quarta-feira, 31 de março de 2010

Visões de um julgamento: a falta de equilíbrio

A respeito da postagem "Humanos, não: monstros!", recebi este maravilhoso texto do comentarista Daniel Silveira, que assumo como minha posição oficial sobre o tema. Negritei os trechos que me pareceram mais relevantes:

Quando penso sobre esse caso apenas fico triste. Me parece ser um emblema do quanto precisamos refletir sobre um punhado de assuntos que não podem passar incólumes.
Em primeiro lugar: é evidente que a morte de um ser humano em tais condições, quanto mais uma criança, é repugnante sob qualquer perspectiva. Partindo da premissa de que os acusados realmente o fizeram, devem ser condenados a penalidades consideradas altas. Ponto final, ninguém discorda. Compreendo que os familiares dêem declarações emocionadas, clamando por uma justiça que lhes apaziguaria minimamente a dor que sentem. Bem entendido: se eu estivesse no lugar deles me sentiria assim e talvez não fosse tão tranqüilo. Realmente eles foram submetidos a uma grande tragédia que é perder um ente querido tão jovem. É natural sentir antipatia por quem consideramos culpados e simpatia com a dor de quem perde alguém que ama. Isso porque, talvez, nos coloquemos nessa situação e pensemos que jamais seriamos capazes de cometer um ato daquela natureza e que também nós nos sentiríamos arrasados em perder alguém que amamos. Compartilho tudo isso.
Esse caso, todavia, não se resume a tal abordagem. Faz surgir reflexamente diversos temas que estão entranhados em nosso pensamento que não temos tanta segurança em sustentar, digamos assim, de modo mais amplo. Falo especificamente da intervenção e poder de manipulação da grande mídia, da falta de sensibilidade e crítica das pessoas quanto aos eventos e envolvidos, quanto ao papel que se outorga às instituições em eventos como esse, para ficar nos três principais.
Da grande imprensa assusta a apropriação que faz desse tipo de tragédia, conduzindo-a aos extremos da investigação jornalística com sua leviandade. Desde o primeiro dia de cobertura que se fez desse caso já indicava a participação dos acusados com ares não admitidos de verdade irrefutável, quando os resultados de perícias, o contraditório, os discursos ainda não haviam sido completados. Pior, apelava ao sentimentalismo, mostrando imagens da vítima em vida e da dor de seus familiares maternos, elegendo a outra família, inclusive aqueles que não cometeram crimes, como inimigos. Com isso, a ávida busca por audiência, a falta de assuntos mais rentáveis, a pressão imposta/auto-imposta aos/pelos repórteres pelo furo jornalístico levou a matérias no mínimo irresponsáveis que pintou deliberadamente os inimigos da vez, aqueles contra quem devemos nos unir e defenestrar impiedosamente. Nossa imprensa tem muitos outros incentivos para agir diferentes da ética, assim como todos nós, por isso tem de ser, em qualquer circunstância, levada em conta de maneira crítica.
Mas a crítica não parece ser uma vocação muito apreciada em nossos dias. Não falo apenas das centenas de anônimos que compareceram às portas do fórum para tomar as dores da criança assassinada e, se possível, dar um tchauzinho para as câmeras, derramar uma lágrima ou gritar pelo linchamento dos acusados. Infelizmente, nesse diapasão, não me surpreende a tentativa de agressão ao advogado de defesa e de uma outra pessoa que foi ao local para pedir que os acusados não fossem prejulgados, o endeusamento do promotor do caso, o foguetório pela condenação dos acusados. As informações da grande mídia não são nem bem entendidas e muito menos criticadas.
Não é apenas a responsabilidade dos órgãos de imprensa toda essa comoção desgovernada e, hoje já extemporânea, diante dessa questão. O que me entristece mesmo é a capacidade que temos de criar uma barreira em direção a esses personagens, em desumanizá-los, a tratá-los como monstros, em fazer análises unidimensionais sobre essas pessoas como se personificassem o que entendemos como o mal. Não buscamos entender o que se passou e que pode levar alguém ou aquelas pessoas especificamente a agir como agiram. Simplesmente condenamos. Essa lógica pode ser perfeita para o jurista que compartilha do conceito de imputação kelseniano, em que a causalidade e desvinculada do ato para alcançar uma decisão, mas não se justifica em âmbitos mais amplos de argumentação nos quais as reais perguntas a responder são: O que devemos fazer com aquelas pessoas que cometeram esses crimes? O que podemos fazer para que isso não ocorra mais? Como devemos estruturar nossas instituições para tais casos? A tragédia não é só da menina morta e da família materna, mas dos acusados, ao que tudo indica, fracos de espírito, a família daquelas pessoas, às outras crianças envolvidas. Custa-me crer que só o que podemos pensar é em desaguar nossa raiva sobre aquelas pessoas e desejar que elas padeçam no inferno. Esse sentimento é justificado e tem prazo de validade. Dividir o mundo entre bons e maus é muito perigoso porque muito dificilmente conseguiremos argumentar uns com os outros, entender nossos semelhantes, afinal, se discordam de nós, os outros são sempre maus.
Por fim, é preciso ter cuidado quando usamos esses casos como base para pautar nossas instituições. O real teste de nossa moralidade é testar nossos princípios quando postos em dificuldades. O sistema penal é construído não para os monstros, mas para todas as pessoas, que serão julgadas pelos mesmos critérios, sendo necessário parcimônia, equilíbrio, discussão e crítica para estabelecê-los. Daí porque são corretas as decisões que declaram a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da lei de crimes hediondos, especialmente quanto a questão de progressão de regime, que violam o coração das condenações penais que é a reabilitação do indivíduo e não a vingança pública contra ele. Até entendo que a dramaturga vá a TV pedindo penas mais fortes para crimes do tipo que foram cometidos contra sua filha, ou que se busque um regime disciplinar diferenciado após os ataques do PCC em São Paulo alguns anos atrás, mas tomar essas decisões com base nos arroubos moralistas que essas situações despertam apenas depõe contra nossa própria moralidade.
Nossos sentimentos são importantes, mas não menos importantes são as decisões sobre o que devemos fazer com eles. Me entristece o fato de que, mesmo passados 2 anos do início desse drama, ainda tratemos desse caso como um mero linchamento de monstros, conferindo-lhe prosaicamente o nome de justiça. Da compreensão da complexidade das personalidades, da moral, das instituições, surge uma necessidade de revisitar velhas compreensões e nossos próprios sentimentos. No século XXI já deveríamos repudiar as fogueiras em praças públicas, deveríamos, em minha opinião, ser mais serenos no debate de nossos problemas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Não vislumbro no modelo de execução brasileira (quanto a aplicação de fato) e tampouco na legislação penal brasileira esforços para de fato fazer valer o caráter ressocializador da pena.

Aliás creio que penas de até 30 anso denotam bem esta característica. Não consigo imaginar que alguém que fique 10 anos isolado do mundo e de todo processo, cada vez ais exponencial, de evolução da tecnologia e velocidade de informação possa, ao final de sua pena, sair como um cidadão civil comum.

Isso porque não levo em consideração o estigam característico das penas privativas de liberdade.

No entanto, o ais grave é ver que o sentimento de Justiça ainda é intimamente ligado ao de pura vingança. Transformam-se os réus em monstros sem sequer entender a raíz do problema, para, racionalmente quem sabe, evitar que se repitam.

Um grande abraço primo.