terça-feira, 28 de junho de 2011

You don't know Jack — o filme

Há 25 dias, publiquei uma postagem mencionando a morte da polêmica figura que foi o médico estadunidense Jack Kevorkian, que passou à posteridade conhecido pela alcunha "Dr. Morte", eis que auxiliava doentes terminais a fazerem a passagem, voluntariamente, o que despertou um intenso debate nos Estados Unidos, até porque o protagonista decidiu ser um ativista da causa. Por isso, enfrentou as ações criminais como forma de convencer as pessoas de que tinha razão. Mas o plano não seguiu exatamente como ele pretendia.

Ouvi falar de Kevorkian muitos anos atrás, numa época em que eu era mais romântico e idealista, características que frequentemente se atrelam, como em mim se atrelaram, à mania de julgar os outros. Minha antipatia por ele foi imediata. Afinal, naquela época eu não tinha a menor condição de entender a gravidade de um tema como o direito de morrer. Por isso, You don't know Jack, telefilme de 2010, dirigido por Barry Levinson, mais uma grande produção da HBO, teve o mérito de lançar luzes sobre esse personagem sombrio, permitindo que eu o conhecesse e entendesse melhor.

O filme é estrelado por Al Pacino, que dispensa apresentações. Como meu interesse foi despertado pelo tema, comecei a assistir sem nenhuma informação acerca da obra cinematográfica. Assim, levei um bom tempo para reconhecer o grande ator no papel principal. Como esperado, ele dá um show e é auxiliado com muita competência pelo elenco, em que também se destaca Susan Sarandon, intérprete de Janet Good, ativista pró-eutanásia que, adiante, se torna uma das pacientes de Kevorkian. É a conversa que tem com ele, no instante final, que dá nome ao filme.


Não há como ficar impassível ao que acontece na tela. E é preciso, ainda, ter o bom senso de entender que a intenção desta produção não é fazer apologia do suicídio assistido, nem sequer do indivíduo retratado. Kevorkian nunca aparece como um heroi ou um altruísta por excelência, embora chame a atenção que em momento algum falamos de pagamento pelos serviços prestados, mas eles com certeza existiam, porque o protagonista agia profissionalmente, já que encarava o seu trabalho como um atendimento médico igual a qualquer outro.

Kevorkian é retratado como um homem obstinado, turrão, de trato difícil. Não casou nem teve filhos, mantendo vínculos apenas com a irmã, que o ajuda em sua missão, mas não sem confrontos. Ele aparece com um médico fora de atividade e sem dinheiro, que certo dia resolve assumir a luta por uma morte digna, nos casos em que doenças irreversíveis tornaram a existência insuportável. Assume essa bandeira com tamanho ardor que não hesita em tornar-se réu em ações criminais (que vence todas, humilhando a promotoria, até o processo final, quando acaba condenado), em fazer greve de fome, em se expor na mídia (a divulgação dos vídeos de seus pacientes pela grande imprensa era um de seus trunfos) e, por fim, em ultrapassar todo e qualquer limite, praticando a eutanásia ativa. Ele quer convencer toda e qualquer pessoa de que o ser humano tem o direito de decidir a própria morte, se estiver lúcido.

Segundo o filme, Kevorkian não era obcecado pela morte. Além de se arrepender de não ter constituído família, ele se abala com a morte súbita da irmã a ponto de se recusar a ver o corpo. Fica perturbado ao saber que sua colaboradora (e amiga, a seu modo, suponho) Janet está com câncer no pâncreas. Quando ela fala pela primeira vez em morrer, ele foge do assunto e se apressa a dizer que ainda não é o momento para falarem a respeito (ela não estava terminal). Quando, por fim, chega a hora apropriada, ele não permanece ao seu lado, como fazia com os demais pacientes. Mas pede que ela mande um beijo para sua irmã.

Duas cenas me impressionaram bastante. Na primeira, Kevorkian se revolta quando falam que já existe a possibilidade de simplesmente desligar os aparelhos (ortotanásia). Ele brada que, nesse caso, o doente morre de fome, como um bicho, o que não tem nada a ver com dignidade. Na segunda, o advogado Geoffrey Fleger (Danny Huston), que defende Kevorkian, convence a corte recursal a absolvê-lo alegando, dentre outras razões, que se a sociedade admite o desligamento de aparelhos quando o paciente está inconsciente, como se pode negar o direito de morrer a uma pessoa lúcida, que assim deseja? Considero esta pergunta irrespondível, até o presente momento.

No final da cinebiografia (não me preocupei com spoilers ao escrever este texto porque, em se tratando de eventos reais, as informações poderiam ser obtidas de outros modos), Kevorkian perde seu advogado, empenhado numa malfadada campanha ao governo do Estado. Decidido a realizar a própria defesa, mantém um advogado que pouco lhe adianta. Há, por sinal, uma cena contundente, em que Fleger questiona seu sucessor sobre providências não tomadas e dispara: "Afinal, você passou no exame de Ordem?!"

Incapaz de vencer as tecnicalidades jurídicas, Kevorkian não percebe uma manobra da promotoria, a essa altura convencida de que suas diversas derrotas anteriores haviam sido motivadas pela empatia dos jurados com os familiares dos pacientes mortos. Assim, ao impedir que parentes chorosos relatassem o sofrimento de seus entes queridos, restou apenas a acusação de homicídio e de utilização de substâncias proibidas. O veredito: condenação pelos dois crimes, a até 25 anos de prisão.

O filme termina com o protagonista entrando em sua cela. Sabemos que passou oito anos preso, até obter liberdade condicional em 2007. Não perdeu a notoriedade. Virou tema de um documentário cinematográfico em 2005 dirigido por Barbara Kopple, que passou há poucos dias na TV fechada e eu perdi. Cinco anos mais tarde, veio este telefilme.

No último dia 3, aos 83 anos, Kevorkian foi defender suas convicções para outras e mais delicadas plateias.

Mais:
  • No site adorocinema, uma coletânea dos cartazes do filme, mostrando uma corajosa divulgação da obra. Veja as fotos.
  • Pacino foi laureado com o Globo de Ouro de melhor ator de filme para a TV e o Emmy de melhor ator. A produção também concorreu na categoria melhor filme. O roteirista Adam Mazer também ganhou o Emmy e o filme concorreu em outras dez categorias.
  • O cineasta Barry Levinson tem uma respeitável carreira no cinema. Entre seus trabalhos mais conhecidos está Rain man (1988), que lhe rendeu o Oscar.

2 comentários:

caio disse...

Procurarei. Se ainda precisava de algum motivo, seu último foi certeiro. Rain Main, certos clichês à parte (não sei se inaugurados com ele) é lindo! Hoffmann, por sinal, também atuou e foi oscarizado em RM... justíssimo. Superou até a que ele fez em A Primeira Noite de um Homem, outro dos meus filmes favoritos...

Yúdice Andrade disse...

Curiosamente, Caio, nunca vi os dois filmes que mencionaste. Mas vá conhecer a história do Kevorkian. Dá uma boa reflexão.