terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Ideias enroladas dentro da sua cabeça

Um dos maiores dilemas ainda não resolvidos que envolvem os poderes públicos é que eles existem para servir ao povo, mas deste vivem divorciados — um divórcio litigioso, cheio de ódios, recalques e rancores. E absoluta discriminação.
Acabei de presenciar um caso clássico: uma senhora humilde, faltando boa parte dos dentes na boca, tentava entrar na suntuosa sede do Tribunal de Justiça do Estado, onde trabalho, para falar com um desembargador que habitualmente lhe dá um dinheirinho. Foi barrada. Motivo: estava de sandália, com os dedos de fora. Não adiantou dizer que ela não tinha dinheiro para comprar sapatos e que somente os usava quando alguém lhe dava. Não podia entrar, pois seus dedos escuros de fora afrontavam a dignidade da Justiça. Acabou entrando, por ordem do desembargador.
Mas esse é o retrato dos Poderes Públicos e, em especial, do Judiciário. A quem ele serve, afinal? Será apenas às pessoas que podem usar sapatos? Não se trata dessas pessoas que, por mau gosto, metem-se em ridículas minissaias ou em decotes de vedete. Trata-se de pessoas que vestem o que possuem e que perdem acesso a um prédio público... Por quê, mesmo? Se pararmos para pensar, chegaremos à conclusão óbvia: foi a sua pobreza que a inviabilizou.
Essa é a justiça dos homens, em tempos de Natal, ainda por cima. Do policial que barrou a pobre até os magistrados que criaram a norma, todos em breve estarão reunidos em "confraternizações", celebrando a paz e a união entre os homens. Deus dê a eles discernimento, que lhes falta. E bênçãos, aos de boa vontade.
Hoje estou embalado pelo ritmo da Ana Carolina. Vale transcrever:

Hoje levantei com sono/ Com vontade de brigar/ Eu tô maneiro pra bater/ Pra revidar provocação/ Olhei no espelho meu cabelo/ E tudo fora do lugar/ Vê se não enche/ Não me encosta/ Tô bravo que nem leão/ E não pise no meu calo/ Que eu te entorno feito água/ E te jogo pelo ralo/ Hoje você deu azar/ De que vale o seu cabelo liso/ E as ideias enroladas dentro da sua cabeça?

Um comentário:

Anônimo disse...

Perfeito. Texto e música. Não acomodar-se e indignar-se com situações desse tipo é o que dveríamos tentar todos os dias. Obrigada por nos contar, Yúdice.
A normalidade é estar nas "confraternizações"; loucos são os que falam e não aceitam... Fico com Ana Carolina, quero acordar assim muitas vezes.
Abs!
Lu.