domingo, 31 de outubro de 2010

Minha Língua Portuguesa

Digo, sem falsa modéstia, que sempre fui um bom aluno de Língua Portuguesa. Minha paixão por nosso idioma se revelou muito cedo, talvez como consequência do hábito da leitura que pratiquei tão intensamente, imitando meu irmão, quase cinco anos mais velho, a quem serei sempre grato por me ter inspirado tão valioso vício. Acho que só me envaideço de verdade de duas coisas na vida e uma delas é, justamente, o bom uso que faço da lingagem oral e escrita.
A intimidade me fez um ótimo aluno nas aulas de Língua Portuguesa e dono de uma facilidade natural para empregar a norma culta. Mas aí eu mesmo observava um aspecto curioso: embora eu normalmente me expressasse da forma correta, muitas vezes não tinha a menor ideia de por que as coisas eram como eram. Conhecia as regras, mas apenas em sua aplicação. Muitas vezes, aplicava as regras sem as conhecer. Sabia distinguir o certo do errado, mas desconhecia as razões.
A última vez que estudei Português foi em 1991, na preparação para o vestibular. Lá se vão quase duas décadas. De lá para cá, continuei a me esforçar pela expressão impecável, mas as regras que conhecia, os termos técnicos, os detalhes, foram-se apagando de minha mente. Isso me inquietou. Comecei a desejar uma volta aos livros, intento cuja realização, para variar, adiei por alguns anos. Na última quarta-feira, contudo, desencavei o velho projeto e comprei uma gramática. O propósito? Estudá-la de ponta a ponta, aprimorar a minha capacidade comunicacional.
Após examinar algumas opções, escolhi a Gramática Houaiss da Língua Portuguesa, de José Carlos de Azeredo, editado pela Publifolha. O autor se apresenta como professor de Língua Portuguesa em universidades públicas, por um tempo que agora beira os quarenta anos.
Minha franca predileção pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, corroborada por matéria que li onde ele era citado como o melhor dicionário publicado no Brasil, por ser mais técnico, preciso, variado e até poético1, faz com que eu veja com bons olhos qualquer obra do Instituto Antônio Houaiss. Mas minha eleição não foi determinada apenas por isso; pesou, também, ver que antes do estudo técnico propriamente dito, a obra dedica algumas dezenas de páginas à justificação do estudo da gramática, sua história no Brasil e à ideia de que a língua é um traço cultural e histórico muito mais complexo do que se costuma pensar. Ou seja, o estudo técnico ganhou uma dimensão humana que me encantou.
O mais surpreendente, para mim, é que Azeredo critica um pecado (o termo é meu) do qual eu próprio sou culpado: a insistência em preservar uma tal norma culta, um purismo de linguagem que mais não é do que a expressão de elites sociais. E eu, que detesto elites, deveria ser contra isso, também. Mas sempre repudiei os maneirismos da chamada linguagem coloquial e precisei de uma gramática para me alertar sobre o tamanho do meu erro.
Veja algumas assertivas do livro:

"A língua é a soma de todas as suas possibilidades de expressão, e só existe nas variedades de uso que a concretizam como meio de intercompreensão de seus falantes" (p. 27).

"A criatividade linguística é inerente ao conhecimento da língua, pois seus usuários não são meros repetidores de frases prontas" (p. 30).

"Na verdade, o mundo que nos cerca, o que sentimos, pensamos ou imaginamos não circula entre os homens e se transfere de um indivíduo a outro senão pelo filtro da palavra, que não é um condutor neutro de conteúdos, mas um gerador e modelador de sentidos" (p. 48).

"A linguagem verbal é o mais abrangente, elaborado e adaptável recurso de criação, assimilação, circulação e transmissão de representações do conjunto de nossas experiências da realidade. Mais que isso, ela é o próprio espaço simbólico que torna possíveis essas representações. Sua diversidade de formas e de usos não é, portanto, um fenômeno periférico e acidental nas relações humanas: ela é a própria expressão dessas relações" (p. 50).

"Uma língua é como é por causa de seu caráter simbólico e interacional: ela incorpora a cultura no homem à medida que o incorpora ao meio sociocultural" (p. 52).

A explicação mais precisa, todavia, talvez seja esta:

"Outra ideia muito difundida no passado, também hoje superada, é que as línguas 'evoluem para um estado de perfeição', ilustrado na maneira como a praticam seus grandes oradores e poetas, e que, atingido este estágio, elas precisam ser defendidas 'da corrupção daqueles que a utilizam mal', e, portanto, de toda mudança que as afaste daquele ideal de perfeição. Sabemos hoje que, no papel de meios correntes de expressão e de comunicação, todas as variedades de uma língua são dotadas de estrutura complexa em qualquer fase de sua existência histórica, funcionalmente adequadas aos objetivos interacionais de seus usuários, e permanentemente adaptáveis às novas necessidades de expressão da comunidade" (p. 61)

Creio ter aprendido que não devo mais implicar que certas variações na colocação pronominal, na concordância, na regência, etc. Mas é preciso identificar uma intencionalidade naquele que deseja comunicar-se. Se o indivíduo fala errado por pura ignorância, é imperioso educá-lo. Não necessariamente com a tal norma culta. Mas educá-lo, sob pena de renunciarmos ao progresso não apenas da sociedade, mas do próprio indivíduo.

1 Para justificar esta alegação, o autor da matéria recorreu ao vocábulo "saudade", que, dentre outras, recebe do Houaiss uma acepção comovente: "sentimento mais ou menos indefinível de incompletude".

Em tempo:
Não havia nenhuma intenção política nesta postagem, muito menos político-partidária. Mas ligado ao livro que leio e ao noticiário, não pude deixar de encontrar um exemplo importante das ideias de José Carlos de Azeredo no momento vivido por nosso país.
Há algum tempo, a imprensa elitista que nunca perdeu a oportunidade de menosprezar Lula passou a atacá-lo, furiosamente, por sua renitência em dizer que Dilma Rousseff seria a primeira presidenta do Brasil. Ora, seu ignorante, o vocábulo "presidente" não possui flexão de gênero! Estava provado, mais uma vez, que Lula não seria mais do que um bronco.
Será?
Aprendam, senhores, que sendo a linguagem um fenômeno social e histórico — ao contrário de uma rocha, que é dura porque essa é, de fato, sua condição na natureza —, o fato de um governante ser chamado de presidente é determinado por incontáveis fatores, que poderiam ter engendrado uma outra palavra completamente diferente. Assim como no século XIII se chamava giolho o que hoje é joelho, presidente poderia ser prasidente, presidante, presidinte, preposto, prepúcio, pitombas.
Por conseguinte, se o momento histórico pede que se proclame aos quatro ventos a importância de haver, pela primeira vez, uma mulher no comando do país, então presidente passa a ser, sim, uma palavra com flexão de gênero e as presidentas passam a ser uma realidade viva do mundo. Como as imperatrizes e as imperadoras.

3 comentários:

Edyr Augusto Proença disse...

Yúdice,
Hoje, na Computer Store, a atendente me diz:
- Preciso seu telefone para mim estar lhe ligando
- Para eu ligar
- Não, para mim estar lhe ligando..
Agora, perceba como essas coisas são tão engraçadas quanto tristes.
Abs
Edyr

Yúdice Andrade disse...

É preciso sublimar, Edyr. Senão enlouquecemos.

Anônimo disse...

Obrigado pelo conselho e excelente retórica, Yúdice. Estava mesmo precisando de um livro desses.

Alexandre