quinta-feira, 2 de junho de 2011

Além da tolerância

Se há uma pecha da qual os sodalícios profissionais não se livram de jeito nenhum é o de corporativismo. Nenhum escapa. Por isso, o Conselho Regional de Medicina é frequentemente assacado com acusações do gênero, de modo que, segundo o senso comum, é muito difícil e improvável que um processo ético-disciplinar nele instaurado termine com a punição do médico e, se isso chegar a acontecer, a sanção será moderada. Pessoalmente, vejo exagero nesse tipo de teoria, mas também não posso ignorar que, muitas vezes, tais agremiações (OAB, CREA e outras; não vamos incomodar somente os médicos) dão motivo para que se pense assim.
Entretanto, para tudo há um limite. E ele foi extrapolado no caso do ginecologista José Chiapetta (foto de Paula Lourinho), proprietário de uma clínica em Belém onde, além dos atendimentos lícitos, há muitos anos eram realizados abortamentos clandestinos (segundo investigações policiais). O próprio Chiapetta realizava tais procedimentos e acabou alvo de uma reportagem da Rede Globo, na qual aparecia muito satisfeito explicando aos repórteres, disfarçados de possíveis clientes, como era interrompida a gestação, como tudo era simples e seguro, etc.
Abortamento sempre é um tema motivador de escândalos. Mas o que realmente me instiga nele é a hipocrisia de muitos, pois a prática é largamente disseminada entre todos os níveis sociais. Você só não pode falar abertamente a respeito, porque o padre fica chateado. Mas por baixo dos panos há um nível de permissividade e conivência que surpreenderia, se viesse a público. E assim me refiro porque sou contrário ao abortamento voluntário. Que fique claro, o voluntário.
O interessante é que a imprensa destacou não o caso em si, mas a singularidade de o CRM do Pará, em 59 anos de existência, ter cassado um de seus médicos pela primeira vez há apenas quatro dias. E por maioria de votos. Nem quiseram insinuar nada com isso...
O mestre Eugenio Raúl Zaffaroni explica que o Direito Penal (estou estendendo o raciocínio à responsabilidade profissional) é adrede formulado para atingir os segmentos vulneráveis da sociedade: os pobres, os sem instrução, os "sem cobertura" (cobertura é, p. ex., uma proteção classista, frequentemente mal intencionada, que ocorre entre membros de uma mesma profissão ou entre os nossos valorosos parlamentares). Os bem sucedidos dificilmente são atingidos pelo sistema punitivo, o que acontece devido a alguma situação especial, p. ex. a perda da cobertura (sabe quando o Congresso Nacional cassa um político que está demonizado na mídia, para vender a imagem de honestidade, embora na verdade um terço de sua composição seja de investigados/processados pelos mais diversos delitos?) ou a prática da criminalidade tosca, que desperta reações excessivas e exige uma resposta à opinião pública (caso do Pimenta Neves, que foi processado porque matou e isso está além da tolerância; os crimes de colarinho branco, ao contrário, são perpetrados impunemente).
Valendo-me da doutrina zaffaroniana, e adotando para fins de argumentação a tese de corporativismo profissional, um médico poderia escapar da punição em inúmeros casos de erro, de negligência, de imperícia, até mesmo quando aberrantes. Contudo, fazer do abortamento um meio de vida não dá. Assim não há cobertura que aguente! E com isso, Chiapetta fez história. Mas aposto que não gostou nada disso.

PS — Há um erro na reportagem. Segundo o texto, se Chiapetta for malsucedido em seu recurso ao Conselho Federal de Medicina, "também passará a responder a uma ação criminal. Nesse caso, o Ministério Público Estadual (MP), baseado em inquérito policial, poderá denunciar Chiapetta à Justiça". O texto dá a entender que a denúncia criminal depende da decisão do CFM, o que é uma tolice. Imagine se o MP, que tem a competência constitucional de titularizar a ação penal pública, precisa ser autorizado por um órgão de classe para exercer suas atribuições!
Já existe um inquérito policial em andamento (aliás, já deu tempo de sobra para sua conclusão). O MP pode denunciar, se já dispuser de elementos para tanto. A imprensa podia ser um pouquinho mais bem informada, se quisesse.

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