Na grande vitrine da sociedade que é o Facebook, já vi esta mensagem diversas vezes, com algumas variações na redação. Há alguns minutos vi de novo e, dadas as pessoas envolvidas, atrevi-me a mexer nesse vespeiro e externar uma opinião, que reproduzo aqui com algum esmiuçamento.
Do modo como se encontra, e tomando como pressuposto que na frente da palavra "hétero" esteja implícito o vocábulo "casal", que está ausente nesta redação mas aparece em outras, fica-se com a impressão de que os casais gays assumem uma função de corrigir os erros perpetrados pelos casais heterossexuais.
Somando-se o fato de que adotar uma criança é um dos maiores atos de amor e desprendimento que uma pessoa pode realizar, a conclusão é de que se deveria emprestar muito maior relevo à decisão dos gays que adotam ou pretendem adotar.
Lamento, mas há argumentos falaciosos nessa afirmação, principalmente quando ela chega com a legenda "é a pura verdade", com o que se pretende instituir um argumento de autoridade, uma verdade autoevidente que, por isso mesmo, não pode ser contestada.
Eu a contesto usando como primeiro argumento que somente no sentido biológico se pode dizer que toda criança foi gerada por um casal heterossexual. Se abstrairmos a reprodução assistida, é inexorável que um homem e uma mulher precisaram realizar atos sexuais para que uma criança fosse gerada. E a obviedade biológica termina por aí. Porque se emprestarmos um sentido social à palavra casal, já eliminaríamos as relações sexuais que não são mais do que o encontro entre dois corpos, porque seus proprietários não formam nem pretendem formar um casal.
Admito que esta não é uma boa explicação. Quanto mais eventual é a relação, maior é o dever de evitar uma gestação indesejada. Contudo, nem sempre isso é possível. Eu me refiro, naturalmente, à violência. Em um país em que o índice de estupros é alarmante (e lembrando que os delitos sexuais estão entre aqueles de maior sub-notificação), a quantidade de crianças geradas em situação de abuso sexual com certeza é enorme. Muitas dessas crianças acabam sendo dadas para adoção, principalmente quando as vítimas são menores de idade.
Muitas mulheres que foram estupradas se recusam a abortar, por razões morais pessoais ou religiosas, mas não conseguem criar os bebês. Muitas sequer possuem condições materiais para fazê-lo, a par das emocionais. O que me leva ao segundo argumento relevante: toda criança dada para adoção foi abandonada? Se tomarmos "abandono" como a ação voluntária de rejeitar uma criança, a resposta não será assim tão simples.
Conhecemos histórias de meninas de 12 anos, às vezes menos, que tiveram filhos, os quais foram enviados para adoção simplesmente porque suas mães, elas mesmas apenas crianças, simplesmente não poderiam conviver com essa realidade. Assim como conhecemos histórias de famílias separadas pela miséria, embora os pais preferissem manter os rebentos sob o mesmo teto, se isso não fosse implicar em maior risco de morte. Às vezes, jogar um náufrago na água é a melhor opção de salvar os demais sobreviventes do bote. Horroroso, eu sei, mas a necessidade impulsiona as pessoas para julgamentos morais impossíveis de ser compreendidos por quem está de fora. Hoje tento ter essa clareza, para evitar certos julgamentos de valor.
Posso especular mais e pensar em crianças filhas, p. ex., de pais viciados em drogas, resgatadas pelas autoridades porque a permanência ao lado de seus pais seria mais perigosa do que um abrigo e possível adoção. Se evitarmos o juízo de valor sobre quem se droga, podemos também pensar que não houve exatamente um abandono nesse caso. Ao menos não voluntário.
Minha grande preocupação é que as pessoas, hoje, sempre tão predispostas ao combate, acabam por botar a perder causas dignas de respeito por faltarem a uma regra elementar da comunicação: buscar empatia com o interlocutor. Em vez de conquistá-lo e esclarecê-lo, partem para o confronto, antecipando ataques a suas suscetibilidades. Com isso, o interlocutor reage ao que compreende como uma agressão e o debate sai prejudicado. Temos visto isso em relação às causas de todos os tipos de minorias sociais e com os gays não é diferente.
Adotar uma criança é algo maravilhoso, seja você quem for, exceto se o seu plano for cometer tortura ou abuso sexual contra o adotado (ou outros tipos de abuso). Não me parece que a adoção se torne mais meritória porque você é gay, advogado ou tem só uma perna. E se ainda por cima você se considera o cara que limpa o lixo deixado pelos héteros, não-advogados e genuinamente bípedes, acaba por criar uma barreira comunicativa que, se não for resolvida, inviabilizará o estabelecimento de relações de respeito recíproco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário