quarta-feira, 1 de junho de 2011

Kardec racista???

O Espiritismo foi codificado, em meados do século XIX, pelo filósofo e educador Hippolyte Léon Denizard Rivail (cognominado Allan Kardec), através de cinco obras literárias que, pela sua importância, são conhecidas como as Obras Básicas. São elas: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese. Posteriormente, surgiu O que é o Espiritismo, uma compilação que pretende introduzir o neófito de maneira mais simples, havendo inclusive a recomendação de que seja lido antes de O Livro dos Espíritos. Por fim, houve a publicação de Obras póstumas.
Com surpresa, acabei de tomar conhecimento de que um cidadão acusou este último livro de possuir "conteúdo racista" e, como tal, ser lesivo ao patrimônio histórico e cultural. Sob essa premissa, ele ajuizou ação popular contra o Instituto de Difusão Espírita (editor da obra) perante a 3ª Vara da 8ª Subseção Judiciária Federal, em Bauru (SP), invocando a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e pedindo o recolhimento ou a busca e apreensão dos exemplares, sob pena de multa diária, além de indenização por danos morais causados à coletividade! O pedido foi fundamentado no art. 20, § 3º, I, da Lei n. 7.716, de 1989.
Felizmente, o juiz federal Marcelo Freiberger Zandavali rejeitou o pedido liminar. Após sustentar, com acerto, que "as liberdades de expressão e de crença não podem servir de escudo para a prática de crimes de racismo", o magistrado ponderou que a obra foi publicada em 1890 e o falecimento do autor, em 1869, de modo que "não é de espantar que as afirmativas de Allan Kardec refletissem o espírito de seu tempo, em relação às pessoas de cor negra", citando eventos históricos daquela época, capazes de demonstrar que a compreensão geral sobre os negros era extremanente desfavorável. Ponderou, também, que a obra não pretende menoscabar direitos das pessoas negras, tanto que, em nota explicativa ao final da publicação, manifesta "o mais absoluto respeito à diversidade humana [...], sem preconceitos de nenhuma espécie: de cor, etnia, sexo, crença ou condição econômica, social ou moral". Afirmou estar evidente que a intenção dos editores era "divulgar, sem mutilações, o pensamento kardecista, sem, para tanto, elevar a distinção baseada na cor da pele em ideologia discriminatória".
A ação prosseguirá, ou seja, a questão está longe de uma solução. Seu número, para consultas futuras, é 3015-78.2011.4.03.6108.
Se por um lado a Justiça Federal rejeitou em princípio o reconhecimento de uma prática racista, por outro há que se questionar que razões levaram um cidadão a acusar Allan Kardec de racismo.
Lembrem que, recentemente, houve uma barata voa aqui no Brasil, quando Monteiro Lobato sofreu idêntica acusação, por referir-se a Tia Nastácia como "macaca de carvão" e por outros trechos pontuais de suas obras. Como Lobato está arraigado no imaginário popular como bonzinho e uma referência para crianças, não faltaram defensores furiosos para ele. Pouco tempo depois, porém, a divulgação de correspondência pessoal do escritor a amigos causou enorme susto em seus admiradores. Vejam alguns trechos, que foram apontados como apologia do racismo e da eugenia:

“Mulatada, em suma. (…) País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Klux-Klan é país perdido para altos destinos. (…) Um dia se fará justiça ao Klux-Klan; (…) Tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem (sic) a capacidade construtiva.” Em carta a Arthur Neiva, Nova York, 1928

“Os negros da África (…) vingaram-se do português de maneira mais terrível, amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã . (…) Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? A Godofredo Rangel, 1908

“A escrita é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, ‘work’ muito mais eficientemente.” A Renato Kehl, 1930

“ (…) Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha.” A Renato Kehl, 1930

“Meu romance não encontra editor. (…). Acham-no ofensivo à dignidade americana. (…) Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.” A Godofredo Rangel, sobre o romance “O presidente negro”
Deixo claro que não estou chamando Lobato de racista. Sei que ele foi defendido mesmo após a divulgação dessas cartas. Acima de tudo, não sou estudioso de sua vida e obra, por isso não me arvorarei a tirar conclusões. E, de todo modo, não estou nem um pouco preocupado com Monteiro Lobato. Minha questão é: Allan Kardec era racista? O fato de expressar pensamentos de sua época minimiza a sua responsabilidade?
Anos atrás, participava de um grupo de estudo espírita e nos defrontamos com uma passagem, salvo engano de A Gênese, que mencionava os negros como feios, devido aos seus traços grosseiros. Havia uma sugestão de que o processo evolutivo tornaria a aparência física dos indivíduos mais delicada, ou seja, mais caucasiana. O excerto nos causou espanto e começamos a tratar justamente de um possível cunho racista ali, que não tributamos a preconceito do autor, mas à mentalidade da época.
Devido aos anos já passados, não me recordo mais da conclusão a que chegamos, se é que chegamos. Só sei que o tema é importante para quem se preocupa com a dignidade do Espiritismo ou quem se importa com o impacto das doutrinas de largo alcance.
Tocarei no assunto com pessoas mais abalizadas na Doutrina Espírita e outra hora voltarei ao assunto.

Saiba mais:

7 comentários:

Ivan Daniel disse...

Surpreende-me também a acusação. Como também me surpreende sobre "A Gênese", mas essa é a única obra básica que não terminei de ler, apenas iniciei. Vou acompanhar o desenrolar do caso, inclusive aqui no blog, e se tiver oportunidade de conversar com alguém mais conhecedor do Espiritismo também tocarei no assunto.

Anônimo disse...

Também sugiro dar uma olhada nas respostas às perguntas de 817 a 822 de O Livro dos Espíritos, com destaque para a resposta dada pelos próprios espíritos em 822-a, sobre se deve haver igualdade dos direitos do homem e da mulher e a resposta: "Dos direitos, sim; das funções, não. Preciso é que cada um esteja no lugar que lhe
compete. Ocupe-se do exterior o homem e do interior a mulher, cada um de acordo com a
sua aptidão". Nesse caso é um pouco mais grave, porque não seria Kardec, o homem encarnado no Séc. XIX e, portanto, parcialmente incapaz de transcender por completo o horizonte das crenças de sua época, quem estaria falando, mas sim os "espíritos", nesse caso "espíritos de luz", que pertencem a outro estágio evolutivo e olham a marcha das épocas e das crenças da perspectiva do observador privilegiado, que já conhece o desfecho de uma narrativa que ainda está em curso, não tendo por que sofrer a influência das crenças de época.

O mesmo se aplica a inúmeras explicações "científicas" fornecidas por tais seres, que só fazem sentido à luz das crenças da ciência do Séc. XIX e que seriam desmentidas ainda naquele século, como a existência do éter, o tipo de disposição das camadas da crosta terrestre, a datação dos fósseis dos antepassados humanídeos mais antigos, uma descrição da evolução que lembra a compreensão então em voga do darwinismo e que ignora barbaramente a influência dos elementos genéticos etc. Todos esses são sinais de que a doutrina é "datada" de diversas formas.

Lembro de que, quando eu tinha uns dezessete anos, fiz um mapeamento de todos esses pontos "datados" e comparei com as convicções que pesquisei serem as dominantes à época, tanto no terreno científico, como no ético e no social. Na época isso tinha outro tipo de importância para mim (de autodescoberta sobre se eu estivera ou não por toda a vida atribuindo sentido transcendente a uma doutrina que, embora bem intencionada, era humana, demasiado humana), mas hoje, na perspectiva do observador externo, considero esses pontos curiosos, mas não surpreendentes nem diminuidores da importância, principalmente ética, da mensagem. Contudo, para quem isso tenha importância especial, recomendo como libertadora a atividade de pesquisa de comparar as crenças do espiritismo kardecista com as do positivismo comtiano e spenceriano (especialmente a compreensão científica do mundo e dos processos evolutivos) e com as da franco-maçonaria do Séc. XIX (especialmente a compreensão ética da justiça e da fraternidade, a identificação de orgulho e egoísmo com os males radicais etc.). As semelhanças são espantosas a um ponto tal que dificilmente podem ser casuais.

Anônimo disse...

nossa,yúdice!achei tão interessnte essa tua postagem.infelizmente não posso discuti-la porque nem de longe chego no teu nível de cultura,ainda mais em se tratando de espiritismo,no qual eu acredito desacreditando em algumas idéias.então me dou por satisfeita em exteriorizar o meu espanto com o preconceito do monteiro lobato,justamente creio eu,pela ideia que tu falaste que nós temos dele como um senhor legal que gostava de brincar com crianças e que via o mundo de forma colorida e mágica.me deixei levar pelo sítio,imagino e acabei me esquecendo que ele também é produto de sua época.aliás,acho ,sim,que ele e todos os que defenderam qualquer de preconceito contra o que quer que fosse(etnia,religião,cor,etc),são sim,todos preconceituosos porque foi uma época preconceituosa.ou melhor dizendo ,foram séculos,eras de preconceito.espera aí!o preconceito ainda não sumiu,pensando bem.hoje em dia,ele tomou outras formas.muita gente já não o aceita tão bem quanto várias pessoas de outrora.agora,tem o preconceito ruim(judeus,negros)porque esses foram muito massacrados ao longo da história,então parece que muita gente finalmente pensa que eles talvez mereçam algum respeito.(mas agora tem o preconceito legal,que faz as pessoas rirem,que dificilmente vai gerar alguma ação ou algo do tipo,e se alguém se indgnar,vai ser frescura(nordestinos,louras,gordos,interioranos,índios,gays,islâmicos,pobres-esses últimos,provavelmente nunca vão deixar de sofrer preconceito).também temos denotar que algumas vezes a situação se inverte e algumas pessoas(brancas,negras ou ambas?)no afã de se retratarem rebatem o preconceito com mais preconceito.já viu uma antiga série com o will smith em que a família dele era toda de negros e só casava com negros?em um episódio,uma prima arruma um namorado branco e isso gera o maior bafafá entre os familiares.
o que eu quis dizr,é que o ser humano é preconceituoso(isso tu já sabes com certeza).eu levanto todo dia tentando me melhorar ,mas admito várias limitações em mim,vários preconceitos,pré julgamentos ,do que quiser chamar e acho sincermente que alguns ou vários,eu não vou conseguir vencer.mas me obrigo a tolerá-los na grande maioria das vezes.inclusive ,sem modéstia alguma,acho que todo mundo deve fazer isso,talvez não mudasse nada,ou talvez a vida de todos fosse mais feliz.quem sabe?fato é: a sociedade de allan kardec foi preconceituosa(e talvez ele também),a de monteiro lobato foi preconceituosa(e ele com certeza também),a nossa é preconceituosa(nós também somos,embora muitos acreditem realmente que não o são,no melhor estilo bolsonaro:não tenho preconceito contra gay,só não quero que meu filho seja um).
infelizmente é como o ser humano foi feito.só é uma infelicdade que alguns se entreguem aos seus piores instintos,sem nem mesmo questioná-los ou ao menos se colocar no lugar dos oitros.
tu achas que isso muda algum dia ,yúdice,tipo,antes do sol engolir o planeta terra?

Luiza Montenegro Duarte disse...

Admito a minha preguiça em fazer agora um comentário mais substancial, mas quero deixar registrado que adorei a observação do André.
Só fiquei meio deprimida porque, aos 16 anos, enquanto ele fazia o mencionado mapeamento, eu lia Capricho. Acho que isso explica muita coisa!

Yúdice Andrade disse...

Também preciso aprofundar esse estudo, Ivan. Nem tenho certeza se foi em "A Gênese", mesmo...

André, como gosto de ir além dos comodismos de quem professa uma fé (qualquer fé), e até porque o Espiritismo sempre recomendou criticidade, considero relevante provocações como essas que trazes. A questão mais instigantes é dizeres que as instruções partiram dos Espíritos e não de Kardec e aqueles, por sua condição, não seriam afetados pelos pensamentos datados. Faz todo o sentido. Levarei essa particularidade para os meus debates.

Das 12h15, há de mudar, sim. Eu acredito na evolução, até porque, sem ela, não duraremos muito. Por incrível que possa parecer, a humanidade já melhorou bastante. Se pensarmos que a discriminação saiu do discurso oficial e passou para a clandestinidade, digamos assim, já é uma mudança positiva. E mais virá, à frente.

Luiza, obviamente eu também me senti um lixo comparando os passatempos do André aos meus, aos 17. E olha que eu me interessava por coisas mais sérias. Eu achava o máximo ter lido (e assimilado) "A divina comédia" aos 12. Mas quando um professor do convênio me perguntou, com deboche, se fora em verso, percebi que o meu sucesso não era tanto. Imagine fazer o que o André fez. Não sou capaz de uma iniciativa assim até hoje!

Maíra Barros de Souza disse...

Professor, nunca cheguei a ler "A Gênese", mas a respeito do Livro dos Espíritos eu acredito que a despeito do grau de evolução dos espíritos que responderam as questões, ainda assim não eram perfeitos e padeciam de qualquer tipo de evolução. Mesmo que eles tivesse uma visão a frente do tempo, não creio que seria tanto a ponto de ignorarmos que estavam no século XIX, pois existe evolução no plano espiritual também não é? Essa é a minha opinião de espírita ainda tacanha. =)
E no mais, não podemos esquecer que as perguntas e respostas foram compiladas por Kardec, homem falível, e nunca saberemos até que ponto isso não influenciou a obra, além do que a doutrina espírita tem sim, suas falhas. Mas como Kardec mesmo disse, religião e razão devem andar lado a lado, no momento que tivermos de optar entre uma ou outra, fiquemos com a razão.

Abraços!

Anônimo disse...

hahahaha

Ri muito do comentário da Luiza e depois do seu ao dela. Se estivesse em Belém, poderia tentar localizar os apontamentos de que falei, que devem estar nas minhas coisas que ficaram ainda na casa da minha mãe. Acho que, da maneira que descrevi meu "mapeamento" antes, dei a entender que era coisa muito rigorosa, sistemática e complexa, quando na verdade nem era lá grande coisa, o que se constata a partir do fato de que eu consegui fazê-lo com a capacidade intelectual e a disponibilidade de fontes que se tem aos dezessete anos. Mas repito: ri muito dos comentários.