terça-feira, 19 de outubro de 2010

Desconstruindo o voto consciente

1 - À cada nova eleição vem à tona o discurso do “voto consciente”. Na mídia, não são raros os articulistas que clamam por consciência na hora do voto e se lamentam daqueles que desvalorizam um dos mais fundamentais instrumentos da democracia. De alguma forma, é sempre importante discutir parâmetros para apreciar o valor do voto, seja lá o que isso signifique. Os problemas começam quando, inconscientemente, o discurso do “voto consciente” acaba por criar duas categorias de eleitores.


2 - Não se pretende aqui defender um relativismo no que concerne aos fatores que impelem um eleitor a votar em um ou outro candidato. Mas fazer a crítica a um tipo específico de “voto consciente”, aquele que povoa o senso comum e parece, por vezes, reforçar alguns estigmas anti-democráticos da sociedade brasileira. O discurso do “voto consciente” ao qual nos referimos está geralmente associado a três fatores que o identificam 1) O voto bem informado 2) O voto em pessoas honestas 3) O voto em pessoas inteligentes, com boas propostas para o país.

3 - À primeira vista, estes parâmetros pareceriam adequados, ainda que não suficientes, para avaliar o valor do voto, não fosse pelas dificuldades implícitas na verificabilidade dessas proposições e na ambigüidade que elas carregam consigo. O que significa estar bem informado em um país onde a mídia é dominada por pequenos grupos e oligarquias francamente comprometidos com uma agenda específica para o país? Qual seria o grau de informação ou o “tipo” de informação necessária para avaliar um “voto consciente”? Quanto à honestidade, não há dúvidas de que ela deveria figurar como requisito para todo o homem público. Mas em meio a um sistema com problemas institucionais profundos, a moralidade política aparece por vezes no cenário político como um slogan de efeito catártico no eleitorado, não raro proferido por aqueles sabidamente comprometidos com interesses escusos. No entanto, para certa parcela deste mesmo eleitorado, parece valer o lema de Pompéia: “o mais importante é parecer honesto”. Sobre reforma política, nem uma palavra. Aliás, este é um tema muito complicado para o eleitor “consciente”.

4 - Talvez fruto de nossa herança tecnocrática, é corrente ainda o pensamento de que a democracia deva ser gerida por um grupo de notáveis, homens inteligentes, em contraposição aos ignorantes que nada sabem sobre os problemas do país. Não raramente, líderes sindicais, políticos oriundos de movimentos sociais ou simplesmente de origem humilde são inclusos neste último grupo, como se pessoas munidas de certos conhecimentos específicos, tivessem por si a titularidade ou a capacidade de resolver os problemas políticos melhor que os próprios interessados, a despeito dos interesses que representam e de seu comprometimento com a causa pública. Fundamentado nesta crença, para “eleitor consciente”, a consagração do apedeuta (a exemplo do Tiririca) causa mais indignação e preocupação do que a reforma agrária, o lucro dos bancos ou o trabalho infantil.

5 - A grande contribuição das revoluções burguesas do século XVIII foi eliminar, ao menos no campo formal, as diferenças entre os homens por motivo de nascimento e de classe social, sob o lema de que todos nascem iguais em direitos e deveres. Porém, até hoje, parece que não conseguimos eliminar um outro tipo de desigualdade: aquela que não é fruto do nascimento, mas das ditas desigualdades naturais entre os homens. Como se alguns, por méritos educacionais ou morais, merecessem ter mais direitos que outros.

6 - O discurso do “voto consciente” não raro tem sido utilizado para avalizar desigualdades entre os cidadãos, desqualificando o voto dos humildes, como se o “voto mal” ou a ignorância política fosse sempre associado ao eleitorado mais pobre, mesmo diante de todas as relações promíscuas que as classes dominantes sempre mantiveram com o Estado e mesmo diante das informações limitadas que condicionam o voto de todo o cidadão. A deliberação pública, por outro lado, valor garantidor e qualificador da democracia, aberto a todos, ricos ou pobres, não entra no cálculo do eleitor dito “consciente”. Ele está imerso em seu próprio mundo.

7 - Em nossa história política, confundindo o direito à educação com legitimação para hierarquização de cidadãos, confundindo formação política com informação técnica, confundindo ser honesto com parecer honesto, criamos e recriamos a nós mesmos à imagem e semelhança do Alienista, o tecnocrata de Machado de Assis. O problema é que, ao contrário do personagem, parece que não nos damos conta de nosso próprio ridículo.

David Carneiro é um jovem extremamente inteligente. Em uma breve conversa já é possível perceber que seus pensamentos transitam num nível mais sofisticado de elaboração. E somando a inteligência aos valores que nossa sociedade deveria cultivar, ele é também um humanista. Não só de discurso, mas também de ação.
Neste ensaio, covardemente afanado por mim de seu blog, Tribuna do Davi, que pede uma visita, pode-se perceber um pouco do que falo.
Como diria Chico Anysio, queria ter um filho assim!

7 comentários:

Anônimo disse...

Excelente postagem. Parabéns ao David pelo texto e ao Yúdice pela generosidade de abrir esse espaço para a postagem de um aluno que é verdadeiramente diferenciado. Na tentativa de contribuir para mais ou menos a mesma discussão, divulgo aqui a minha postagem sobre os critérios de escolha dos candidatos na eleição: http://bit.ly/9Gwo3q

Abraços!

Ana Cecília Sabbá disse...

Eu concordo com c-a-d-a palavra desse texto. Sinceramente, acho que nos últimos tempos, esse foi o único artigo que eu li que não falava mal do voto do outro. Em todo lugar é isso: a idéia preconceituosa de que o voto do outro é burro. Que o eleitor comum não sabe votar.

Ontem escrevi um texto em meu blog justamente sobre isso. Sabe, desde quando existem critérios para medir se um voto foi consciente ou não? O que exatamente determinaria isso?

Aí aparecem figuras como Felipe Neto no Youtube reproduzindo de maneira drástica esse mesmo discurso vazio de sempre: que o eleitor não sabe votar. E o que é pior? Ele ainda é aplaudido por 2milhões de pessoas.

Sabe, eu fico muito mais indignada com essa idéia preconceituosa de que a maioria dos votos não são conscientes (com exceção do seu próprio), do que ver o Tiririca sendo eleito. Aí querem colocar inventar requisitos que deveriam existir para se assumir um cargo público. Mas afinal, democracia é isso, não?

Ana Miranda disse...

Para mim só existe um voto consciente:
Aquele que se vota por ideologia, por se acreditar nas propostas, por se ver dentro dos ideias.
Não vou anular meu voto agora, mas ele não será consciente, pois estarei votando naquilo que EU ACHO menos pior.
Não estou votando no que acho melhor, no que acredito piamente, naquilo que vai de encontro aos meus ideais.
Estou votando porque há umas 10 eleições só voto 00-Confirma, vou descruzar os braços, vou descer do muro.
Infelizmente, eu não acredito na política vigente.
Pior ainda, nem na passada...

Maíra B. de Souza disse...

Bom, como já é de conhecimento público que sou fã do David, é redundante dizer que concordei com cada palavra do texto dele.
Infelizmente esse nível de debate em torno da verdadeira democracia está cada vez mais raro e confinado nos blogs. Minha geração me entristece muito e com 23 anos me pego sem esperança, ao notar como as pessoas preferem que figuras como Arnaldo Jabor ou Mainardi, raciocinem por elas.

caio disse...

Não sou lá próximo ao David, embora nos conheçamos desde o Nazaré. Mas desde lá eu o admirava por isso: a inteligência, o ativismo, a politização do cara. E ele tinha todas as condições de ser uma pessoa bem diferente, o que só aumenta o meu respeito por ele.

Yúdice Andrade disse...

Fico feliz de ver que a sugestão de leitura que fiz agradou aos visitantes do blog, permitindo inclusive manifestação assinada de uma nova comentarista. Preciso agradecer ao David por isso.
Como vemos, temos o que aprender com esse garoto.

PS - Aí, Ana: saíste do 00-confirma? Espero que seja a melhor escolha. Estou quase seguindo pelo mesmo caminho.

Citadino Kane disse...

Yúdice,
Davi é um irmãozinho muito querido, militamos juntos e compartilhamos utopias...
Ombreados já lutamos o bom combate, nem sempre fomos vitoriosos, mas as poucas vitórias foram saboreadas intensamente.
Reconhecemos o "sábio" pela humildade e simplicidade; os "sabidos" são soberbos e arrogantes, Davi é humilde e simples além de estudioso, carrega um único defeito é remista.
O texto é muito bem concatenado e dentro da proposta do autor, retira de verdade tijolo por tijolo do argumento do "voto consciente".
Um forte abraço Professor Yúdice,

Pedro