segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Personagens histriônicos da contemporaneidade

Em 1988 o Brasil viveu as emoções de Vale tudo, um dos maiores triunfos da teledramaturgia brasileira, como se percebeu pela reprise no ano passado, no canal a cabo Viva. O folhetim de Gilberto Braga ― protagonizado pela Raquel de Regina Duarte e sua filha ingrata, Maria de Fátima (Glória Pires), no qual também se destacou Odete Roitmann (Beatriz Segall), até hoje uma das mais completas vilãs da TV ― teve em 2012 índices de audiência muito superiores aos das novelas e outros programas então em exibição.

Aldeíde e seu estilo tão anos 1980...
Um dos personagens secundários de Vale tudo era Aldeíde Candeias (Lília Cabral), pertencente ao núcleo pobre, mas que se casou com um empresário português muito rico. Em pouco tempo, o marido morreu e ela retornou ao Brasil, rica, porém frustrada, porque faltava alguma coisa. Ela não aparecia em colunas sociais, ninguém a reconhecia na rua. Isso tinha a ver, especulo, com o fato de que na alta sociedade sempre foi muito importante o fator berço. Veja-se como, na elite paulistana, até hoje é muito famoso o adjetivo "quatrocentão", para indicar os muito ricos de linhagem aristocrática, que se diferenciam dos que são apenas endinheirados. Estes são os novos ricos, sem classe, sem cultura, de menor instrução formal, de deficiente traquejo social. Bregas, enfim.

Em dado momento, Aldeíde vendeu uma de suas propriedades em Portugal para, com o dinheiro, produzir uma espécie de comercial de TV, patético, no qual ela aparecia fazendo caras, bocas e poses, dizendo apenas "Meu nome é Aldeíde Candeias e vou incendiar esta cidade!"

Recordo-me perfeitamente da cena, como se tivesse assistido ao capítulo há poucas horas. A pobre menina rica Aldeíde, imatura e desejosa de aceitação pública, não se beneficiou destes tempos de internet, nos quais qualquer espécime medíocre da humanidade pode produzir um filme, publicá-lo para o mundo todo ver e se tornar, quem sabe, um meme. Para ela, custou muito dinheiro. Quanto ao resultado, não sei. Ela ao menos encontrou um novo amor.

Ressalto que o ano era 1988. Naquela época, o culto à personalidade só incidia sobre figuras realmente imponentes de alguma área, p. ex. da política. Atores como Alain Delon e atrizes como Sophia Loren eram celebridades. Cantores como Chico Buarque e Roberto Carlos eram mitos. Mas tentar ser Delon, Loren, Chico ou Roberto não era uma tarefa exequível. A palavra "celebridade" provavelmente nem fazia sentido às massas. E, em todo caso, não era exatamente a prioridade senão em agendas eventuais, como a de Aldeíde Candeias, que não à toa era considerada excêntrica e até mesmo ridícula.

Duas décadas mais tarde, o culto à personalidade é a tônica no mundo. Qualquer personalidade. Hoje, o mais comum é encontrar quem deseje ser famoso, reconhecido na rua, perseguido por papparazzi, conceder entrevistas falando bobagens, etc. As redes sociais contribuíram poderosamente para isso. Mesmo que bem intencionadas, em sua origem, destinadas a criar ou reforçar laços entre pessoas, acabaram tornando-se o veículo das doenças psicológicas de nosso tempo. Os blogs nos deram (algo falo em primeira pessoa) a possibilidade de sermos, todos, críticos e especialistas de absolutamente tudo, em especial daquilo sobre que não entendemos nada. Veio o Twitter, expressão da urgência destes tempos, em que não se pode perder tempo com leituras. A limitação dos 140 caracteres pode ser a limitação do tamanho das ideias hoje produzidas. E, claro, o Instagram, essencialmente visual, ferramenta perfeita para se registrar cada momento (feliz) da vida, publicá-lo e aguardar os elogios.

Aí vieram o YouTube e outras ferramentas congêneres, permitindo a divulgação não apenas da imagem, mas da voz, dos trejeitos, dos diferentes aspectos das façanhas dos ilustres desconhecidos. Como golpe de misericórdia, vieram os reality shows, abomináveis em sua maioria.

Hoje, as gerações mais jovens nasceram em um mundo que já tinha internet. A superexposição, para elas, não apenas soa como natural quanto é desejável. Vivemos a era das autofotografias de espelho, das informações sobre tudo que se faz, sobre onde se vai, com quem se está, frequentemente em hashtags. Muitos fazem check in nos lugares por onde andam. A privacidade foi mandada às favas (até que ela seja realmente necessária).

Mas muita gente não se contenta em ser apenas um perfil com generoso número de seguidores. Há cada vez mais pessoas desesperadas por alcançar o patamar de celebridade. Para tanto, vale tudo, como na novela que discutia ética. Vale tirar a roupa em público, expor as próprias relações sexuais, trocar violentas farpas publicamente, aproveitar deixas inesperadas, etc. E graças à internet, basta fazer um vídeo bem produzido.

Há alguns dias, surgiu na rede um jovem empresário "ensinando" dicas para ser o rei do camarote nas baladas. Começou a ser massacrado nas redes sociais, mas a única consequência prática disso é que seu vídeo começou a ser replicado, replicado e replicado. Na lógica do falem mal, mas falem de mim, o plano está dando certo. Fiel aos meus princípios e não querendo fomentar os ganhos de um sujeito desses, não informo seu nome, não mostro seu rosto, muito menos publico o link de sua obra de arte. Aliás, já estou me contradizendo só por escrever tantas linhas motivado pelo tal vídeo.

O que o cara "ensina", falando em seu deficiente português, é que, para ser o rei do camarote, você precisa vestir roupas das grifes mais caras, dirigir um carrão (ele ostenta uma Ferrari, não sei se alugada), tomar champanhe (mesmo que não seja sua bebida favorita, como não é a dele, mas implica em status), encher o ambiente de mulheres bonitas (de que adianta tudo isso sem elas) e, dentre outras coisas que meu cérebro não quis registrar, gastar muito, muito dinheiro. Com orgulho, ele menciona contas de 50 mil reais ou mais, numa única noite. Tudo isso com um sorriso permanente, enquanto finge que sabe dançar. Desde Nissim Ourfali eu não via um vídeo tão tosco. Mas se Nissim levava a taça de tosqueira, o tal rei do camarote é o porta-voz de um mundo doente.

O pior é que bastam uns poucos dias para alguém se tornar uma celebridade da internet, classificação que já vale como sucedâneo de profissão no currículo de quem pretende participar de reality shows rurais. Em breve, o tal rei do camarote será incensado pela mídia, sempre ávida a consumir e promover o que há de pior. Começarão a fazer matérias com e sobre ele; logo o veremos participando de programas de TV e brilhando em manchetes dos grandes portais, tais como "Rei do camarote se esbalda na noite carioca", "Rei do camarote janta com amigos em Miami", "Rei do camarote deixa a cueca à mostra em passeio no calçadão". Essas manchetes estarão nas home pages, ao lado das notícias sobre macroeconomia, relações internacionais, grandes eventos; terão mais destaque que as notícias sobre ciência, que precisam ser buscadas nas seções próprias e não gozam de apelo popular. Um dia, no Castelo de Caras, ele se definirá como um homem simples.

Tento me adaptar a este mundo. Olho acontecimentos assim e encaro tudo como sintomas. O surgimento de pessoas desse tipo é como um câncer: você se apavora ante a ideia de enfrentar um, mas no fundo sabe que está à mercê da loteria da vida. Resta-nos aprender a lidar, a conviver. Acima de tudo, conservar os valores que você considera valerem a pena. Conservá-los e repassá-los, seja na educação de um filho, seja, inclusive, em sua conta do Facebook, do Twitter, do Instagram, em seu blog e onde mais couber. Espaços virtuais não faltam. Alguém vai acabar vendo. Quem sabe até concordando.

Acréscimo em 5.11.2013:
Mesmo que tudo não passe de armação, vale a reflexão. Além disso, parece que o caso é real, mesmo. O empresário baladeiro teria até sentimentos!

4 comentários:

Anônimo disse...

Teria até sentimentos....Boa essa.
Kenneth

Jean Pablo disse...

Quando tive a (desgraçada) oportunidade de ver o citado vídeo me neguei a acreditar aquilo não é nada além de uma "brincadeira" ao estilo "enterrar o carro" by Chiquinho Scarpa.

Nego a crer que possa ser real, mesmo aceitando o fato de ser o pensamento de inúmeras pessoas sem, obviamente, a vultosa quantidade de bens.

Enfim, brincadeira ou não, apenas expõe a frivolidade do caráter humano e espelha o culto a ostentação (propagado em funks).


Anônimo disse...

Yudice, acompanho o seu blog há mais de ano e para mim este foi o seu melhor post. Comungo do seu pensamento sobre a sociedade atual e para me proteger fugi das redes sociais e não replico nenhuma baboseira desse tipo de gente. Graças a Deus que não somos imortais, porque a situação vai piorar. Abçs e sucesso

Yúdice Andrade disse...

É importante ter fé, Kenneth!

Mas o "conde" Scarpa estava apenas dramatizando uma situação para sensibilizar a sociedade sobre a questão da doação de órgãos. Foi um gesto nobilíssimo da parte dela e sem a menor conotação de autopromoção. Pena, para ele, que ninguém mais se recorde do ocorrido.
No mérito, o que mais me preocupa nem são os muito ricos que cometem essas sandices, mas pensar nos que jamais serão ricos emocionalmente mobilizados, talvez a vida inteira, em torno desse desejo.

Das 12h34, agradeço a sua generosa manifestação. Às vezes consigo vencer o meu próprio senso crítico e gostar do que escrevi. Esta postagem representa um desses momentos. Por conseguinte, fico feliz que tenha sido apreciado.
Venha sempre. Abraço.