domingo, 5 de maio de 2013

Ney Sardinha

Um dia me chamou a atenção o fato de este blog ter, informalmente, uma seção de necrológios, que eu nunca pensei em fazer, mas que foi surgindo espontaneamente, pela necessidade de manifestar certos sentimentos. E hoje, com dificuldade, preciso escrever algumas palavras para o meu querido Ney Sardinha.

Professores e funcionárias do curso de Direito do CESUPA,
na confraternização natalina de 2012.
Ney agachado no canto inferior esquerdo.

Ney gostava de repetir uma história e o curioso é que ele a repetia para mim mesmo. Dizia que, ao chegar ao CESUPA, sentiu-se deslocado porque o curso de Direito era composto, basicamente, por professores muito jovens. Sentado lá na sala dos professores, desambientado, viu-me entrar. Eu me dirigi até ele, apresentei-me e lhe desejei as boas vindas. Nos anos seguintes, ele repetiu incontáveis vezes como isso fez com que se sentisse acolhido na nova casa. Dizia que a partir de então relaxou e se sentiu à vontade. Escutei essa história tantas vezes, mas sempre com a mesma sensação. E hoje, é com lágrimas nos olhos que me esforço uma vez mais e simplesmente não consigo recordar aquele dia. Foi tão marcante para ele e eu não consigo lembrar. Sinto-me mal por isso.

Como todos sabemos, Ney não era um homem de passar em branco. Temperamento forte, ideias contundentes e construídas com muita inteligência e conhecimento de causa, além do seu inesquecível estilo bateu-levou me fizeram adorá-lo. Eu lhe dizia, e repito isso sempre, que quando chegasse aos 30 anos de magistério, como ele (já tinha passado um tanto disso), eu não deixaria passar nada em branco. Eu também me tornaria o professor das frases antológicas, lembradas por todos os colegas, que mesmo com o passar dos anos se conservavam engraçadas e paradigmáticas.

Eu realmente queria ser como ele. Ainda quero. Só não sei se tenho algum talento para tanto.

Fiquei triste quando ele anunciou o câncer de próstata e feliz quando foi declarado curado. Aí veio 2013 e uma doença incerta, acompanhada de um péssimo atendimento por parte do plano de saúde e de certos profissionais, que lhe retirou a qualidade de vida. Ele publicou alguns textos no Facebook, expondo suas dificuldades e indignação. Compreensivelmente, todos ficamos solidários a ele, mas não imaginávamos o que viria pela frente.

Faz poucos dias que o vi pela última vez, por assim dizer em nosso habitat natural: a sala dos professores. Ele se queixava de dores e disse que se sentia "no chão". Que nem o câncer o fizera se sentir tão indisposto, sem vontade para nada. Eu lhe disse umas palavras de apoio, vi no relógio de parede que já era hora de minha aula, despedi-me e saí. Saí assim, com aquele descuido com que vivemos nosso cotidiano. Não fui lá lhe dar um abraço e dizer que eu realmente me importava e queria que ficasse melhor. Queria tê-lo feito. Mas parece que sou mesmo um grande especialista em futuro do pretérito.

Vai com Deus, Prof. Ney Sardinha de Oliveira, mestre de gerações, inspiração de muitos. É o que posso dizer agora. Vai dar trabalho para esse povo aí do Céu, que não está dando conta de resolver os problemas daqui do mundinho. Quem sabe se, te escutando, eles não têm finalmente alguma boa ideia para cuidar dos desgarrados aqui de baixo?

Antecedente: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2010/06/ney.html

10 comentários:

Anônimo disse...

Permita-me repetir a tua frase: “Prof. Ney Sardinha de Oliveira, mestre de gerações, inspiração de muitos”.
Lembro-me quando nos preparávamos para a conclusão do curso de Direito (UNAMA – 5DIN-1). O critério que tivemos na escolha do patrono. Defendi a tese de que nosso patrono deveria ser alguém profissional da área, competente, justo e companheiro. A última vez que encontrei com ele, disse-lhe que precisava continuar conosco, ajudando a consertar este mundo e que as palavras de Bertold Brecht lhe caíam muito bem. Ei-las:
Hay hombres que luchan un dia y son buenos.
Hay otros que luchan un año y son mejores.
Hay quienes luchan muchos años y son muy buenos.
Pero hay los que luchan toda la vida: esos son los imprescindibles.... (Bertold Brecht)
Obrigado, Mestre Ney!
Diácono Onildo Botelho

Anônimo disse...

O mesmo teimosão que defendia com veemencia as suas idéias e, principalmente , princípios, também era capaz de gestos bondosos, sempre com o ombro amigo a disposição daqueles que precisavam.

Aline, Neysinho, Lilian, Ramon e os demais familiares perdem um pai querido e que sempre pautou sua vida nos princípios éticos e morais.

Nossos jovens estudantes perdem uma referência do que é ser um Professor. Nem sempre mestrados, doutorados e pós-doutorados conseguem dar ao professor aquilo que é o mais importante : responsabilidade no ensinar .

E eu, cá no meu agora triste canto, perco um querido amigo, um irmão, que me deu o prazer e a felicidade da sua convivência.

Felizmente ficaram as sementes plantadas pelo Ney, que em breve me farão lembrar - já com um sorriso no rosto - a alegria que era tê-lo como amigo, nossas longas conversas, nossas desinteligências e nossas confidências.

Mas ele foi um dos mais belos livros que eu li. Disso tenho certeza.

Kenneth Fleming

Anônimo disse...

Um dia Ney escreveu em minha prova "em meio a tantas garatujas e bobagens, é uma alegria ler tua prova". Foi o melhor - e mais oportuno - elogio; fez com que eu olhasse para mim mesma de outro jeito.
Ney marcou uma geração.
Obrigada, professor!
Anna

Clariceguerreirinha.blogspot.com

MarquitosATRS2010 disse...

Me associo a suas palavras, mesmo sem conhecê-lo, Yúdice, mas não posso deixar de me sentir triste, pois perdi meu mestre, meu amigo meu querido NEY. Marcos Matos.

Anônimo disse...

Grande perda, Yúdice.

Fred

Yúdice Andrade disse...

Caro Onildo, seus critérios de escolha foram muito lúcidos e encontraram um destinatário perfeito. Nada como prestar uma homenagem com plena ciência de que é merecida.

A alegoria do livro é muito apropriada, Kenneth. Fico com ela, também. Não quero falar em perdas, porque quem conviveu com ele ganhou tanto, mas tanto, que perda não é o termo apropriado, até para não enfatizarmos a dor. Mas o luto precisa ser vivido. Depois dele, como você mesmo destacou, voltará o sorriso e todo o privilégio de ter aprendido grandes lições com ele.

Clarice, tiveste a lucidez de ver na aparente agressão uma lição, tirando dela o melhor proveito possível. Inteligentes os alunos que têm essa percepção. Tu melhoraste com isso e o Ney foi o que era: um educador nato.

Marcos, Ney irmanou muitas pessoas que não se conheciam. Só os grandes seres humanos fazem isso.

Ficarão grandes lembranças, Fred.

Ramon disse...

Professor, em nome da família, agradeço o carinho e externo o imensurável privilégio que for ter sido aluno, amigo e ter tido a honra de ingressar na família dele, sua maior herança para comigo. Ramon.



Hudson Andrade disse...

Haverá sempre abra um abraço que não foi dado, mas as grandes almas são lembrarão dos braços que enlaçou.

Paz & Bem

Anônimo disse...

Yúdice querido...
Li esse artigo no dia seguinte à morte dele, mas, pelo meu estado emocional, não consegui responder logo.
Papai sempre me contava essa história: de como tu foste a primeira pessoa que o fez sentir-se à vontade no CESUPA. E falava muito, muito de ti. Talvez por isso mesmo, antes mesmo de te conhecer, eu já gostava de ti.
O carinho e admiração dele por ti eram enorme, e ele não era de demonstrar isso por muitos, dado seu conhecido radicalismo com relação a tudo.
Obrigada, então, por tudo. Pelo amigo que você foi pra ele, e por essa homenagem linda, que eu e minha família sempre guardaremos conosco.
Receba meu abraço carinhoso agradecido.
Aline Bentes.

Yúdice Andrade disse...

Sem dúvida alguma, Ramon, você usufruiu de inúmeros privilégios. Desses que fazem a vida valer a pena. Grande abraço.

Sempre me impressionei com o carinho dele por mim, pois não via motivos para essa espontaneidade toda. Depois fui entendendo melhor e me senti privilegiado por isso. Privilegiado, mesmo. Ele me disse, certa vez, que eu era o único sujeito que não bebia nem fumava em quem ele confiava! Rimos juntos, nesse dia.
Gostaria de rir com ele de novo. Sinto a sua falta.