segunda-feira, 20 de maio de 2013

Somos tão jovens

Postagens anteriores deste blog revelam que eu parto do pressuposto de que críticos de cinema (na verdade, críticos em geral) são, antes de tudo, uns chatos pernósticos. Isso vale tanto para os profissionais quanto para os que se arvoram na função. Meu argumento principal é de que constitui um erro, quando não verdadeira má fé, tomar opiniões pessoais como parâmetros de certo e errado. Por isso, todas as manifestações sobre cinema que faço neste blog devem ser encaradas como meras impressões de um espectador, que gostou ou não do que viu.

Já havia lido algumas críticas sobre Somos tão jovens, longametragem de Antônio Carlos Fontoura, que atua como cineasta desde 1966 (seu provável maior feito até aqui foi A rainha diaba, de 1974) e também é produtor e roteirista, tendo trabalhado também para a TV. Algumas simpáticas, outras bastante ácidas. Uma crítica que me pareceu razoável pode ser lida no Cinema em Cena.

Tendo visto o filme ontem, finalmente, tenho as minhas próprias opiniões. Mas começo me perguntando: pode um fã servir de crítico? Se ele é inclinado a legitimar o objeto e o filme fala bem desse objeto, há idoneidade em sua aprovação? Esta é uma questão que não me interessa responder e aqui comparece apenas para advertir quanto a minha tendência previsível a aprovar o filme e não perceber seus defeitos.

Eu gostei muito do longa. Depois de vê-lo, percebi que boa parte das críticas que lhe foram destinadas são indevidas. Falou-se, p. ex., que ele pecava por omitir aspectos importantes da vida de Renato Russo, tais como o filho que teve, sua vida como homossexual e a AIDS. As críticas, a princípio, pareceram-me plausíveis, mas agora se me afiguram tolas.

Assim que a projeção começa, uma legenda informa: "Brasília 1976-1982". Pronto: foi delimitado um recorte temporal muito específico, dentro do qual não havia filho nem AIDS e por isso, obviamente, não havia razão para incluir esses temas no roteiro. Havia a homossexualidade, sim, e o filme deixa claro que Renato preferia meninos, embora, em uma cena com a mãe, ele diga que mais num sentido afetivo do que fisiológico. Os ativistas da causa gay espumaram de ódio. Pois que espumem. Li a biografia de Renato Manfredini Jr. e assisti a uma peça biográfica, as quais revelam que Renato era introspectivo demais; ele se apaixonava, mas não ia à luta. Seu temperamento era mais de se trancar no quarto e ficar sofrendo. E é isso que Somos tão jovens mostra. Adequado, portanto. Não havia por que ir além num filme que se dispõe a mostrar "como tudo começou" e termina mostrando imagens reais, de arquivo, do primeiro concerto comercial da Legião Urbana, no Circo Voador (RJ).

Algumas críticas são pertinentes, no entanto. De fato, e sobretudo na primeira metade da projeção, os diálogos soam artificiais. O roteirista Marcos Bernstein (o competente responsável por obras de valor como Terra estrangeira, Central do Brasil, Zuzu Angel e Chico Xavier) parece obcecado por criar easter eggs para os fãs identificarem e assim obter, à força, a empatia do público.

O resultado são diálogos bobos, como quando Renato fala que sente um "tédio com um T bem grande" ou, durante uma festa requintada, conversando com Aninha. Ela: "Festa estranha." Ele: "Gente esquisita." Como bem disse o crítico Pablo Villaça, uma linha Forrest Gump. E até os competentes atores pareciam iniciantes, daqueles que falam como se estivessem lendo o texto. Depois melhora.

Como purista, algo que me incomodou foi a criação de um personagem totalmente fictício, Ana. Por ser o segundo personagem mais importante do filme, incomodava-me ser uma licença poética, um recurso facilitador para explorar certos aspectos da alma insulada e difícil do poeta. Mas a personagem é cativante (parabéns à adorável Laila Zaid, no melhor papel em seus 9 anos de carreira) e caiu como uma luva sobre a letra de Ainda é cedo, uma das melhores sequências. Bernstein acertou a mão nessa hora.

O elogio final é óbvio. Fica para Thiago Mendonça, que encarnou com dignidade e competência um artista que morreu quando o ator tinha apenas 16 anos e sabe lá se gostava de rock.

Mendonça foi elogiadíssimo por sua composição corporal, além da semelhança física convincente (Renato era perceptivelmente mais esguio). Fiquei o tempo inteiro esperando para vê-lo arrumar os óculos e roer as unhas (não percebi o primeiro gesto e o segundo ficou concentrado basicamente numa única cena), atitudes que, segundo familiares de Renato, ele reproduziu muito bem. Mas o que me impressionou mesmo foi o modo de falar.

Com todo o respeito, Renato às vezes falava como uma bichinha afetada (não encontrei um jeito mais delicado de dizê-lo, sem prejuízo da compreensão), o que pode ser percebido nas gravações ao vivo. Na cena em que o protagonista, furioso, tenta explicar o significado da letra de "Química" para o baterista Fê Lemos, a despeito de a voz do ator não ser tão grave quanto a do cantor, pode-se perceber a mesma inflexão. Podíamos acreditar piamente que estávamos olhando uma imagem de arquivo.

Meu irmão, com sua verve para detonar tudo e todos, detestou o filme. E aplicando uma de suas miopias, que conheço bem, manifestou menosprezo pelos garotos de Brasília, por serem playboys, filhos de altos funcionários públicos ou de diplomatas, com seus privilégios e estudos no exterior, que descambariam para a rebeldia sem causa.

Eu também detesto playboys. Mas uma coisa verdadeira foi dita pelo personagem Hermano Vianna: aquele movimento roqueiro só poderia ter nascido em Brasília. Trata-se de uma questão de conjuntura. Se você acredita em talento, que uma pessoa pode simplesmente retirar da alma as mais belas obras em qualquer campo, problema seu. Virtuoses existem, mas a exceção só confirma a regra: para ter sucesso, na arte como em outras áreas, você precisa de estudo, treino, técnica e recursos adequados. E qual moleque de garagem poderia ter uma guitarra Gibson [obrigado, Marajoara] como a de Herbert Vianna ou a bateria sei lá de que marca, importada de Londres, como a de Fê Lemos? E ao mesmo tempo ter a cultura, as influências, ser viajados e conhecer a vanguarda musical mundial, etc.? Tinha que ser gente daquele tipo. Paciência. Eu jamais poderia.

Enfim, eu sou fã da Legião Urbana e particularmente de Renato Russo. Por isso, emocionei-me bastante em algumas cenas. Nada de especial. Eu me emocionei por questões minhas, que mais ninguém compreenderia. A canção "Por enquanto", p. ex., me provoca saudade de meus colegas de faculdade. Sinto falta deles e isso me tocou na hora. Outras passagens me comoveram por razões diversas, sempre íntimas.

Este é o poder dos poetas: falar e escrever, produzindo mensagens que serão compreendidas por cada um a seu modo, às vezes errando o alvo, às vezes acertando em cheio. Quando acertam, você ama e se devota. Passa a gostar até do que não é tão bom, seja uma parte do trabalho do artista, seja um filme sobre ele. Somos tão jovens é assim: vá pela emoção.

8 comentários:

Ana Miranda disse...

Yúdice, eu não assisti ao filme.

Eu estou mais interessado em "Faroeste Caboclo".

Eu adoro as suas críticas, então gostaria muito de lê-las sobre o "Faroeste Caboclo" e sobre o "Abismo Prateado", que é o outro filme que estou louca para assistir.

Aguardo seus comentários, quando você os assistir.

Maria Stela Campos da Silva disse...

Também ador ei o filme Yúdice! No final,para ser sincera, fiquei com a sensação de que queria mais uma ou dua continuações! Sei que houve o corte temporal no início, mas fiquei com sabor de quero mais! E como você, também penso que apenas ali em Brasília, naqueles tempos, com aquelas pessoas esse tipo de cultura poderia ser revelada! Ah sim, mais um comentário: adorei a imterpretação do Herbert Vianna! O tom da voz é fantástico! Abraços e parabéns pelo texto. Stela

Yúdice Andrade disse...

Ah, dá uma chance para o Renato, Ana! Vale a pena.
Com certeza, terei algo a dizer sobre "Faroeste caboclo". O outro filme não conheço, então vou me informar.

Interessante, Stela: nas críticas que li, a interpretação do ator que fez Herbert Vianna foi considerada caricata demais, até ridícula. Como pouco sei sobre o vocalista do Paralamas, vendo o filme não achei nada. É bom ver, então, a opinião de alguém que não estava preocupado em encontrar defeitos.
Grato pela gentileza com o texto.

gestaoestrategica disse...

Grande mestre Yúdice! Parabéns pela excelente crítica. Vi o filme e concordo plenamente com os seus comentários.

Anônimo disse...

O filme realmente é tudo isso!!! Confesso que adoro as músicas do Renato, desde Aborto Elétrico até sua carreira solo, mas não acompanhei sua biografia completa. Cheguei a pensar que a Aninha era de verdade!!! Mas, em resumo, o filme foi lindo. Com certeza, assim que tiver oportunidade, repito a dose! Legião nunca é demais!
Beijos, Emy.

Maria Stela Campos da Silva disse...

por erro de digitação, corrijo: onde escrevi dua, leia-se duas; e onde escrevi:imterpretação, leia-se interpretação.

Yúdice Andrade disse...

Agradeço as manifestações, Emy e Gestão.

Anônimo disse...

Oi Yudice, a guitarra não era Bergson, era Gibson, reconhecida como uma das melhores marcas do mundo, usada por astros como Jimmy Page (citado no filme, guitarrista do Led Zeppelin), Angus Young (AC/DC) e Tony Iommi (Black Sabbath).

Só que a guitarra que aparece no filme não é Gibson, ela aparece na lateral e dá pra ver que ela é bem mais fina que uma. Claro que isso só chama a atenção de chatos puristas como eu.

Abraço,

Marajoara.