Qualquer pessoa que me conheça um pouco provavelmente ficará incrédula ante o conteúdo desta postagem, mas este ainda é um país livre, então vou escrever.
O grande sucesso musical do momento, no Brasil, atende pelo título "Beijinho no ombro", da funkeira Valesca Popozuda. Diante disso, você deve esperar que eu prossiga falando de como a cultura brasileira está no fundo do poço, de como traímos os grandes nomes de nossa música, de como as pessoas hoje se permitem emburrecer e coisa e tals. Todavia, contrariando quaisquer expectativas, quero registrar um elogio aos responsáveis por mais essa bobagem comercialoide sem valor cultural algum.
Classificada como sub-celebridade (é o que se pode dizer de alguém que construiu sua carreira sobre a bunda e chama seus admiradores de "popofãs"), Valesca investiu para ganhar atenção da mídia. Sua anterior incursão musical de repercussão fora o pagodinho "Mama", gravado com o também funkeiro Mr. Catra.
Mesmo não me impressionando mais com a capacidade humana de se degradar, "Mama" me surpreendeu por levar às últimas consequências a apelação sexual. Com uma letra explícita e agressiva (que me deixou repugnado com a alusão a três cuspidinhas e sem reação diante da afirmativa de que "um copo d'água e uma mamada não se nega a ninguém"), tinha o propósito único de escandalizar para chamar a atenção e, com isso, capitalizar shows, entrevistas, etc. Não sei se deu certo. Mas Valesca já chegou ao estágio de querer uma imagem mais, digamos assim, respeitável (o próximo passo é se tornar evangélica e renegar o passado). A nova estratégia, portanto, foi persistir no estilo, porém com um novo, digamos assim, padrão de qualidade. E aí nasceu "Beijinho no ombro".
A letra possui inacreditáveis 16 versos e 124 palavras (127, se incluirmos o ótimo "rala, sua mandada!"), o dobro de qualquer sertanejo, o triplo de qualquer pagode e aproximadamente 85 vezes mais do que qualquer axé (que em geral se resume a uma sucessão de grunhidos ininteligíveis, permeados por palavras como "cabeça", "ombro", "joelho" e "bundinha").
A premissa da letra parece ter saído do parachoque de algum caminhão ("Desejo a todas inimigas vida longa/ Pra que elas vejam a cada dia mais nossa vitória"), e a despeito de alguns recursos tolos, como invocar o santo nome de Deus para atrair simpatias, e buscar o jargão corrente da mídia e das redes sociais ("keep calm e alguma coisa" e "piriguete"), fiquei impressionado com a eficiência com que a moça mostra que está sem problemas de autoestima. Segura de si, petulante mesmo, ela faz a única coisa que poderia uma artista do seu tipo: assumir-se como é, gostar disso e mandar os desafetos para aquele lugar que ela, com efeito bem mais eficaz do que em "Mama", não diz. Até ri com a pouco sutil provocação "late mais alto que daqui eu não te escuto".
Acredito que o popoprojeto, que conta com um bem produzido vídeo tosco (aqui no YouTube), foi bem sucedido porque conseguiu transformar a expressão "beijinho no ombro" em um símbolo de superioridade e de menosprezo que todo mundo poderá entender (se não tiver chegado hoje ao planeta). Os anos passam e todo mundo continua lembrando que "não é brinquedo, não" era o bordão da d. Jura, assim como "expor a figura na medina" e "queimar no mármore do inferno" eram referências que se ouvia por toda parte.
Posso estar me antecipando, mas acho que o beijinho no ombro ("pro recalque passar longe"), uma espécie de exorcismo da inveja, a qual estamos sujeitos cotidianamente, no mundo real e no cada vez mais onipresente mundo virtual, também vai se consagrar. Ou talvez eu esteja superestimando os efeitos do popofunk só porque, após ver o vídeo (sim, eu o vi, por culpa das meninas do blog Te dou um dado?), imediatamente me pus a pensar em situações a que eu poderia reagir mandando um beijinho no ombro. Desnecessário dizer que, rapidamente, pensei em muitas...
Só falta agora a dinâmica Valesca aprender a cantar e reduzir um pouco aquele sotaque carioca horroroso. As duas coisas juntas, aliadas a sua voz esganiçada, fizeram com que ela não pronunciasse bem os primeiros versos e gerasse inclusive um erro de concordância (você escuta "pra que elas veja"). Mas pode ser que ela precise justamente dessas características para compor o seu personagem. Afinal, hoje em dia, imagem é tudo.
Para concluir, tenho certeza de que, se Valesca lesse esta "resenha", me mandaria um beijinho no ombro. Que é o mesmo que eu mandarei a quem me disser que eu não deveria ter produzido esta postagem. Mas você já podia esperar por isso, não é?
5 comentários:
Este ótimo artigo me leva a uma conclusão e a uma desconfiança : você está em vias de defenestrar o José Ramos Tinhorão de seu pedestal. E a desconfiança é que estou achando que o teu doutorado é na área musical, e não penal.
De qualquer maneira, jamais diria que você não deveria ter produzido esta postagem. Fico muito feliz em adicionar aos meus parcos conhecimentos a informação de que a bunduda tem uns 2 kg de silicone . Na bunda, of course.
Dizem que quando vai à praia, gasta uns 3 tubos de protetor solar, só na bunda.
Bom domingo
Kenneth
Kenneth, fui obrigado a perguntar ao Oráculo Google quem era o Tinhorão, porque realmente nunca ouvira falar. Mas não pretendo ocupar-lhe o posto, não. Meus conhecimento musicais pouco vão além do gostar ou deixar de gostar de algo.
Folgo em saber que a postagem foi útil! Aguardemos para ver se alguém fará a defesa do axé...
Abraços.
Espero que um certo casal ali das bandas da Antonio Baena não se acovarde!!!
Kenneth
Em defesa do poeta Bell Marques devo informar que o mesmo não tem próteses de silicone, não faz aplicações de botox e nem implante capilar ( daí o uso constantes das bandanas).
Quanto ao estilo musical ninguém pode negar que ele único e inigualável no uso das vogais.
Sds aos amigos.
Ramon.
Li somente hoje!!!
gostei e assino conjuntamente o arrazoado.
To be AND not to be!!!!
lou axtmann!
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