Já escrevi anteriormente que gosto de novela. Escrevi, inclusive, que as pessoas de um modo geral gostam de dramaturgia visual (cinema e TV), o que explica serem as novelas o principal produto televisivo de entretenimento no Brasil e em outros países, papel exercido pelos seriados nos Estados Unidos e que se completa — numa escala menor, por conta da curtíssima duração — nos filmes. Acredito que o público gosta de ver uma boa estória. Por “boa” entenda sob a perspectiva de cada um: há os que gostam de refletir, os que gostam de rir, os que gostam de sentir medo, os que gostam de mensagens e até os que gostam de desligar o cérebro para se divertir (categoria que me dá calafrios).
Pessoalmente, encaro com desconfiança essas opiniões-clichê dos que falam mal de novela, como se fossem necessariamente um produto imbecilizante. Já disse: o sujeito que quer posar de intelectual afirma detestar novela, adorar jazz e frequentar exposições de arte moderna. Eu gosto de novela, não suporto jazz e acho que uma boa parte da tal arte moderna não passa de engodo. E não me sinto nem um pouco imbecil por isso, até porque, no geral, o meu paladar cultural é até elitista demais.
Há novelas boas e ruins e eu até concordo que, hoje em dia, é bem mais difícil a produção de uma obra à altura das de antigamente. Mas elas surgem, aqui e ali. E quando surgem o público e a crítica reconhecem os seus méritos. É o que está acontecendo agora com Cordel encantado, produção global do horário inocente, escrita por Duca Rachid e Thelma Guedes, sob a direção geral de Amora Mautner.
Desde que ouvi falar pela primeira vez da novela, o título me chamou a atenção. A sinopse me pareceu curiosa e me levou a acompanhar as notícias da pré-produção. Quando começaram as chamadas na TV, graciosamente construídas sobre o folclore nordestino, meu interesse foi imediato. Há vários anos que não acompanho novela alguma, pelo fato de lecionar à noite. Mas eis que agora existe uma coisa chamada TV a cabo com possibilidade de gravação em HD e, para as eventualidades, pode-se ver também pelo YouTube. Então decidi que acompanharia Cordel capítulo a capítulo, religiosamente, como nos velhos tempos.
Sem trocadilhos, a novela é simplesmente encantadora. A constatação foi imediata, pela beleza das imagens gravadas em 24 quadros, como no cinema. O site Teledramaturgia informa que as novelas normalmente são gravadas em 30 quadros1. A jornalista Patrícia Kogut, que escreve sobre TV, referiu-se à novela como “a mais impressionante produção das 18h já apresentada pela Globo”2. E não importa o quão clichê você queira ser falando mal da Globo e seu imperialismo, mas ninguém faz novelas como a Globo. Gostando ou não disso, é um fato. Dispondo de mais recursos financeiros, técnicos, humanos e know how, além do currículo vastíssimo, a emissora investiu pesado em cenografia, figurinos e técnica, produzindo uma obra deslumbrante para os olhos. Público e crítica reagiram de imediato, com uma recepção calorosa, audiência elevada e elogios que não acabam mais.
Mas o grande mérito está mesmo no enredo. Determinada a ser uma estória romântica, fantasiosa, sem compromissos com o naturalismo, a trama bebe nas fábulas e na cultura popular para falar em reinos distantes, disputas pelo trono, intrigas palacianas e, ao mesmo tempo, coronelismo, cangaço e safadezas tipicamente brasileiras. Tudo ligado por uma estória de amor operística, de tão exagerada. Você se desliga dos aborrecimentos do dia, põe um sorriso no rosto e se diverte com o desfile de personagens interessantíssimos, defendidos por um elenco extraordinário, composto por veteranos do porte de Marcos Caruso, Zezé Polessa e Osmar Prado, ao lado de atores da nova geração que você até quer discriminar por conta do passado em Malhação, mas que estão dando um show, como Cauã Reymond (Jesuíno), Bianca Bin (Açucena), Bruno Gagliasso (Timóteo) e Luiza Valdetaro (Antônia). De quebra, ainda se delicia com atores menos conhecidos, alguns deles estreando na TV, como Ana Cecília Costa (Virtuosa), Domingos Montagner (Herculano) e João Miguel (Belarmino) e tem o prazer de ver brilhando de novo veteranos como Cláudia Ohana (Siá Benvinda), Débora Duarte (Amália), Ilva Niño (Cândida) e Berta Loran (rainha-mãe Efigênia).
O primeiro capítulo foi eficiente por resumir com maestria toda a trama central, mas me causou uma estranheza por amarrações mal feitas e implausibilidades. Depois me conformei que eu é que estava sendo marrento e a proposta é essa, mesmo: a realidade pode ficar um pouco de lado. Os excessos de interpretação nos personagens Patácio e Ternurinha deixaram de me aborrecer e hoje rio deles. E minha irritação com os cangaceiros mais frouxos do mundo cedeu ao ler que existe uma corrente, no folclore nordestino, que descreve os cangaceiros como homens bons, lutando por justiça. As autoras abraçaram essa vertente e por isso você acaba não entendendo porque o Capitão Herculano é tão temido, já que está sempre sendo generoso, condescendente com os inimigos e aceitando negociações, a ponto de cair numa óbvia armadilha (capítulo de ontem).
Destaco, por fim, uma das maiores qualidades de Cordel: seu ritmo. Enquanto as novelas em geral criam tensões que duram até o último capítulo, com o vilão sempre se dando bem e o mocinho sofrendo sem parar, até a reviravolta final, em Cordel os conflitos vão se sucedendo; uma situação termina para outra surgir. O vilão-mor, embora mau que nem pica-pau (uma interpretação impressionante de Bruno Gagliasso), vive levando o destempero, mas ataca de novo e, com isso, a correlação de forças com os justos pende ora para um lado, hora para o outro. Muito mais tolerável.
Em suma, estou satisfeitíssimo com esse programa levíssimo, divertido e bonito, que eu espero mantenha o mesmo nível até o final.
5 comentários:
Nossa, sou apaixonada por Cordel. Também sou apegada à novelas, seriados e afins e digo que nunca mais tinha visto uma produção tão boa na Globo - Sim a Globo não tem concorrência quando trata-se de fazer novelas, você tem razão.
Eu assisto o Canal "Viva", vejo novelas e seriados da década de 80 e me pergunto quando foi que eles começaram a perder a mão e a ficar tão hipócritas, seguindo uma cartilha pronta na produção de teledramaturgia.
Até que chegou Cordel, assim como você já fui fisgada nas chamadas e desde o primeiro capítulo já sabia que iria me apegar e chegar atrasada no Cesupa. hahaha Brincadeira, eu acompanho bastante pelo youtube. Considero de longe a melhor novela dos últimos anos!
ps: Realmente fiquei meio invocada no começo com esses cangaceiros tão romantizados, mas me rendi e hoje sou apaixonada pelo Capitão Herculano! rsrs
É uma surpresa e tanto descobrir que gostas de novela! Acho que nunca li isso por aqui. Eu me lembraria!
Também costumo gostar bastante, mas admito que a qualidade está cada vez pior.
Sabia que me encantaria por Cordel, mas, depois da minha febre por Ti-ti-ti, achei que um novo vicio agora não combinaria com meus objetivos atuais. Não assisti um capítulo sequer e acabaste de me deixar levemente arrependida! Se fosse em outro horário eu assistiria. Ainda não tenho esse recurso da gravação...
Ah, dentre tantos atores, não falaste da Nathalia Dill. Ela é a minha favorita da nova safra. Infelizmente, não sei dizer qual a personagem dela, mas pelo que vi de relance, ela não é de Seráfia e nem é cangaceira (deu pra ver o quanto eu gosto, né? Mesmo sem assistir, eu ainda sei essas coisas! Haha).
Era outro a assistir Ti-Ti-Ti... acabou que ando meio desligado desde o fim dessa. Eu entendo a proposta de "fantasia" do enredo, mas mostrar os cangaceiros como heróis, decididamente, não me agradou.
É que ainda estou meio impactado pela matéria que li, na última edição da revista da Biblioteca Nacional... a matéria de capa é de foras-da-lei tidos como heróis (na capa está justamente Robin Hood). A face real do Lampião é bem diferente da que ficou - esse lado romanceado, com um quê de justiceiro social (que não por acaso tem semelhanças com a do inglês), só teria surgido, por sinal, bem depois, a partir de cordelistas parentes de antigos membros do cangaço, e reforçada por radicais esquerdistas distantes do tempo e do lugar onde Lampião agia.
A matéria relata alguns fatos reais dos cangaceiros, nada louváveis... fora os que envolvem tortura e outras violências físicas, o de que os cangaceiros na verdade não raramente agiam de acordo com os grandes latifundiários, como jagunços de aluguel, contra camponeses.
Maíra, não me importo de trocarmos figurinhas sobre a novela nos corredores do CESUPA!
Luiza, quando criança, eu sabia dizer o número do capítulo do dia! Era noveleiro de marca maior. Deixei de ser, como disse, por lecionar à noite. E com a perda da qualidade, isso parou de me importar. Houve uma ou outra que lamentei não acompanhar, mas não deixei de gostar da proposta. E se gostas também, lamento informar que estás perdendo o melhor que já foi feito nos últimos muitos anos.
Nathália Dill interpreta Doralice, filha do prefeito e apaixonada por Jesuíno, mas que deve acabar com o Príncipe Felipe (e virar rainha de Seráfia!). Ela é devogada, mas o Direito nessa novela é algo meio surreal.
Ela é uma boa atriz e muito bonita. Mas há destaques maiores em "Cordel", apesar de, oficialmente, ela ser a segunda atriz mais importante.
Mas os cangaceiros eram terríveis, Caio. Ainda que alegassem motivos nobres, eram assassinos, ladrões e estupradores crueis. Matavam, torturavam e mutilavam a troco de nada, atacando sertanejos sem pena. Não era uma luta contra os coroneis, mas contra todos os não-cangaceiros.
Eu pensei que depois de Ti-Ti-Ti não fosse surgir tão cedo uma novela que me agradasse e me divertisse, pois pra mim assistir novelas, filmes, seriados e afins só faz sentido se for pra me divertir e me emocionar, principalmente quando é algo bem fora da realidade que a gente ver todos os dias nos jornais. Eu ultimamente não me ligo de novelas, mas amo Cordel Encantado, não perco um capítulo e como estou trabalhando nesse horário faço como o Sr. gravo e assisto depois. Ah! antes que eu me esqueça, sou leitora assídua do seu Blog, pra mim já se tornou leitura obrigatória, gosto muito do modo como o Sr. escreve, concordando ou não com suas opiniões.
Abraços fraternais, MALU
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