terça-feira, 28 de agosto de 2012

Reforma do Código Penal XXIX: o processo de tipificação

Eu estava devendo, ao menos para mim mesmo, postagens com observações pessoais sobre o anteprojeto de novo Código Penal, ora em trâmite no Senado como PLS 236/2012. Como publiquei nas últimas semanas, foi constituída uma comissão de senadores para apreciar o trabalho, que está na fase de realizar audiências públicas e coletar emendas de todo integrante daquela casa legislativa que deseja fazê-lo. A grande preocupação, por ora, é com o açodamento: como já ensinava a sabedoria dos antigos, a pressa é inimiga da perfeição e, embora a perfeição não seja deste mundo, esta matéria não admite leviandade. Melhor a calma e a prudência, para que o conteúdo seja mais realista, na hora da votação em plenário.
Uma primeira consideração que eu gostaria de fazer tem caráter geral. A comissão de especialistas constituída pelo Senado assumiu que a espinhosa tarefa seria conduzida a partir de algumas metas, estabelecidas em um plano de trabalho. A primeira delas consistia em concentrar no Código Penal toda a legislação criminal vigente no país, eliminando um dos problemas mais graves de nosso sistema normativo, em todos os setores e especialmente neste: a inflação legislativa.
É grande a quantidade de leis esparsas tratando sobre aspectos penais. Mesmo que se abstraiam as leis meramente modificadoras de outras normas, o saldo ainda é grande e abrange textos bastante antigos e defasados, como as leis 2.889, de 1956 (crime de genocídio), e 4.898, de 1965 (responsabilidade de agentes públicos por abusos de autoridade).
O excesso de leis conduziu a frequentes superposições de normas incriminadoras. A comissão cita o caso do delito de desobediência, que é previsto no Código Penal (art. 330) mas também comparece no Eleitoral (art. 347). Quem dera fosse o único exemplo. O Estatuto do Idoso, p. ex., deu-se ao desplante de tipificar o abandono, a omissão de socorro, os maus-tratos, o abuso de incapazes e a apropriação indébita, embora todas essas condutas já fossem contempladas pelo CP. A desculpa foi tratar conferir aos tipos penais alguma especificidade, mas isso não seria necessário, ao menos não em todos os casos.
Não podemos olvidar os problemas trazidos pelo Código de Trânsito, notadamente com os crimes de homicídio culposo, lesão corporal culposa e omissão de socorro.
A comissão também apontou um problema ainda maior, consistente em leis que, de tão detalhadas, funcionam como verdadeiros microssistemas penais. O exemplo mais contundente é a Lei n. 9.605, de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), que instituiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica (não vale para todos os crimes) e dispõe por modo próprio sobre dosimetria da pena e sobre hipóteses de cabimento e espécies de penas restritivas de direitos.
A Lei n. 11.343, de 2006 (lei de drogas), criou um tipo penal sem previsão da pena privativa de liberdade, a posse de drogas para consumo pessoal, o que trouxe por consequência regras específicas sobre penas restritivas de direitos, imposição de multa e prescrição. A mesma lei dispõe sobre delação premiada (art. 41), sem precisar fazê-lo, já que não dispõe diversamente sobre o tema. No art. 45, cria uma regra inútil sobre imputabilidade, já contemplada pelo art. 28 do CP. Nos arts. 42 e 43, modifica os parâmetros de imposição das penas de prisão e de multa.
Naturalmente, a balbúrdia vai muito além destes parcos exemplos. Por isso, a concentração promovida pela comissão é da maior utilidade.
No relatório final de seus trabalhos, a comissão afirma que o conjunto dos crimes previstos no Código Penal e na legislação extravagante foi submetido a um "triplo escrutínio":
  • o tipo permanece necessário e atual?
  • há incriminações semelhantes em outras normas?
  • as penas são proporcionais à gravidade relativa do crime?
A consequência dessa análise foi uma "forte descriminalização de condutas", a maioria por não passar pelo primeiro dos crivos acima ou por incompatibilidade com a Constituição de 1988 ou com os tratados e convenções internacionais. A par disso, houve mudanças significativas nas penas cominadas para mais em alguns casos; para menos, em outros.
Estas mudanças precisariam ser observadas caso a caso. Mas é possível apontar uma de caráter mais geral: a eliminação do conceito de contravenção penal. Exatamente como se defendia há muito tempo, ou a conduta é grave o suficiente para desafiar a repressão penal e, portanto, deve ser tratada como crime (caso da perturbação do sossego); ou não é assim tão relevante e deve ser abolida, limitando-se a responsabilidade do infrator ao âmbito extrapenal.
Como decisão política, agiu muito bem a comissão. Resta analisar as proposições em si, o que obviamente demanda muito tempo e atenção, de modo que será feito pouco a pouco.

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