sexta-feira, 31 de maio de 2013

Da mnemotécnica à esculhambação

Mnemotécnica. Conheci este vocábulo vários anos atrás, numa reportagem da revista SuperInteressante. Corresponde às técnicas para estimular a memória e facilitar a aprendizagem. Surgiu com o desenvolvimento das neurociências, que descobriram o funcionamento organizado e hierarquizado do cérebro. Abordado sob o viés da ciência, era um assunto instigante e útil.

A reportagem dava dicas de estudo ligadas ao senso hierárquico do cérebro e a sua maior permeabilidade a elementos visuais. Por isso, sugeria que, ao estudar, nós montássemos gráficos que, a uma olhada rápida, já informassem ao cérebro o conjunto das questões-chave, levando-o a buscar o restante das informações disponíveis, por nível de relevância. Para ilustrar, rabisquei rapidinho um exemplo, naturalmente dentro da minha zona de conforto. O tema é culpabilidade.


Os termos devem ser circulados e o mais importante de todos deve ficar ao centro. O cérebro o reconhecerá como a informação mais importante e saberá que, quanto mais afastada do centro estiver a informação, menor é a sua "patente", digamos assim. Como não existe uma regra específica para desenhar o gráfico, cada um deve pensar no modo como o desenho faz mais sentido para si. Eu, p. ex., em vez de deixar a palavra "culpabilidade" sozinha na elipse, decidi colocar os seus três elementos constitutivos junto. Eu entendo isso como estes três elementos fazem parte da estrutura da culpabilidade. Mas o conceito formal, "juízo de reprovação", ficou de fora. Existe um adendo sobre o juízo de reprovação ("formação da vontade contrariamente ao dever"), mas ele foi para outra elipse, para criar os níveis hierárquicos.

Na parte de baixo, coloquei as informações relativas a cada elemento constitutivo da culpabilidade, procurando manter a mesma distância entre informações de nível semelhante ("capacidade de compreensão e volição"; "erro"; "obediência hierárquica"/"coação"). No caso da imputabilidade, coloquei no primeiro nível hierárquico a sua definição e, no seguinte, os seus requisitos. É mais ou menos isso.

Meu professor de direito penal, Hugo Rocha, adorava recursos mnemotécnicos. Recordo-me de ele dizendo, p. ex., que vis impulsiva correspondia à violência física e ambas se escreviam com "i" (impulsiva, física), ao passo que vis compulsiva correspondia à violência moral e ambas se escreviam com "o" (compulsiva, moral). Havia outros maneirismos como este e, em geral, nós, alunos, nos entreolhávamos com alguma desconfiança; muitos achavam aquilo uma grande bobagem. Se era para decorar, era mais fácil decorar os nomes de uma vez, ao invés de ainda ter que relacioná-los a algum detalhe adicional.

Hoje, contudo, a mnemotécnica se alastrou por causa da fábrica de dinheiro que são os cursinhos preparatórios de concursos. Ou pelo menos um arremedo dela. Afinal, como a primeira fase de concursos públicos normalmente corresponde a uma prova objetiva (na maioria dos casos imprestável para mensurar conhecimento útil e crítico, porque se baseia tão somente em um volume ridículo de informações descontextualizadas), a ordem é memorizar a todo custo. Aí os cursinhos proliferaram enlouquecidamente e passaram a recorrer à bandalha para enfiar conteúdos na cabeça de seus ávidos clientes.

Já me dei ao trabalho de assistir (sempre por poucos minutos) algumas videoaulas pelo YouTube, inclusive de medalhões em suas áreas de conhecimento. Admito que já tenho uma prevenção terrível, mas consegui a proeza de odiar todas. Preciso até assistir a umas aulas de assuntos fora do meu métier, para ver se baixo a minha arrogância; afinal, tudo ali será novidade para mim.

Nessas aulas, o recurso aos macetes (palavrinha detestável) é comum. Mas vale destacar: aparentemente, quanto menos estrelado é o professor, mais macetes costuma usar. Exemplo: Para memorizar as teorias utilizadas para definir o tempo e o lugar do crime, pense na palavra LUTA: o lugar do crime (L) se define pela teoria da ubiquidade (U), ao passo que o tempo do crime (T) se define pela teoria da atividade (A). Viram como é fácil? E bem idiota, também. Dali a pouco o cara está cheio de palavras avulsas na cabeça e não sabe o que fazer com elas, principalmente se o nervosismo o afetar.

O exemplo acima foi tirado da caixa de comentários de uma videoaula. Sim, os alunos a-do-ram essas patuscadas. Apresentam o seu acervo com orgulho e animação. Por isso, navegando pela Internet, não será difícil encontrar um sem número de dicas. Achei uma em que uma fulana ensina a memorizar as espécies de penas previstas no Código Penal: RPM  Restritivas de direitos, Privativas de liberdade e Multa. Ela achou o máximo só precisar se lembrar da banda RPM! Agora imagine o cabôco no sufoco, na hora da prova, tentando se lembrar para que serve cada banda brasileira (ou cantor) de sucesso nos anos 1980/1990!

"Teu corpo é fruto proibido... Alternativa D!!!"
"Taqueopariu, os Paralamas do Sucesso eram dica para quê, mesmo?!" ou "Eu sei isso! Deve estar lá entre os Titãs e a Rosana Como-uma-Deusa!"

Já que estamos falando de música, recordemos que outro recurso inteligente dos cursinhos são as canções. Com efeito, é mais fácil memorizar a letra de uma canção do que um conteúdo imenso e disperso. Mas precisávamos mesmo institucionalizar a coisa? Além de que o professor agora precisa ser showman, em vez de ser cientificamente competente, ainda precisa arranhar um violão e afinar o gogó.

Pegue um DVD de concurseiro: em meio às aulas, existe sempre uma canção. Outro dia, peguei um de processo civil, contendo uma canção chamada "Litisconsórcio necessário". Meus sais...

Minha querida Ana Cláudia Pinho, numa palestra lá no CESUPA, citou um caso típico. Pense naquele pagodinho cantado pelo Alexandre Pires: "O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade / Se estou na solidão pensando em você?" Agora coloque nessa mesma melodia o seguinte: "O que é que eu vou fazer com essa tal continência / Que é tão parecida com a conexão?" (critérios para fixação de competência jurisdicional, matéria de direito processual).

E o Chacrinha nem está mais aqui para jogar um bacalhau podre na cara de um desgracento desses!

Se você, concurseiro ou candidato ao exame de Ordem, chegou até aqui, já deve estar embrutecido comigo. Mas já devia saber que este é um blog arbitrário até no nome. Mesmo assim, vou responder à pergunta que deveria estar na sua cabeça agora: qual é a maneira inteligente de ensinar?

Simples: fazendo o estudante entender o sentido, a razão de ser ou a finalidade da coisa. Voltemos ao macete LUTA, ali de cima. Quando o estudante entende que um crime pode ser praticado em mais de um local (a pessoa é ferida numa cidade e morre em outra, podendo haver testemunhas nos dois locais) ou que é no momento da conduta que o sujeito exprime o seu dolo (ou falta dele) em relação ao delito, fica fácil entender porque ubiquidade no primeiro caso e atividade no segundo. Não precisamos recorrer a nenhuma tolice mais. Lamento que este exemplo não possa ser compreendido por quem não seja familiarizado com o direito penal.

Faço estas afirmações na condição de quem sempre teve muito problema com Matemática. Eu já me considerava burro para os números. Hoje eu sei que meus professores da matéria chegavam em sala de aula e jogavam um monte de informações malucas na minha cara. Daí eu não entendia. E sabe como eu descobri isso? Vendo o seriado Numb3rs, no qual conhecimento matemáticos são utilizados para solucionar crimes. O personagem Charles Eppes explica conceitos matemáticos relacionando-os às situações mais prosaicas da vida. Todo mundo entende. Como minha esposa tem cabeça matemática, ela também compreende e também me explicou coisas que mostraram como a Matemática é mais simples do que parece e muito agradável, também.

Contexto, seriedade e praticidade. Elementos que fazem toda a diferença na educação. É por isso que o meu habitat é a universidade. Meu negócio é pensar.

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E você? Pode compartilhar conosco algum macete para decorar alguma coisa? Não precisa ser direito, não. Vou gostar de conhecer maneirismos de outras áreas.

4 comentários:

Polyana disse...

Lindo! Concordo em gênero, número e grau. Eu desenho muito no quadro, pra tentar deixar algumas coisas mais mnemônicas, mas macete me dá arrepios.

Francisco Rocha Junior disse...

Outra palavra abjeta: "concurseiro". Virou profissão.

Ana Miranda disse...

Dizem que cada louco tem sua mania, a minha é pegar uma música pegajosa, transformar em letra o que preciso lembrar, encaixar direitinho na música e depois quando eu precisar do conteúdo, é só cantar.

É super fácil.

Yúdice Andrade disse...

Fiquei feliz de teres até compartilhado a postagem, Polyana.

Francisco, teu comentário me inspirou uma futura postagem sobre profissões que só existem no Brasil: concurseiro, ex-BBB, mulher-fruta, etc. Mas ainda preciso de inspiração para isso.

Imagino que seja divertido, Ana. Como é algo só de ti para ti mesma, tudo bem.