Já havia lido algumas críticas sobre Somos tão jovens, longametragem de Antônio Carlos Fontoura, que atua como cineasta desde 1966 (seu provável maior feito até aqui foi A rainha diaba, de 1974) e também é produtor e roteirista, tendo trabalhado também para a TV. Algumas simpáticas, outras bastante ácidas. Uma crítica que me pareceu razoável pode ser lida no Cinema em Cena.
Tendo visto o filme ontem, finalmente, tenho as minhas próprias opiniões. Mas começo me perguntando: pode um fã servir de crítico? Se ele é inclinado a legitimar o objeto e o filme fala bem desse objeto, há idoneidade em sua aprovação? Esta é uma questão que não me interessa responder e aqui comparece apenas para advertir quanto a minha tendência previsível a aprovar o filme e não perceber seus defeitos.
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Assim que a projeção começa, uma legenda informa: "Brasília 1976-1982". Pronto: foi delimitado um recorte temporal muito específico, dentro do qual não havia filho nem AIDS e por isso, obviamente, não havia razão para incluir esses temas no roteiro. Havia a homossexualidade, sim, e o filme deixa claro que Renato preferia meninos, embora, em uma cena com a mãe, ele diga que mais num sentido afetivo do que fisiológico. Os ativistas da causa gay espumaram de ódio. Pois que espumem. Li a biografia de Renato Manfredini Jr. e assisti a uma peça biográfica, as quais revelam que Renato era introspectivo demais; ele se apaixonava, mas não ia à luta. Seu temperamento era mais de se trancar no quarto e ficar sofrendo. E é isso que Somos tão jovens mostra. Adequado, portanto. Não havia por que ir além num filme que se dispõe a mostrar "como tudo começou" e termina mostrando imagens reais, de arquivo, do primeiro concerto comercial da Legião Urbana, no Circo Voador (RJ).
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O resultado são diálogos bobos, como quando Renato fala que sente um "tédio com um T bem grande" ou, durante uma festa requintada, conversando com Aninha. Ela: "Festa estranha." Ele: "Gente esquisita." Como bem disse o crítico Pablo Villaça, uma linha Forrest Gump. E até os competentes atores pareciam iniciantes, daqueles que falam como se estivessem lendo o texto. Depois melhora.
Como purista, algo que me incomodou foi a criação de um personagem totalmente fictício, Ana. Por ser o segundo personagem mais importante do filme, incomodava-me ser uma licença poética, um recurso facilitador para explorar certos aspectos da alma insulada e difícil do poeta. Mas a personagem é cativante (parabéns à adorável Laila Zaid, no melhor papel em seus 9 anos de carreira) e caiu como uma luva sobre a letra de Ainda é cedo, uma das melhores sequências. Bernstein acertou a mão nessa hora.
O elogio final é óbvio. Fica para Thiago Mendonça, que encarnou com dignidade e competência um artista que morreu quando o ator tinha apenas 16 anos e sabe lá se gostava de rock.
Mendonça foi elogiadíssimo por sua composição corporal, além da semelhança física convincente (Renato era perceptivelmente mais esguio). Fiquei o tempo inteiro esperando para vê-lo arrumar os óculos e roer as unhas (não percebi o primeiro gesto e o segundo ficou concentrado basicamente numa única cena), atitudes que, segundo familiares de Renato, ele reproduziu muito bem. Mas o que me impressionou mesmo foi o modo de falar.
Com todo o respeito, Renato às vezes falava como uma bichinha afetada (não encontrei um jeito mais delicado de dizê-lo, sem prejuízo da compreensão), o que pode ser percebido nas gravações ao vivo. Na cena em que o protagonista, furioso, tenta explicar o significado da letra de "Química" para o baterista Fê Lemos, a despeito de a voz do ator não ser tão grave quanto a do cantor, pode-se perceber a mesma inflexão. Podíamos acreditar piamente que estávamos olhando uma imagem de arquivo.
Meu irmão, com sua verve para detonar tudo e todos, detestou o filme. E aplicando uma de suas miopias, que conheço bem, manifestou menosprezo pelos garotos de Brasília, por serem playboys, filhos de altos funcionários públicos ou de diplomatas, com seus privilégios e estudos no exterior, que descambariam para a rebeldia sem causa.
Eu também detesto playboys. Mas uma coisa verdadeira foi dita pelo personagem Hermano Vianna: aquele movimento roqueiro só poderia ter nascido em Brasília. Trata-se de uma questão de conjuntura. Se você acredita em talento, que uma pessoa pode simplesmente retirar da alma as mais belas obras em qualquer campo, problema seu. Virtuoses existem, mas a exceção só confirma a regra: para ter sucesso, na arte como em outras áreas, você precisa de estudo, treino, técnica e recursos adequados. E qual moleque de garagem poderia ter uma guitarra Gibson [obrigado, Marajoara] como a de Herbert Vianna ou a bateria sei lá de que marca, importada de Londres, como a de Fê Lemos? E ao mesmo tempo ter a cultura, as influências, ser viajados e conhecer a vanguarda musical mundial, etc.? Tinha que ser gente daquele tipo. Paciência. Eu jamais poderia.
Enfim, eu sou fã da Legião Urbana e particularmente de Renato Russo. Por isso, emocionei-me bastante em algumas cenas. Nada de especial. Eu me emocionei por questões minhas, que mais ninguém compreenderia. A canção "Por enquanto", p. ex., me provoca saudade de meus colegas de faculdade. Sinto falta deles e isso me tocou na hora. Outras passagens me comoveram por razões diversas, sempre íntimas.
Este é o poder dos poetas: falar e escrever, produzindo mensagens que serão compreendidas por cada um a seu modo, às vezes errando o alvo, às vezes acertando em cheio. Quando acertam, você ama e se devota. Passa a gostar até do que não é tão bom, seja uma parte do trabalho do artista, seja um filme sobre ele. Somos tão jovens é assim: vá pela emoção.
8 comentários:
Yúdice, eu não assisti ao filme.
Eu estou mais interessado em "Faroeste Caboclo".
Eu adoro as suas críticas, então gostaria muito de lê-las sobre o "Faroeste Caboclo" e sobre o "Abismo Prateado", que é o outro filme que estou louca para assistir.
Aguardo seus comentários, quando você os assistir.
Também ador ei o filme Yúdice! No final,para ser sincera, fiquei com a sensação de que queria mais uma ou dua continuações! Sei que houve o corte temporal no início, mas fiquei com sabor de quero mais! E como você, também penso que apenas ali em Brasília, naqueles tempos, com aquelas pessoas esse tipo de cultura poderia ser revelada! Ah sim, mais um comentário: adorei a imterpretação do Herbert Vianna! O tom da voz é fantástico! Abraços e parabéns pelo texto. Stela
Ah, dá uma chance para o Renato, Ana! Vale a pena.
Com certeza, terei algo a dizer sobre "Faroeste caboclo". O outro filme não conheço, então vou me informar.
Interessante, Stela: nas críticas que li, a interpretação do ator que fez Herbert Vianna foi considerada caricata demais, até ridícula. Como pouco sei sobre o vocalista do Paralamas, vendo o filme não achei nada. É bom ver, então, a opinião de alguém que não estava preocupado em encontrar defeitos.
Grato pela gentileza com o texto.
Grande mestre Yúdice! Parabéns pela excelente crítica. Vi o filme e concordo plenamente com os seus comentários.
O filme realmente é tudo isso!!! Confesso que adoro as músicas do Renato, desde Aborto Elétrico até sua carreira solo, mas não acompanhei sua biografia completa. Cheguei a pensar que a Aninha era de verdade!!! Mas, em resumo, o filme foi lindo. Com certeza, assim que tiver oportunidade, repito a dose! Legião nunca é demais!
Beijos, Emy.
por erro de digitação, corrijo: onde escrevi dua, leia-se duas; e onde escrevi:imterpretação, leia-se interpretação.
Agradeço as manifestações, Emy e Gestão.
Oi Yudice, a guitarra não era Bergson, era Gibson, reconhecida como uma das melhores marcas do mundo, usada por astros como Jimmy Page (citado no filme, guitarrista do Led Zeppelin), Angus Young (AC/DC) e Tony Iommi (Black Sabbath).
Só que a guitarra que aparece no filme não é Gibson, ela aparece na lateral e dá pra ver que ela é bem mais fina que uma. Claro que isso só chama a atenção de chatos puristas como eu.
Abraço,
Marajoara.
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