parabéns os integrantes da sociedade civil, familiares e amigos dos mortos, e organizações de defesa dos direitos humanos, que têm envidado imensos esforços para romper a habitual inércia do poder público e os vícios corporativos que mantêm em silêncio mesmo os mais atrozes abusos. Sem a força da sociedade civil, com certeza não teríamos saído da estaca zero. Afinal, a quem interessa?

A respeito: http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2015/11/pms-acusados-de-omissao-em-chacina-podem-ser-expulsos.html

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Sessão de psicanálise III - A segunda temporada

[Alerta de spoiler! Um pequeno spoiler, que não revela o mais importante. Mas, se ler o texto na íntegra, não reclame depois.]

Órfão irresignado de Sessão de terapia, um dos melhores produtos de televisão brasileira, cujo encerramento prematuro, baseado sobretudo em custos de produção, deixou-me uma revolta sem cura, esta semana retornei ao seriado Psi, da HBO Brasil, como forma de tentar aplacar a minha síndrome de abstinência. As postagens abaixo mostram que Carlo Antonini nunca me estimulou tanto quanto Theo Ceccato, a começar pelo fato de que não acredito em psicanálise, mas a segunda temporada da série, ao menos a julgar pelo primeiro episódio, demonstra amadurecimento.

Quando a trama de Psi recomeça, um ano se passou desde os eventos da primeira temporada. O atormentado protagonista realmente se permitiu um ano quase sabático na Itália, junto a suas raízes, e provavelmente a experiência lhe fez bem. Digo isso porque ele se apresenta como um homem bem mais sensato agora, quando ao invés das irresponsabilidades do primeiro ano, ressurge como diretor clínico de um abrigo para mulheres vítimas de violência. Aliás, um senhor abrigo, com infraestrutura para colocar no chinelo muita clínica particular por aí. Inverossimilhanças de TV.

E este primeiro episódio abordou, justamente, o tema da violência contra a mulher, que está na ordem do dia. Nele, vemos a estória de Cecília, uma esposa que afirma vir sendo agredida moralmente há algum tempo, mas que chega ao estágio da surra violenta, a ponto de recorrer a ajuda médica. Mesmo assim, ela insiste em não promover medidas legais contra o pai de sua filha.

Pelo que entendi, o objetivo do roteiro era enfatizar a extrema resistência que muitas mulheres têm de responsabilizar seus companheiros, pelos mais diversos motivos. No caso de Cecília, o motivo alegado era a filha: o que ela pensará de mim se souber que mandei seu pai para a cadeia? A certa altura, Carlo fornece uma leitura psicanalítica para esse comportamento: Cecília acha que o marido bate nela porque se importa e isso seria uma expressão de amor, então ela não consegue desvencilhar-se dele. O rumo que os acontecimentos tomam, quando ela, já divorciada, vai atrás do ex, parece ratificar essa interpretação.

Na subtrama, vemos a filha do mantenedor do abrigo conversando com Carlo. Um ano antes, ela foi agredida pelo marido, que lhe arrancou um olho. Ela fala disso aparentemente sem mágoa. "Ele arrancou meu olho. Foi para a cadeia." Pronto. Parece que tudo está resolvido. Suas demonstrações de raiva recaem sobre a época em que eles ainda eram casados e se agrediam mutuamente. O ex-marido era um perdedor que nem se interessava sexualmente por ela, que o humilhava publicamente. Relacionamentos são assim, ela acredita. Então tá.

O fato é que o episódio "O abrigo" foi realmente muito bom. Gostei de sua condução, assim como da linguagem empregada. O aborrecido didatismo da série continua lá. A palestra inicial, a conversa com a jornalista e depois com um policial são os recursos encontrados para fornecer as explicações "técnicas", mastigadas, que o telespectador não descobriria sozinho. Mesmo assim, parece uma saída cênica menos forçada que as anteriores.

Destaco, quanto à linguagem, duas cenas. A primeira, logo no começo, expõe em off os gritos de Cecília sendo espancada. Enquanto isso, a câmera vaga lentamente pelos apartamentos em volta e vemos um casal reagindo àqueles sons, que eles sabem o que são, mas mesmo assim nada fazem. Eles parecem constrangidos em conhecer aquele segredo que não pode vir à tona. Uma cena brevíssima, mas eficiente em mostrar o silêncio cúmplice daqueles que conhecem casos de violência doméstica.

A segunda cena corresponde à imagem acima. Nela, vemos Cecília tomando café com o marido, após a surra (e após ter procurado ajuda, contando o ocorrido para estranhos). Como ficar indiferente? Como negar os sentimentos agudos em volta? O marido ensaia uma nova agressão e a mulher, apavorada, recua. Farelo de bolo se espalha. Ela se levanta, pega um pano e limpa o marido. Ele ri do farelo preso no cabelo comprido dela e ajuda a tirar. Ela descasca uma maçã e lhe serve. Ele come a fruta com uma raiva crescente e então explode: a segunda surra acontece. A maquiagem feita na atriz ficou muito convincente.

Enfim, os meandros da mente humana merecem muita atenção. Por isso, vale a pena ver Psi. Espero que os próximos episódios mantenham a qualidade.

Antecedentes no blog:

Postagem após ver um episódio: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/04/sessao-de-psicanalise.html

Postagem após ver toda a primeira temporada: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/06/sessao-de-psicanalise-ii-depois-do-fim.html

Novembro criminológico

Algo está acontecendo no cenário acadêmico paraense. Algo de importante, promissor e  assim espero  transformador. Porque, como afirmam os adeptos da Teoria Crítica, o conhecimento não se justifica por si só: ele precisa ser um elemento de transformação do mundo. E se há um campo que precisa ser mudado drástica e urgentemente é o das práticas punitivas. Precisamos de políticas públicas realmente sensatas, mas elas só começarão a surgir quando a própria sociedade mudar as concepções que hoje defende, o mais das vezes por pura ignorância, uma ignorância dolosamente forjada entre inúmeras agências, notadamente a mídia e políticos ordinários em busca de votos irracionais.

Mudanças profundas exigem conhecimento, reflexão e debate. Por isso, é valiosíssimo que, neste mês de novembro, tenhamos em nossa cidade nada menos do que três eventos dedicados especificamente ao estudo das criminologias.


Nos dias 19 e 20, o Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia, da Universidade Federal do Pará, que gentilmente acolhe acadêmicos de outras instituições, promoverá o seu IV Seminário, tendo como tema "Criminologias, punitivismo e mobilização: homenagem à Profa. Vera Pereira de Andrade", no auditório do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA.

Tudo me agrada neste evento, a começar pelo fato de que é uma construção dos estudantes, sob a condução da Profa. Luanna Tomaz. É extremamente importante conclamar os estudantes à ação, em vez de serem meros observadores de um processo de ensino-aprendizagem do qual eles são, na verdade, os protagonistas. Além disso, a percepção da alteridade e a proposta transformadora estão presentes desde o título do evento, deixando claro o que existe no DNA de quem se interessa por criminologia.

Organizado sob a forma de grupos de trabalho, o evento terá importantes painelistas (e eu lá no meio), organizados em mesas, conforme abaixo:

Punitivismo e resistência democrática ― Juarez Tavares (UERJ), Ernani Chaves (UFPA) e Marco Apolo (Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos), sob a coordenação do Prof. Jeferson Bacelar (UNAMA).

Neoliberalismo, criminologia e subjetividades ― Flávia Lemos e Hélio Moreira (UFPA), Yúdice Andrade (CESUPA) e Max Costa (UNIPOP), sob a coordenação do Prof. Paulo Corrêa (UFPA).

Criminologia crítica e a política criminal sobre drogas ― José Araújo de Brito Neto (OAB) e Artur Couto (Frente Paraense de Drogas), sob a coordenação do defensor Público Vladimir König. Apesar de constar do folder, Salo de Carvalho (UFRJ), infelizmente, teve um imprevisto e não poderá comparecer.

Criminologia, cultura e resistência ― Adriana Facina (UFRJ), Tony Leão da Costa (UEPA), Francisco Batista (Comissão Justiça e Paz da CNBB e Tela Firme), sob a coordenação do Prof. Rômulo Moraes (UFPA).

Cidades rebeldes: território policiado ― Aiala Couto (NAEA), Jean-François Deluchey (UFPA), Jorge Lopes Farias (Comissão de Defesa da Igualdade Racial e Etnia da OAB/PA), sob a coordenação do advogado Lucas Sá (Instituto Paraense de Direito de Defesa).

Entre criminologias, mulher e o sistema de justiça criminal ― Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC), Lourdes Barreto (GEMPAC) e Luanna Tomaz (UFPA), sob a coordenação da Profa. Lorena Fabeni (UNIFESPA).

Na oportunidade, a Profa. Vera de Andrade relançará o seu livro Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização, um grande título da criminologia brasileira, que estava esgotado há anos.


Para maiores informações: 
https://www.facebook.com/Grupos-de-Estudos-e-Pesquisas-Direito-Penal-e-Democracia-194816343930223/?pnref=lhc

Nos dias 24 e 25, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região abrigará o II Fórum Internacional de Criminologia de Língua Portuguesa, sob o tema "Crime, justiça & latinidade: contribuições criminológicas". Trata-se de um evento da Associação Internacional de Criminologia de Língua Portuguesa com o apoio local do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, à frente os professores Marcus Alan de Melo Gomes e Ana Cláudia Bastos de Pinho. Da comissão científica também faz parte a Profa. Cristina Sílvia Alves Lourenço (CESUPA).

Teremos, como conferencistas, Cândido da Agra (Portugal), Renato Campos Pinto de Vitto (Brasília), Vera Malaguti Batista (Rio de Janeiro) e Máximo Sozzo (Argentina). 

Como painelistas, teremos representantes de instituições ligadas à gestão criminal (Vladimir König e José Arruda da Silva, pela Defensoria Pública, o último também pelo Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária); e Sumaya Saady Morhy Pereira (pelo Ministério Público do Estado); além de acadêmicos: Jorge Quintas (Universidade do Porto), Marília Montenegro Pessoa de Mello (UNICAP e UFPE), Ruth Estêvão (USP Ribeirão Preto) e Fernando Albuquerque (UFPA).


Para maiores informações: http://forum-aiclp.blogspot.com.br/

O evento internacional acima atraiu dois criminólogos com formação em História, o que lhes permite abordagens interessantíssimas para o nosso campo. Assim, o nosso Grupo Cabano de Criminologia Crítica, recentemente criado, aproveitou a oportunidade para convidá-los a palestrar no que será o primeiro evento científico de nossa realização.

Surgiu, assim, o "Seminário História, Criminologia e Crítica", que será realizado no dia 23 de novembro, no Auditório Prof. Ney Sardinha, do curso de Direito do CESUPA.

Os palestrantes serão Hugo Leonardo Santos, professor de Direito Penal e Criminologia da CESMAC/AL, que falará sobre "História crítica dos conceitos jurídico-penais", e Marco Alexandre Serra, professor da PUC/PR, cujo tema é "Percepções criminológicas quanto às revoltas populares no Brasil do século XIX". Ambos os palestrantes são doutorandos e têm obras publicadas.

Antes deles, falará um dos fundadores do grupo, Adrian Silva, mestrando pela UFPA e já ativo palestrante, para apresentar as nossas propostas de trabalho e estimular mais gente a se juntar a nós.


Para maiores informações: http://criminologiacabana.com/

Tenham certeza de que é um privilégio aprender com mentes tão privilegiadas e produtivas, nessa inédita e rara oportunidade de tê-las reunidas em nossa cidade. Afinal, fazer academia é difícil em si mesmo, mas é especialmente difícil em uma região como o Pará, prejudicada desde as distâncias colossais dos grandes centros até à falta de políticas públicas consistentes para o desenvolvimento de regiões como a nossa. Portanto, nós é que precisamos arregaçar as mangas e fazer acontecer.

Por oportuno, destaco a necessidade imperiosa de que cada grupo e cada instituição que trabalha com o conhecimento procure somar esforços, em benefício de todos. Precisamos estar realmente juntos nesta missão dificílima de transformar o nosso Estado em um autêntico celeiro de conhecimentos científicos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Entre caranguejos, amigos e lembranças

Somos uma família que recebe. Minha mãe se tornou uma pessoa dessas que sentia falta dos amigos e, vez por outra, inventava um almoço sem nenhum motivo além de reunir aqueles de quem se gosta. Sua casa era, de certa forma, um ponto de encontro. Houve épocas em que estranhávamos se não aparecia ninguém para almoçar por três, quatro semanas consecutivas.

A verdade é que minha mãe era um elemento agregador. Mesmo que fossem os amigos dos filhos, ela era o amálgama da casa, para tudo. Houve quem nos dissesse, durante os funerais, "não se esqueçam de nós", justamente pela percepção de que, sem ela, estaremos mais dispersos. A partir de sua ausência, portanto, tornou-se difícil pensar na ocorrência desses encontros, mesmo que todos saibamos o quanto eles são importantes para todos nós.

Ontem, pela primeira vez em algumas semanas, tivemos um encontro desses. E ele surgiu de maneira absolutamente espontânea. Minha esposa e tia, irmã de minha mãe e que com ela morou desde os 10 anos, decidiram comer caranguejo. Era apenas o nosso almoço de domingo, mas elas decidiram convidar duas pessoas muito próximas, que também apreciam a iguaria. Isso implicaria em dois maridos e duas crianças. Então mencionei uma família querida, que já vinha demandando se reunir a nós, justamente os amigos que estiveram conosco em Mosqueiro, no dia 27 de setembro, o último momento feliz de minha mãe.

Acabamos então com 12 visitantes para o almoço, compartilhando caranguejos graúdos, saborosos e cuja carne se soltava facilmente, um feijão maravilhoso, carne para as crianças, sobremesa. Apenas mais um almoço típico em nossa família. Mas era diferente, pela ausência, dura como rocha.

Anos atrás, tomei conhecimento de um samba famosíssimo, gravado por vários artistas conhecidos de antigamente, tais como Elizeth Cardoso, que o popularizou, Nelson Gonçalves e Clara Nunes. Chama-se "Naquela mesa". Informa-me a Wikipedia que se trata de uma composição de Sérgio Bittencourt, filho do conhecido músico Jacob do Bandolim, que compôs sob o impacto da morte de seu pai.

Quando escutei o samba pela primeira vez, fiquei muito emocionado. E olha que, naquela época, minha mãe nem doente estava. Felizmente, não me lembrei do samba ontem. Lembrei só agora, ao escrever estas linhas. Basta conhecer a letra para saber o motivo.

Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre, o que é viver melhor,
Naquela mesa ele contava estórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente e contava contente
O que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho, eu fiquei seu fã

Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa no canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto doi a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala no seu bandolim
Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele
Tá doendo em mim

sábado, 7 de novembro de 2015

Um shopping e duas crônicas de Júlia

Desde março de 2014 não publico nenhuma das historietas proporcionadas por minha filha, com suas tiradas e provocações. Abstraindo os motivos para tanto, quero compartilhar dois episódios ocorridos ontem, quando uma contingência de origem escolar me levou a um dos shoppings da cidade, acompanhado da dita cuja.

I

Júlia se interessou pela decoração natalina, uma imensa árvore instalada sobre um iglu. Já estávamos de saída, subindo de escada rolante. A cada lanço de escada, ela parava e olhava mais um pouco, o que estava me atrasando e aborrecendo. De repente, ela soltou uma exclamação irritada e me disse que precisávamos falar com alguém que cuida da decoração do shopping. Eu me aproximei e ela disse:

 Veja! ― Apontou, para baixo, um dedo enérgico.

― De que você está falando? ― Perguntei porque ainda não identificara o motivo da reprovação.

― No Polo Norte não existem pinguins!

Olhei melhor a decoração e vi que, em volta do tal iglu, havia estátuas de pessoas vestidas de esquimós (inuit é o termo adequado), ursinhos polares e pinguins (os ursos, por sinal, bem menores do que os pinguins). Júlia ficou furiosa porque, como você bem sabe, no Polo Norte existem ursos polares, porém não pinguins. E no Polo sul existem pinguins, porém não ursos polares. E Júlia, assim como o pai, não tolera esse tipo de erro, uma clara demonstração de preguiça: montaram a decoração em cima de um clichê, sem nenhuma pesquisa.

Só para constar, Júlia aprendeu essa informação em uma das fontes mais ricas de conhecimento para as crianças brasileiras: um gibi da Turma da Mônica. Na estória, Franjinha explicava noções de geografia para a turminha e Cebolinha ficava zoando Mônica, que errava tudo o que dizia, inclusive comentários sobre os aludidos animais.

Também para constar, eu não procurei o SAC para reclamar da decoração. Mas bem que Júlia queria.

II

Júlia pediu para brincar no malsinado iglu. Olhei para a desgraça, lá embaixo, enquanto estávamos a um lanço do guichê de pagamento do estacionamento. Neguei e disse que, com certeza, alguém estava cobrando ingresso para alguma coisa boba.

― Como você sabe que é pago? ―  protestou a pequena.

― Ora, porque tudo custa dinheiro na vida ― respondi.

― Isso não é verdade! Será possível que tudo tem que custar dinheiro?! Isso não é certo!

―  Mas, infelizmente, minha filha, é assim.

Júlia me lançou um olhar inconformado e percebi que ela queria desafiar o meu argumento. Começou assim:

― A gente paga para nascer?

― Para nascer em si, não. Mas hoje em dia precisamos de dinheiro para pagar um plano de saúde e, com isso, ter direito a consultas médicas, exames, parto. Também precisamos comprar remédios, etc.

Por não retrucar, percebi que ela não tinha argumentos para aquela questão. Então apelou para o que, provavelmente, seria o seu trunfo:

― A gente paga para morrer?

― Nós precisamos de dinheiro para comprar um caixão e o lugar onde a pessoa será enterrada. E se quisermos algum tipo de cerimônia, isso custa dinheiro também.

Júlia ficou visivelmente amuada. Talvez, aos 7 anos, ela finalmente esteja começando a entender que a vida tem ônus que, até aqui, ela ignorou. E, admito, em geral sou muito seco para lidar com questões práticas. Fui criado por uma mulher que, com a melhor das intenções, deixou pouco espaço para a fantasia. Eu, pelo menos, deixo que minha filha seja simplesmente uma criança, então mudei o rumo da prosa, até porque tinha o meu próprio trunfo: um presentinho, que obviamente, também custou dinheiro para mim. E, para Júlia, a submissão a algumas ordens, tais como dizer que todos os personagens de My little pony são horrorosos. O que uma criança não faz por um presente?!

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Dia 3

Em algum momento, o dia 3 do mês deixará de ser uma sombra triste. Mas hoje, em especial, ele marca exatamente o primeiro mês de ausência de nossa mãe, então é uma data soturna, que potencializa essa perene sensação de estranheza.

Mas as lamúrias precisam parar. Este é apenas um registro.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dias de finados passados e o atual

Em 2007, publiquei alguns poemas demonstrando visões artísticas sobre o dia de finados:

  • Um haicai do chinês Bashô, de antes de Cristo: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dia-de-finados-bash.html
  • Dois textos da poetisa portuguesa Dalila Teles Veras: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dias-de-finados-dalila-teles-veras.html
  • Um poema do brasileiro Manuel Bandeira: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dia-de-finados-manuel-bandeira.html
  • E uma bela contribuição do poeta argentino Jorge Luís Borges: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2007/11/dia-de-finados-jorge-lus-borges.html
Sempre fui atraído por assuntos ligados à morte; sou de cemitérios e arte tumular. Mas, até então, era apenas curiosidade. Há quase 11 anos, senti pela primeira vez o gosto amargo de uma perda realmente doída. E há meros 30 dias, minha mãe deixou este plano, colocando-me em um vazio que arte alguma expressou até o momento. 

Somos um país de colonização portuguesa e, por isso, com forte influência do catolicismo. Devido a isso, de geração a geração, somos ensinados a promover o culto ao sofrimento, ao jejum, aos sacrifícios. Somos ensinados de que a alegria e o prazer são venenosos e devem ser contidos, porque paira sobre nós um Senhor dos Exércitos, pronto a justiçar qualquer mau passo e colocar a vingança na conta do nosso próprio livre arbítrio. Vendo reportagens sobre o dia de finados, feitas hoje, pude ver como essas ideias são arraigadas entre nós.

Museo de las Momia de Guanajuato: de repente, senti vontade de visitar
o México. Saiba mais em http://www.momiasdeguanajuato.gob.mx/index.html
Em um dia como hoje, sinto inveja dos mexicanos. Como eu já sabia e esta reportagem aqui ajuda a esclarecer, desde cedo eles são educados sob a compreensão de que a morte faz parte da vida; não adianta nem é razoável temê-la e sofrer por ela.

O dia de los muertos é um dos momentos mais gloriosos da vida mexicana, um dia em que se lembram as pessoas amadas que já partiram, com festa, comida e estímulo ao senso de família. É apoteótico. Tem os seus exageros, claro, como mandar limpar os ossos inumados a cada dois anos, mas é também libertador.

Se não fôssemos doutrinados a estacionar na dor, seria mais fácil fazer o caminho da esperança.

domingo, 1 de novembro de 2015

Necessárias tintas vermelhas ― Sugestão de leituras críticas


Preocupadas com a necessidade de suscitar debates sobre temas pouco explorados e, em geral, dominados pela ignorância e pelo preconceito, a Boitempo Editorial e a Carta Maior lançaram, em 2012, a coleção Tinta Vermelha, autodefinida como um conjunto de "obras de intervenção e teorização sobre acontecimentos atuais". Bem na linha crítica segundo a qual mais importante do que explicar a realidade é transformá-la, ou seja, nós estudamos e teorizamos sempre com a intenção de modificar o que precisa ser mudado na sociedade.

A editora explica que o título da coleção alude ao discurso do filósofo esloveno Slavoj Žižek, aos participantes do Occupy Wall Street, ocorrido na Liberty Plaza, Nova Iorque, em 9.10.2011, que se tornou um marco porque originou um novo modo de fazer protesto popular, tendo como foco as políticas neoliberais que regem o mundo. Disse ele: "Temos toda a liberdade que desejamos ― a única coisa que falta é a 'tinta vermelha': nos 'sentimos  livres' porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade".

A proposta de esquerda fica clara no próprio modo de produzir a obra coletiva: a partir da seleção do tema, alguns autores são convidados a produzir seus artigos, mas os direitos autorais são cedidos (assim como sobre fotografias) e o responsável pela arte gráfica também abre mão de remuneração, tudo para baratear o preço de venda ao público, permitindo maior difusão das ideias. Nem por isso a qualidade cai.

A obra de lançamento (2012) teve como tema Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que me foi apresentada por minha querida monitora Vitória Monteiro e por ela utilizada em sua excelente monografia de conclusão de curso, assim como o título seguinte, Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013). Depois vieram Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? (2014) e, finalmente, Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (2015).

Acabei de ler Bala perdida, uma interessante compilação sobre violência policial, a violência que tanto é legitimada pelo Estado por meio de mentiras sobre fatos (os autos de resistência são a expressão formal mais extrema disso) e ideologias ligadas ao tema da segurança pública quanto, sobretudo, pela própria sociedade, tendo em vista um fenômeno que considero da maior importância em nosso tempo: a legitimação social da barbárie pela progressiva perda dos vínculos comunitários, o que repercute na produção de normas jurídicas crescentemente negadoras de direitos fundamentais.

Bala perdida reúne 17 ensaios breves, que dão voz não apenas a estudiosos, profissionais e acadêmicos, mas também aos familiares das vítimas da violência policial e a um oficial da própria Polícia Militar. As abordagens versam sobre a falência do modelo organizacional adotado no Brasil, herança dos desvarios dos militares que comandavam o país sob a forma de um Estado de exceção: foi em 1970 que surgiu a Polícia Militar, como força auxiliar do Exército, treinada para a solução de conflitos pela lógica do enfrentamento bélico ― algo completamente incompatível com um Estado democrático de Direito.

Além disso, a obra também versa sobre a violência inerente às práticas policiais, a guerra às drogas, a militarização do cotidiano e a exploração midiática, terminando com uma comovente narrativa sobre mais uma das vítimas do que, não à toa, Zaffaroni chama de genocídio ― que, em nosso país, assume a feição de extermínio institucionalizado de jovens pobres e negros (ou, como diriam Caetano e Gil, "quase pretos de tão pobres").

De modo mais pontual, esta leitura fornece importantes informações para entendermos a importância da desmilitarização da polícia, proposta com a qual mais de 74% dos membros da própria PM concordam (exceto, como é previsível, entre os oficiais de mais alta patente, sequiosos de conservar seus privilégios). Esse é o conteúdo da Proposta de Emenda à Constituição n. 51, de 2013, que teve como última movimentação uma audiência pública em 21 de outubro passado. Trata-se da mais completa proposta disponível sobre unificação das carreiras das polícias civil e militar, que hoje estão organizadas de modo a competir e a atrapalhar uma à outra, sendo essa uma das causas dos números pífios de elucidação policial de crimes no Brasil, abaixo de 10%.

A quem se interessa pelos temas e pelo tipo de abordagem, vale muito a pena ler.

Em tempo:

Justamente hoje, o Empório do Direito publicou artigo contendo uma crítica feroz aos principais aspectos da PEC acima referida: a desmilitarização e a unificação das polícias, estabelecendo o chamado "ciclo completo", por meio do qual a mesma corporação exerceria as atividades de policiamento ostensivo, prevenção e investigação criminal (leia aqui). Invocando fundamentos da criminologia crítica, o autor sugere deslumbramento e ingenuidade por parte de quem defende essas propostas, desde a premissa de que seriam meras importações acríticas de modelos estrangeiros, algumas oriundas de países subdesenvolvidos.

Como acadêmico, entendo ser da maior importância debater os diferentes enfoques que um tema permite, ainda mais em se tratando de questão assaz delicada e polêmica. São oportunos os senões suscitados no artigo, mas devo admitir o meu saco cheio com essa mania de criticar o status quo, criticar a crítica e depois criticar a crítica da crítica, que nos mergulha em uma regressão infinita que somente poderia interessar a quem não tem um problema a resolver.

Parece-me bastante óbvio que qualquer assunto sempre pode ser aprofundado em um nível mais sutil do que o da discussão atual. Contudo, as grandes mudanças que o país reclama exigem tempo para virarem leis e, depois, para serem implementadas. Precisamos começar em algum momento. Não podemos permitir que vidas continuem sendo perdidas a rodo enquanto não atingimos o nível de satisfação plena dos teóricos (nível que, provavelmente, não existe). Estamos cientes de que mudanças estruturais nas polícias são insuficientes para resolver o descalabro que vivemos, mas entendo que são medidas importantes e urgentes. No mesmo livro Bala perdida, Maria Lúcia Karam é enfática em asseverar que, sem o fim da política de guerra às drogas, a desmilitarização seria inútil. Mas ela não menospreza a desmilitarização por causa disso.

Então este é o meu ponto: precisamos fazer alguma coisa já. Muito ajudaria, ao menos, que os críticos das propostas existentes fizessem algo mais do que criticar e oferecessem alternativas concretas, viáveis, ao quanto está posto.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

"Há mortes..." (até em hospitais)

Não compro esse discurso barato de insegurança pública, de onda de crimes e outros que tais com que a imprensa nos bombardeia, em sua faina diária de potencializar dificuldades para que seus clientes vendam as facilidades, sejam esses clientes empresas de alarmes, monitoramento eletrônico, cercas eletrificadas ou blindagem de veículos, sejam eles políticos populistas à cata de um mandato eletivo, para comporem as tais bancadas da bala, em geral compostas por quem não poderia admitir publicamente tudo o que já fizeram em suas trajetórias.

Entretanto, tomei conhecimento também com medo, e não apenas com tristeza, de que ontem um rapaz foi assassinado por fuzilamento dentro de um hospital, em pleno centro da cidade. Bastaria isso para apavorar qualquer um, mas piora quando sabemos que o rapaz estava preso e vigiado por dois policiais militares; que cinco homens encapuzados e armados adentraram uma casa de saúde frequentada todos os dias por um sem número de usuários, de todas as idades, e perpetraram essa barbaridade. Isso nos transmite uma sensação terrível, porque nos mostra como as nossas vidas não valem nada para esses sociopatas. Afinal, basta que você veja algo que não devia para se tornar novo alvo, além do risco de danos colaterais.

Sei que a conversa inevitavelmente cairá na questão de que o alvo era um "bandido", suspeito de participação no homicídio de um policial. Sei que o caso será tratado como justiçamento de vagabundo e, apenas por isso, já ganhará a simpatia e o apoio de uma expressiva parcela da população  que eu, em meus delírios, de bom grado amarraria dentro de um foguete e despacharia na direção de um buraco negro (para testar se eles levam mesmo a outra dimensão: benefício científico) ou do Sol, para um bom derretimento.

Já soube de casos assim acontecendo em cidades como o Rio de Janeiro. Pessoalmente, desconheço algo do gênero aqui em Belém, em tempos recentes, embora não me surpreenda que o episódio de ontem esteja longe do pioneirismo. A preocupação é que o evento isolado vire tendência, o que seria muito fácil em uma sociedade permissiva e violenta, nos seus modos de agir e em sua capacidade de justificar o horror.

Por tudo, gostaria de deixar uma questão absolutamente esclarecida: eu não gosto de violência. Não a tolero, não a minimizo, não a justifico. E a violência a que me refiro é... qualquer uma! Porque o que se segue a esse tipo de tragédia urbana são novas truculências, como os discursos de legitimação da barbárie e a inacreditável polarização maniqueísta dos "bons" e dos "maus". Se critico a morte de um bandido (será que era? e mesmo que fosse), é porque sou de esquerda, babaca, fora da realidade, mereço ser assassinado e ter as mulheres de minha família estupradas e torturadas, etc. Depois vem o discurso sobre ninguém lamentar as mortes de policiais em serviço. Pois aqui vai o reparo: sim, eu lamento muito as mortes de policiais em serviço, fora dele ou por causa dele, pelo simples fato de que são gente, também.

Estou cansado de ver vidas humanas sendo desperdiçadas todos os dias, aos montes, sem que quase ninguém se importe com isso de verdade. Gente que teve nome, família, amigos, história e, talvez, até sonhos por realizar. E tudo isso se perdeu. Não importa de onde essas pessoas saíram; todas mereciam uma chance de autorrealização e de felicidade. Mas se fomenta uma cultura de ódio e de beligerância, que a alguém beneficia sem dúvida, e que vai apagando a humanidade e nos transformando em uma grande sociedade distópica de filmes de ficção científica. Um lugar onde ninguém quer viver.

Então qual é a sua? Vai continuar aceitando justificativas ou vai finalmente entender que o objetivo não pode ser vencer uma guerra? Não precisamos de uma guerra. Não vivíamos assim antes. Podemos restaurar ou, o que é mais provável, construir vínculos comunitários. Mas é preciso querer. E, para tanto, é preciso enxergar os outros como iguais.

Quem está disposto?

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Sobre o renovado título da postagem: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2015/05/ha-mortes.html

No blog, em 2012: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2012/07/violencia-policial.html

sábado, 17 de outubro de 2015

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Estranheza

E vamos chegando a duas semanas sem ela. Irrealidade, saudade difusa, tristeza reprimida, sensação de estar perdido em um labirinto...

Resta-me aplicar a mesma técnica de quando me batia: reprimir o grito e esperar a dor passar. O tal do tempo talvez seja, como dizem, senhor da razão.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

sábado, 10 de outubro de 2015

Sobre as almas humanas

No sábado passado, precisamente, a esta hora da manhã, fazia menos de três horas que minha mãe havia partido. Eu estava plenamente consciente de tudo, calmo, apto a tomar as providências do velório enquanto meu irmão ajudava na preparação hospitalar do corpo. Após cinco dias de internação e um quadro de sofrimento agudo, não responsivo e não comunicativo, não havia lágrimas a derramar; apenas a certeza de que precisávamos tomar os últimos cuidados com o corpo de nossa mãezinha. Ela mesma não estava mais ali.

Salvo inevitáveis comoções em alguns momentos, normalmente ao entrar em contato com pessoas queridas, algumas das quais eu não via há bastante tempo, fiquei sob controle, conseguia conversar, raciocinava com clareza. Mas houve um momento em que a surpresa me provocou uma reação mais intensa e não pude reprimir as lágrimas. Eu falava com uma família amiga, que se esforçava por me animar, quando reparei, de soslaio, a chegada de uma coroa de flores. A faixa nela dizia: "Abraços e consolações. De seus eternos alunos da DI6TA."

Para quem não sabe, a disciplina que eu leciono (direito penal) se desenvolve ao longo de quatro semestres letivos, o que me permite uma longa convivência com as turmas. É possível criar laços profundos, se você estiver aberto a isso. Esses alunos, portanto, entraram em minha vida em agosto de 2013, quando eu era feliz e não sabia. Foi em janeiro de 2014 que recebemos a notícia sobre a doença de nossa mãe. E depois do susto e de alguns meses de suposição de cura, a partir de outubro as más notícias começaram a chegar. E não pararam mais. Mergulhamos na mais avassaladora rota descendente que se pode imaginar.

Resulta daí que esses alunos acompanharam todas as fases do nosso tormento. Eles me acolheram em dias preocupados, em dias ruins e em dias piores ainda. Houve ocasiões em que eu entrava em sala no automático, para conseguir ministrar minha aula, mas não conseguia conversar além disso. No último mês de junho, eles me proporcionaram uma linda despedida, que aliviou meu coração em um momento em que ainda lutávamos contra o câncer, mas já sabíamos que nossa mãe estaria conosco por pouco tempo e, inclusive, já nos perguntávamos se ela chegaria até o natal, p. ex. As outras duas turmas de penal IV tiveram idêntico carinho, preciso registrar.

E em 3 de outubro de 2015, mais de três meses após o término dos nossos trabalhos, esses alunos me enviam uma consolação, levada pelas mãos de Ana Carolina Albuquerque, que ali se encontrava para falar comigo. E eu precisei chorar, porque era como se alguém agarrasse meus ombros e me admoestasse, dizendo "Pare de reclamar! Ainda existe muito amor a sua volta e você só sabe se lamentar!"

O significado daquele gesto talvez nunca seja expresso aos meus eternos alunos. Ainda nem pude ir até a sala deles para agradecer, porque provavelmente não conseguiria falar. Então, neste dia que marca a primeira semana do nosso luto, cumpro o meu dever de registrar este agradecimento, que a Internet leva sem o comprometimento trazido pelos soluços que ficam por trás do teclado.

Aí veio a segunda-feira e um monte de gente me instava a não trabalhar, a começar por minha esposa. Afinal, a lei me confere o direito de gozar a licença-nojo, decorrente do luto por um parente próximo. Mas qual seria a alternativa? Ficar em casa remoendo pensamentos? Sei exatamente onde isso acabaria. Então me levantei e fui ministrar minha aula.

Agora o cenário é outro. Saíram as três turmas de penal IV e entraram três de penal I. São alunos novos, no curso e na vida. Conheceram-me na fase do desalento, quando eu já nem falava mais sobre a doença de nossa mãe, para não incomodar ninguém com minhas sombras. Quando estritamente necessário, eu mencionava "problemas de doença na família", mas de algum modo, claro, eles souberam que esses problemas eram um pouco mais sérios do que sugerido por minhas meias palavras.

Havia uma certa agitação na sala, naquela tarde, enquanto eu explicava a teoria da equivalência dos antecedentes causais. Isso me atrapalhava um pouco, mas não sou de ficar reclamando: sigo minha aula para quem quiser. E foi ótimo eu não ter reclamado, porque os alunos não me estavam atrapalhando. Muito ao contrário, estavam me ajudando. Eles correram folhas de papel, para que mensagens me fossem escritas. Ao final da aula, vieram me entregar. A voz na minha cabeça se manifestou de novo: "Eu não disse?Eu não disse?"

Agradeci com um movimento de cabeça, porque não poderia falar. Estava decidido a ler somente em casa, pois intuía que ficaria sem condições para a aula seguinte. Mas a curiosidade venceu e li as três folhas de papel. E elas me fortaleceram. Deixaram-me um pouco mais apto a seguir com a aula seguinte e a outra e o resto da semana. E o resto da vida. Agradeci a eles na aula seguinte. Guardarei as três folhas de papel como se fossem uma medalha por alguma coisa importante que fiz. Mas a única coisa que fiz foi ter a sorte de ser acolhido por tanta gente boa e generosa.

Como tenho dito, jovens que renovam minha esperança quanto ao futuro do mundo. Alunos de ontem e de hoje, que reforçam uma das poucas certezas que nunca foram questionadas em minha vida: eu precisava ser professor. Com a docência, gerações de seres humanos se sucedem, permitindo-me estar sempre ao alcance dessa energia renovável magnífica: a alma verdadeiramente humana.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Mais um exame da OAB

Durante a tarde de hoje, começaram as comemorações. Mais uma vez, o nosso ambiente acadêmico, assim como o virtual, das redes sociais, encheu-se de alegria pela divulgação dos nomes dos aprovados no mais recente Exame de Ordem.

A lista abaixo reúne os nomes de ex-alunos nossos, assim como de ainda alunos nossos, que passaram por nós em sala de aula, em defesa de monografia ou outras atividades. Esse contato mais pessoal aumenta a nossa alegria, como educadores, por isso faço questão de me congratular com eles:

Agna Christy Marim de Almeida
Aline Cristina Bordalo de Souza Vieira
Ana Carolina Cavalcante da Silva
Ana Carolina Rodrigues da Silva
Ana Cristina Bentes Barbalho
Anna Caroline Ferreira Lisboa
Anna Laura Ferreira de Araújo
Antonio Alberto Maués Ramos
Arthur Calandrini da Silva Neto
Bruno Cunha Moutinho
Bruno Sodré Leão
Camila Rossas Moraes
Daniele Valle Sizo Fidalgo
Diego Siqueira Rebelo Vale
Éder Victor Oeiras Leite
Elyson Gabriel Carvalho da Conceição
Elza Maroja Kalkmann
Emy Hannah Ribeiro Mafra
Gabriela Teixeira Cunha
Gisany Pantoja Quaresma
Iago da Cunha Cardoso Silva
Irlane Ribeiro Dias
Izabela Lima Evangelista da Rocha
Jéssica Maria Alves Pereira dos Santos
Leonardo Souza Silva
Lika Narita
Matheus Braz da Silva Azevedo
Melissa Mika Kimura Paz
Paulo Borges Leal Mendes
Priscilla Borges da Silva
Renan Daniel Trindade dos Santos
Stélio da Costa Sarges
Suanan Costa Collere
Tales Efraim Peres Falqueto
Thamires Martins de Azevedo
Waldir Macieira da Costa Neto
Yasmin Nazaré Lobato Maués

Meus melhores votos de sucesso na nova carreira, que para alguns pode ser iniciada imediatamente e, para outros, ainda precisará esperar nada menos do que o restante de todo o semestre letivo e a colação de grau. Sem dúvida, contudo, que deve fazer um bem enorme saber que, quando o grau chegar, já se poderá exercer a profissão escolhida e cuidar do futuro que nos abraça.

Sejam sempre muito felizes.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Agradecimentos post mortem

Enfim, a hora chegou. Nossa mãezinha partiu por volta de 7h30 do último sábado, dia 3, após uma penosíssima trajetória de um ano e nove meses de luta contra um câncer, mas também contra uma série de comorbidades que tornaram o seu tratamento ineficaz. Foram nove internações, algumas dezenas de sessões de rádio e braquiterapia, dois protocolos diferentes de quimioterapia (um terceiro negado) e uma quantidade literalmente incalculável de consultas, exames e procedimentos.

Pode-se dizer que, de algum modo, ficamos bem familiarizados com o ambiente de tratamento de saúde e lidamos com diversos profissionais. Sabemos que existe um processo acelerado de desumanização no exercício da Medicina; que muita gente escolhe essa carreira por status e dinheiro; que o paciente está valendo cada vez menos. Por isso mesmo, neste momento, sinto-me no dever de honrar alguns dos profissionais que são Médicos maiúsculos, de competência testada e comprovada mas, acima de tudo, dotados daquilo que se espera de um verdadeiro médico: a espontânea preocupação em fazer o melhor pelo paciente.

Ainda na clínica Uronefro, onde nossa mãe fez hemodiálise de janeiro de 2014 a julho de 2015, fomos acompanhados pela nefrologista Myrtes Martins, à frente de uma equipe também competente e dedicada, que passa pelos demais nefrologistas, time de enfermagem, psicóloga, nutricionista, recepcionistas, porteiros, etc. Nós fomos tratados com carinho genuíno na clínica e somos muito gratos por cada gesto de atenção. Notadamente em relação a Myrtes Martins, agradecemos sua diligência e compromisso, conseguindo salvar a vida de nossa mãe não uma, mas três vezes, nos sucessivos episódios de edema agudo de pulmão.

Já no Hospital Saúde da Mulher, o neurocirurgião Fernando Santos foi a síntese do que um médico deve ser. Em novembro de 2014, atendeu minha mãe e percebeu a gravidade de sua situação. Quis interná-la imediatamente e se esforçou por realizar a cirurgia, dificultada por erros administrativos. Quando a cirurgia efetivamente aconteceu, foi um craque. Retirou o máximo que pode de um tumor metastásico que envolvia os ossos do sacro. Devido à ser uma região repleta de nervos, todo tipo de sequela poderia aparecer: perda de movimentos, incontinência urinária, etc. e etc. Mas a cirurgia foi perfeita. No entanto, o que me comoveu profundamente foi o dia em que ele entrou no apartamento do hospital e, ao ver minha mãe, exclamou: "Agora sim! O que eu queria era ver a senhora sorrir de novo!" Encontrei-me com ele na semana passada, casualmente, quando mamãe ainda vivia, e lhe reiterei nossa imensa gratidão por ser um médico que coloca o paciente em primeiro lugar.

Em dezembro de 2014, chegamos até a oncologista Danielle Feio, que se tornou nossa parceira e enfrentou conosco o tratamento quimioterápico que, infelizmente, não funcionou. Suas consultas eram longas, com explicações minuciosas, o que nos permitiu desenvolver grande confiança em seu trabalho. Até o último instante, cuidou do nosso "vaso que podia quebrar a qualquer momento", mas não quebrava. Respondia nossas perguntas, aceitava nossas mensagens via WhatsApp em pleno final de semana e, por fim, ao decidir utilizar um terceiro e derradeiro protocolo de quimioterapia, com uma droga off label para o tipo de câncer de nossa mãe, explicou-nos detalhadamente os motivos, que comprovou com estudos, mostrando-se competente e atualizada. Minha mãe confiava e gostava dela. Claro, foi tratada com dignidade e afeto legítimos. Já é possível fazer um bom tratamento oncológico em Belém. Infelizmente, o corpo de nossa mãezinha não tinha condições de resistir.

Por fim, já nesta reta final, a geriatra e paliativista Raquel Loiola, mesmo quando ainda supúnhamos ser possível garantir alguma sobrevida a nossa mãe, com alguma qualidade, deixou claro que podíamos trabalhar para deixá-la em casa, em condições dignas. Nada de medidas agressivas e inúteis. Nada de potencializar o sofrimento. Nesta última semana, quando se tornou evidente que a hora da morte estava à porta, ela nos explicou o significado e a utilidade (ou total falta dela) de cada tratamento, deu-nos opções e permitiu que decidíssemos o melhor (possível, no contexto) para nossa mãe. Com sua voz mansa porém firme, preparou-nos para o que vinha e garantiu que minha mãe fizesse sua passagem sem ser mais maltratada, ao lado da família.

Eu gostaria que todos os médicos fossem como esses quatro que citei. Mas não são. Há aqueles que dizem ser impossível aplicar quimioterapia em um doente renal crônico e que se recusam a aceitar a sugestão dos filhos, por duas vezes, de requisitar um PET-Scan. São esses que permitem um quadro de metástase se instalar livremente, sem combate, levando a paciente ao desespero da dor e, mais à frente, à irreversibilidade do quadro.

Também há os ultra-arrogantes, que operam uma paciente sem jamais ter um contato com a família, sem explicar o que fariam, e acabam por colocar um cateter errado nela, colocando-a em risco real de morte porque foi impossível dialisar. São esses que obrigam a uma internação que, sem esse erro, simplesmente não aconteceria e, mesmo assim, jamais pedem desculpas e olham os filhos com desprezo no corredor, porque exigiram que o conserto fosse feito por outro angiologista. Que, por sinal, também teve suas falhas e, para corrigi-las, reposicionou o cateter a sangue frio, puxando, fazendo nossa mãe gritar de dor.

E há o pessoal da enfermagem, que amarra uma paciente lúcida no leito de UTI, onde estava emocionalmente desgastada e sozinha, absolutamente vulnerável, apenas porque não gostou de seu tom. Felizmente, apenas uma fruta podre em meio a uma equipe de enfermeiros e técnicos muito dedicados, carinhosos e simpáticos, cujos nomes não consigo reter dada a maior quantidade, ao rodízio e à perturbação em que sempre nos encontrávamos quando nossos caminhos se cruzavam.

E é isso. Não sou amigo destes médicos, pessoalmente ou pelas redes sociais. Tentarei levar a eles estas palavras mas, acima de tudo, guardem seus nomes. Espero que não precisem deles!!! Mas saibam que existem sim, em Belém, médicos humanos, verdadeiros e merecedores de todas as homenagens.