terça-feira, 9 de março de 2010

Sempre mais necessidades

Quando nos dispomos a fazer algum tipo de trabalho com pessoas muito carentes, sempre acabamos por nos surpreender em alguma medida. Você, por experiência própria ou de terceiros, pode até possuir uma boa ideia do que encontrará pela frente, mas a coisa pode assumir ares mais intensos. Foi o que me aconteceu ontem, na palestra que fiz sobre a "Lei Maria da Penha", numa comunidade do Tapanã objeto da postagem imediatamente abaixo desta.
Para começar, a palestra não foi realizada numa escola, como pensei. Eu me preparara para falar a um público de estudantes, provavelmente adolescentes. Mas as professoras da escola municipal "Heloísa Maria de Castro", que tiveram a iniciativa de um ciclo de eventos alusivos ao Dia Internacional da Mulher, não conceberam tal empreitada pensando nas alunas, e sim na comunidade onde a escola está situada. Por isso, deslocamo-nos para uma igreja ("Monte Sinai") e o público eram as mulheres do entorno. Não havia um só estudante no local, que me conste, à exceção talvez de uma criança levada pela mãe. Com isso, precisei me adequar ao novo perfil das ouvintes, cuja incipiente ou inexistente instrução, muito abaixo do que se poderia esperar de estudantes, conduzia a novas abordagens.
Fiz minha explanação sobre o que é violência doméstica e familiar contra a mulher, as suas modalidades, procedimentos a serem tomados em caso de ameaça ou agressão efetiva, que autoridades procurar, o que a lei permite que seja feito contra o agressor e em favor da vítima e sua família. Escutaram-me com atenção e ao final me surpreenderam. Não estavam tão por fora da existência da "Lei Maria da Penha" e suas implicações. Contudo, sendo várias delas vítimas de violência de gênero, foram contundentes na incredulidade quanto à capacidade do poder público de lhes dar algum retorno, não apenas por problemas de infraestrutura (como mencionei), mas sobretudo por absoluto menosprezo ao cidadão.
O primeiro relato foi de uma senhora que se confessou indignada com tudo o que passou na mão do ex-companheiro e com o descaso das autoridades. Ela esteve diversas vezes na polícia, compareceu em juízo, recebeu medidas protestivas de urgência, fez tudo o que pode, em vão. O agressor voltou para sua casa e passou seis meses enfiado lá dentro. Saiu quando quis. Ela telefonou diversas vezes à polícia pedindo ajuda, mas sempre lhe respondiam que nada podiam fazer.
Ouvi outras histórias parecidas. Começara a minha exposição reconhecendo as mazelas do poder público e precisei insistir nisso, pois senti a necessidade de não deixar aquelas mulheres esmorecerem. Ressaltei que, mesmo descrentes, elas deveriam continuar denunciando, protestando, buscando apoio, como único meio de terem uma chance, alguma chance, de serem atendidas. Meu argumento foi reforçado por duas mulheres. Adivinhe quem? Duas professoras. Portanto, mulheres muito mais instruídas. Uma delas se declarou vítima de um marido agressor, contra quem precisou mover todos os procedimentos cabíveis, para se proteger dele e assegurar a pensão alimentícia dos filhos. Disse que teve sucesso e que, hoje, seu ex a respeita. Escutando-a, só conseguia pensar no abismo entre elas e as mulheres da comunidade. Educação é tudo. Isto não é um clichê: é um fato. A diferença de postura entre aquelas duas vítimas traçou a linha divisória entre uma mulher com pouco acesso ao sistema, e que mesmo assim pode sair vitoriosa, e outra sem acesso algum.
É pela fragilidade educacional e econômica que aquelas mulheres escutam servidores públicos pilantras lhes dizerem que, se o companheiro mudara de cidade, não havia mais nada que pudesse ser feito para obrigá-lo a prover alimentos. E outras barbaridades. Como alguém pode ser tão insensível e irresponsável de dizer isso a alguém?! Provavelmente o fez para que a interessada não voltasse a chateá-lo.
E assim se passou uma tarde na comunidade do Tapanã, cujas professoras pretendem criar uma associação de mulheres do bairro. Encorajei-as a isso, pois somente com essa organização é possível adquirir maior visibilidade (e também um advogado que possa enquadrar autoridades omissas).
Ontem vi um embate entre necessidade e desesperança. É um horror o que este país faz com seus filhos. E filhas.

4 comentários:

Ana Miranda disse...

Pois é, caro Yúdice, quando nos envolvemos, vemos e ouvimos coisas que jamais pensávamos acontecer em pleno século XXI.
Parabéns a você por ter encorajado as mulheres a continuarem denunciando seus algozes.
Ontem nosso movimento conseguiu uma grande vitória. Conseguimos com que o prefeito recebesse um representante de cada comunidade com as quais trabalhamos e um representante do movimento. A reunião durou mais de 2 horas e não estava agendada. Nós literalmente invadimos a prefeitura. Conseguimos levar dois ônibus lotados de moradores das áreas de ocupação e depois nos juntamos a vários sindicatos, entidades e movimentos sociais e fizemos uma manifestação no centro da cidade.

Artur Dias disse...

Há Esperança, ainda. Creio que é preciso trabalhar com essas mulheres a idéia de organização, como forma de apoiarem umas às outras. Quando quebramos o isolamento, quando nos unimos, ficamos mais fortes. Há muitos exemplos, em outros estados, de grupos de mulheres que se organizaram para rechaçar os "maridos" criminosos e covardes. Da mesma forma que é importante saber onde e como denunciar, é preciso ter segurança em relação ao que se está fazendo. Por isso a importância do grupo organizado, bem informado, visível.

Abraços.

Artur Dias disse...

Fiquei tão entusiasmado com o seu texto que nem terminei de ler e já corri na caixinha de comentários, e acabei não vendo que no último parágrafo você já tinha colocado aquilo que eu queria dizer...

Yúdice Andrade disse...

É interessante destacar, Ana, que elas confiam mais em outras mulheres. Apesar de ter sido bem recebido, a primeira coisa que escutei da diretora foi que esperava uma mulher para palestrar. Não foi uma queixa, mas me deu a sensação de que essa seria uma espécie de situação natural.
Parabéns pelo grande passo que deram na luta por moradia digna em Juiz de Fora.

Artur, também tenho esse impulso para escrever. O importante é que as próprias mulheres sentem a necessidade de organização. Mas voltamos à questão: quem sentiu essa necessidade foram as professoras, por conhecerem a realidade da comunidade. Mas elas são mais instruídas e têm mais acesso ao sistema. De todo modo, verifica-se a existência de um círculo vicioso de desproteção.