quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Apenas mais gente perdida

Os tais "rolezinhos" são um dos principais assuntos do momento no país, polêmica insuflada por decisões judiciais que proibiram a prática e legitimaram a repressão, inclusive por agentes públicos. E se todo mundo está falando do assunto, eu não tenho vontade de falar.

Mas agora que já se escreveram incontáveis manifestações a respeito, posso me dar ao luxo de recomendar aos interessados que procurem essas fontes.

Esta imagem praticamente sintetiza o que a sociedade é. Policiais
militares (trabalhadores mal remunerados e sem reconhecimento) agem
com violência na defesa dos valores de um sistema do qual eles mesmos
não se beneficiam. São peões úteis de um capitalismo preconceituoso e
desumano, que define quem não merece cidadania por sua quantidade de
bens, sua origem e até mesmo pela aparência.
(Foto: Bruno Poletti/Folhapress)
Gostaria de externar, apenas, uma opinião sobre os "rolezinhos", em si mesmos, porque sobre a repressão me considero contemplado pelas aludidas manifestações. Quem conhece meus valores de esquerda já pode deduzir que vejo, na reação dos shopping centers, na prontidão com que o judiciário atendeu sem restrições aos seus apelos e no modo como se tem realizado a repressão um claro sintoma do imaginário social, assentado em forte discriminação de classes fundada na propriedade ou não de riqueza material.

Com a globalização econômica e a disseminação de tecnologias de comunicação, fenômenos sempre lembrados, aliados ao controle das mentes pela mídia, quase sempre encaminhando o grande público à imbecilização, difundiram-se o consumismo desenfreado, o culto a marcas, a padronização da aparência e do comportamento, além de se fomentar atitudes que, em última análise, servem apenas para fazer alguém ganhar dinheiro. Hoje em dia ninguém mais pode se divertir sem encher a cara: ponto para a indústria cervejeira. Modismos como reality shows e UFC na TV: ponto para as grandes corporações de entretenimento e empresários esportivos. Música sem nenhum valor glorificando a badalação e a futilidade nas relações interpessoais: ponto para as indústrias fonográfica e de grandes eventos. E por aí vai.

Valorizo manifestações (se necessário, até violentas!) nos quais minorias sociais lutam por direitos fundamentais. Achei muito importante para o futuro do país as manifestações de junho do ano passado, no que tinham clareza do que se buscava. Considero previsível e, até certo ponto inevitável, a luta por reconhecimento (por sinal, é a base de minha pesquisa de mestrado), seja individual, seja como membro de uma coletividade. Mas uma coisa é uma população ribeirinha, indígena ou quilombola lutando por suas terras ou pela preservação de seus modos de viver, ameaçados pela construção de uma hidrelétrica. Uma coisa são negros, mulheres, idosos, homossexuais ou portadores de necessidades especiais lutando pelo reconhecimento de sua igualdade, contra toda a violência que historicamente sofrem. Uma coisa são os pobres querendo acesso à educação superior, moradia ou transporte público. Coisa bem diversa é o "rolezinho".

Baseando-me nesta reportagem aqui (é da Folha, mas não acho que seja o caso de preconceito), observei que os "rolezinhos" surgiram como encontros nos quais os jovens queriam apenas se divertir, fazer as bobagens que qualquer jovem faz, ainda mais hoje em dia: conhecer pessoas, ver e ser visto, ficar com uns tantos, etc. Em suma, é interação social. Melhor do que ficar com a cara enfiada na TV ou no videogame. Não vejo nenhuma diferença entre o "rolezinho" dos mano e das mina e a balada da classe média em boates caras (ou, o que é ainda mais babaca, em postos de gasolina). Para mim, tudo é expressão de gente buscando autoafirmação; e liberdade, só que nos lugares errados. Mas, enfim, é coisa de juventude.

Agora vou ao ponto. Pode me chamar de etnocêntrico, preconceituoso e do que mais quiser. Pode despejar sobre mim as suas teorias "sociológicas" de origem incerta. Mas não consigo ter respeito por gente que, em vez de lutar contra um sistema opressivo e desigual, quer apenas cavar um modo de ser acolhido por ele.

Entendo ser acolhido pelo sistema a atitude de vestir roupas de marcas específicas, para caber no molde, para sair e ficar azarando e zoando, à toa, tendo como premissa mais ideológica o direito de expressar os meus problemas de autoestima.

Em meu favor, invoco que sou, ao menos, um preconceituoso justo: meu menosprezo por quem tem dependência por marcas Oakley, Abercrombie ou Adidas é da mesma natureza que o que sinto em relação aos dependentes de Channel. Minha aversão a uma vida à toa é tão grande se a paisagem é a mais cara boate da cidade ou um shopping de periferia. Meu lamento soa nos batidões funk do mesmo modo que nos camarotes VIP das villas isso e aquilo, onde a música também é escrota, o papo sem nenhum nível e as drogas rolam por todo lado. Dinheiro em excesso não muda o vazio interior. Pelo contrário, até agrava, já que, em princípio, os mais bem aquinhoados teriam melhores condições para fazer coisas diferentes.

Não sei se me fiz entender, mas o fato é que não gosto dos "rolezinhos". Defenderei até o fim o direito de qualquer pessoa, de qualquer nível de renda ou de instrução, de qualquer origem ou condição social, frequentar qualquer espaço aberto ao público, sem ser molestado, inclusive com revistas pessoais e identificação sem motivos concretos. Defenderei o direito ao lazer, à expressão, à autoafirmação pessoal e grupal. Serei totalmente contrário a uma sociedade que impõe valores aristocráticos, que segrega e aniquila o indivíduo. Repudiarei todo poder público que se coloque a serviço da propriedade privada, assim como a manipulação midiática. Mas, por outro lado, continuarei sonhando com o dia em que os nossos jovens buscarão maneiras mais úteis, para si mesmos, de autoconhecimento, de socialização e de busca por seu espaço no mundo.

Outra abordagem jornalística: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/01/conheca-historia-dos-rolezinhos-em-sao-paulo.html

7 comentários:

Anônimo disse...

Gostei da postagem, caro Yúdice.. Eu ainda estou ruminando os fatos, não os tendo suficientemente claros , mas tendo a segui-lo.

Kenneth

Zizi disse...

Yúdice,
Rcentemente vi na Globo news um sociólogo (não tenho certeza) falando que as manifestações destes jovens é a sua forma de protestar pela falta de áreas de lazer na periferia, ou seja, os governates privilegiam apenas a classe média e alta. É...pode ser, mas se eles também fizessem o seu protesto como ocorreu em junho, talvez surtisse mais efeito. Muito bom seu texto e opinião.

Anônimo disse...

Bravo! me fez mudar de "lado".

Yúdice Andrade disse...

Agradeço a gentileza da avaliação, meus caros. Mas admito que eu mesmo ainda estou "ruminando" (como disse o Kenneth) tudo isso, a fim de formar uma opinião melhor.
O meu ponto é, realmente, duvidar tanto das bandeiras levantadas quanto dos modos de protestar. Depois da postagem foi que vi, pelo Facebook, a convocação para o tal "rolezinho" do dia 25, aqui em Belém. É simplesmente uma conclamação. Com isso, vai aparecer um monte de pessoas, mas os "líderes" não debateram com elas sobre o real sentido do "movimento". Logo, não é uma participação consciente, refletida. E se não o é, não conta com o meu respeito.
É de se esperar que a coisa seja apenas baderna. Com isso, se havia alguma causa nobre a defender, ela se perderá em meio ao tumulto e os adversários terão fartos argumentos para manter suas posições.

Anônimo disse...

Meu caro Yudice, bela postagem. Concordo com vc. Na verdade, os rolezinhos surgiram em SP por pura zoação.Nada tem a ver com uma luta de classe consciente. Nada tem a ver , infelizmente, com consciencia politica.Os manos da periferia de SP, que curtem funk ostentação q é algo pra mim nojento, pq valoriza apenas o ter ao inves do ser, invetaram essa de rolezinho pra tirar onda msm, pra pegarem as gatinhas, enfim. O erro foi a PM paulistsa reprimir com porrada.Agora, não sabemos o que pode acontecer daqui pra frente. A unica maneira, meu caro para essa juventude mudar esse pais é por meio do estudo, da leitura, etc..enfim, mas vamos aguardar o que pode acontecer.Mas eu li mts comentários preconceituosos na internet. Pra mim os rolezinhos são inofensivos, a garotada merece se divertir, azarar,.São jovens. Forte abraços. Marcio Farias

daniel disse...

Na veja desta semana tem uma reportagem feita em liquidificador sobre o assunto. É a "direita" se aproximando do povo, uma idiotice sem tamanho.
Qualquer um pode andar, ir e vir de espaços que são abertos ao público. O que causa nojo é a juventude sem perspectiva... na reportagem diz que tem uma guria que gasta na base de 400 reais toda vez que vai fazer compras, sendo que a pirralha tem 15/16 anos e é filha de uma doméstica...
no mesmo condão mostra um pai que diz ter o maior orgulho de poder dar ao filho o que ele não teve... ai se fica esperando que ele diga que paga uma escola cara para o filho, um bom pré-vestibular, ou um curso de idiomas, mas não, ele tem orgulho é de dar roupas caras pro pivete e fazer o filho se sentir bem... vai entender!!! É o ciclo sem fim de ignorância alimentando ignorância... Ai vem a veja e diz que o rolezinho é "da hora" (exatamente com estas palavras) e que meia duzia de baderneiros é que se infiltram no movimento e causam saques e depredação (peraí... já ouvi isto uns 6, 7 meses atrás...) o que de certa forma é verdade, mas claro, a massa continuará alienada e as elites continuarão jateniando, maiorando, barbalhando e sarneyzando por ai... abraços

Yúdice Andrade disse...

Márcio, há momentos em que se precisa admitir que certas coisas são como são. Jovens querendo curtir e fazendo coisas que os mais velhos consideram idiotas? Isso existe desde, ao menos, que as relações familiares deixaram de ser exclusivamente verticais. Fôssemos barrar todas as "idiotices", nunca teria surgido o rock!
O ponto, portanto, não deve ser reprimir o lazer - e mesmo essa inclinação digamos "natural" do jovem à irresponsabilidade. A grande questão são os conflitos classistas que estão envolvidos. Justamente por causa deles, o debate está contaminado pela intolerância. Até porque os reacionários não dizem mais tudo o que pensam, para não sofrer reações, e acabam por mascarar o discurso. No final das contas, as pessoas estão reclamando do tipo de lazer da juventude!

Daniel, sendo as coisas do jeito que você escreveu (eu não li a "Veja" desta semana, nem as anteriores), eu diria que a revista em apreço é melhor quando assume sua natureza elitista e expõe os valores do alto clero. Quando ela se traveste de democrática, inclusiva e amiga, consegue ser mais enojante. Porque dissociada dos valores da periferia, acaba por se concentrar nos aspectos menos louváveis desse fenômeno - p. ex., o consumismo.
Concordo com você quanto à afirmação de que dotar os filhos do que não tivemos é bom e necessário (eu mesmo penso assim), desde que o nosso legado seja para o aprimoramento do nosso filho. No caso que você mencionou, é apenas uma concessão aos tristes tempos em que as pessoas vivem sem saber para quê.
Uma pena.