Sempre gostei de estudar Língua Portuguesa e Literatura. A primeira porque sempre foi essencial, para mim, falar e escrever de maneira irrepreensível; a segunda, por adorar ler e ter um gosto especial por poesia. Embora num primeiro momento preferisse literatura estrangeira, poesia para mim, de longe, é melhor que seja brasileira, embora tenha grandes paixões entre poetas alienígenas. Isso sem falar de Fernando Pessoa e Florbela Espanca, que também escreviam em português.
Mas eu tinha dificuldade em um aspecto dessas aulas: interpretação de texto. Tenho uma suspeita quanto ao motivo.
Comecei a estudar muito cedo. Era sempre o mais novo da turma (o que só mudou na universidade). Levava uma vidinha insípida e sem maiores experiências, que me permitissem o élan de mergulhar na mente frenética de um escritor. Hoje, quero acreditar, eu me sairia bem melhor.
No entanto, a interpretação de texto continua sendo uma pedra no meu sapato, só que agora estou do outro lado do balcão. Explico: refiro-me às minhas provas, sempre construídas sob a forma de casos concretos, o mais das vezes hipotéticos, porém baseados em fatos reais. Sendo professor de Direito Penal, faço do noticiário a minha fonte de pesquisa, até porque nenhuma mente criativa consegue ser tão poderosa (e terrível) quanto a realidade.
Os estudantes, em geral, têm dificuldades ingentes para interpretar os enunciados das questões. Não se trata de desconhecer o Direito Penal, mas de tropeçar no próprio texto, para compreender os fatos ali narrados e sua possível significação, sobretudo dos detalhes. O resultado é que, mesmo havendo uma advertência ostensiva no preâmbulo da prova, de que a interpretação faz parte da avaliação e que não devo ser consultado, o alunado faz questão absoluta de ignorar solenemente a ordem. Confesso que em algumas ocasiões isso me irrita, porque dá a entender que o aluno procura facilidades indevidas, como se eu tivesse a obrigação de esmiuçar o caso para que ele apenas aplicasse o Direito.
Na vida, contudo, não é assim. Quando os autos chegam às nossas mãos, com variadas versões de uma mesma história, não há ninguém para explicar nada (só para confundir). Nós é que precisamos analisar e valorar tudo, para chegar a uma conclusão.
Já disse antes e insisto que os ensinos fundamental e médio estão caindo pelas tabelas, inclusive o prestado nas escolas ditas de primeira linha, nesta cidade. Com isso, os acadêmicos nos chegam com enormes fragilidades, inclusive para compreender o português mais elementar.
Imagine uma frase como esta: "Haroldo, cujo irmão Heitor era médico..." Aí vem um aluno e pergunta qual dos dois era médico. Não dá!
Precisamos de cursos de capacitação em interpretação de texto já! Mas já ajudaria se algo muito simples e elementar fosse feito desde a infância: ler. Ler muito e sempre. Já faria toda a diferença.
5 comentários:
Concordo inteiramente. Mas os alunos dificilmente escapam a essa deficiência mesmo quando tentam começar a ler. É que ler na verdade não é um hábito entre outros, que possa ser cultivado e dar resultados regulares em qualquer contexto, mas é, ao contrário, uma atividade que só produz seus melhores resultados quando integrada em certo modo de vida e em certa visão de mundo. Ocorre que o modo de vida e a visão de mundo dominantes na sociedade de massa e de consumo, e especialmente entre os adolescentes, é fragmentário, impedindo a formação de cadeias mais complexas e profundas de sentido, e marcado pela repetição de clichês, impedindo o desenvolvimento da capacidade de reagir adequadamente perante sentidos novos ou não previstos, a menos que estes sejam exaustivamente repetidos e martelados na forma de clichês visuais quase auto-evidentes. Um cérebro acostumado ao visual, à repetição, à ênfase, ao microconteúdo, ao publicitário, ao repetitivo vai se tornando aos poucos atrofiado para a compreensão dos conteúdos mais básicos de enunciados sobre o mundo que está fora dos clichês do cinema, da TV e da internet. O problema é, ao meu ver, bem mais grave, porque enraizado na forma de vida e na visão de mundo dominantes em nosso tempo. E aí quem não tem, no ambiente doméstico, familiar ou religioso uma experiência desde a infância capaz de criar nexos de sentido mais complexos, profundos e integrados fica com muito poucas chances depois de adulto de conseguir raciocinar adequadamente sobre o complexo a partir de esquemas mentais sistematicamente adestrados para consumir e absorver apenas o fragmentário repetitivo dos principais mídia, que são os susbstitutos atuais da vivência real no mundo. Isso na verdade me deixa bastante preocupado enquanto educador.
Vou pedir licença para discordar do prof. André.
Sinceramente acho que é possível, sim, que se passe, já na vida adulta, a cultivar o hábito da leitura e, a partir daí, aprender a fazer raciocínios mais complexos e integrados a um contexto antes totalmente ignorado.
Várias pessoas podem ser exemplo disso. Histórias de superação.
Não posso afirmar que tais pessoas, se tivessem sido "iniciadas" (com muitas aspas) desde cedo, alcançariam níveis mais altos do que aqueles que atingiram através do esforço tardio.
Aliás, acho difícil que qualquer pessoa afirme isso. Pode ser que alguma pesquisa científica tenha estudado tal questão, mas desconheço.
Claro que também acho que o melhor é ler sempre e tentar desfrutar desde cedo dos benefícios que esse hábito pode trazer. Mas quem tenta recuperar o tempo perdido pode ir muito bem, sim. Aliás, pode até alcançar raciocínios mais sofisticados do que alguém que lê desde sempre, mas não se desafia, ou mesmo não tem interesse em se aprofundar no estudo do que quer que seja. Afinal, desconhecemos em muito a capacidade do nosso cérebro, sua adaptabilidade e o alcance das suas potencialidades.
Tenho que ressaltar que sei que o André não disse que "em 100% dos casos, quem acorda para o hábito da leitura na vida adulta, será mal sucedido".
Aliás, concordo com ele a respeito de ser este um hábito necessariamente integrado a toda uma visão de vida.
Minha discordância apenas diz respeito a uma possível descrença na capacidade de superação intelecutal de alguém que não teve um ambiente familiar de leitura, por falta de recursos ou mesmo por falta de interesse.
Boa postagem, Yúdice querido.
Tônia.
Antes de tudo, Tonia, um beijo de muito saudade desse tempo todo sem nos falarmos. Agora sobre o comentário. Bom, quero esclarecer em primeiro lugar que não quis fomentar nenhum tipo de descrença. Não tenho descrença em ninguém. Quis comentar apenas que a coisa é um pouco mais grave que a simples falta de hábito de leitura, ou, pelo menos, que há alguns casos em que o aluno que sofre do tipo de problema interpretativo para o qual a mensagem chamou atenção tem, na verdade, problemas cognitivos que são mais profundos, que toda tentativa de cultivo sistemático da leitura só vai evidenciar ainda mais claramente, em vez de exatamente corrigir. São esses casos que, para mim, como educador são mais preocupantes. Acho que, reformulada assim, a contribuição atinge melhor seu objetivo e foge da acusação de ter sido cética ou pessimista, o que realmente não foi minha intenção.
Creio que o debate entre os dois ilustres comentaristas dispensa uma intervenção minha. A questão está muito bem posta.
O problema maior é que as pessoas acham que ler é decifrar as letras e formar as palavras.
O método de estudo é a "decoreba", aquela coisa repetitiva e quase sem sentido, pois não se sabe sequer o que se está decorando.
Aí o sujeito tira nota boa na prova e não se preocupa, se acha o tal.
Entendimento que é bom... Nada.
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