quarta-feira, 17 de março de 2010

O incompreendido sistema

Há dois dias, houve confusão nas dependências do 1º Tribunal do Júri, aqui em Belém. Na ocasião, deveriam ter sido julgados três policiais militares acusados da morte do promotor de eventos Gustavo Russo, em janeiro de 2005, num dos mais espetaculares episódios de incompetência policial de que já tive notícia.
Gente que estava no recinto me relatou algumas atitudes bastante reprováveis de pessoas das quais se espera e se pode exigir um comportamento mais isento e sereno, ainda mais considerando tratar-se de um caso tão rumoroso e que envolve inclusive organização da sociedade civil contra a impunidade. Abstraindo-se juízos de valor, o problema pode ser delimitado nisto: cada réu tinha o seu próprio defensor e cada um destes, por ocasião da formação do conselho de sentença, recusou três jurados. Com as nove dispensas, mais as determinadas pelo próprio juiz, no final havia apenas cinco jurados disponíveis, o que inviabilizou a sessão1.


[Acréscimo em 18 de março: Ao início dos trabalhos, havia 26 jurados. Cada advogado de defesa se valeu de suas três recusas imotivadas. Portanto, restaram 17 jurados, número suficiente para a instalação da sessão. Contudo, o juiz dispensou, por decisão sua, nada menos do que 12 jurados, acolhendo alegações de problemas de saúde. E assim chegamos ao número de 5, que resultou no adiamento da sessão.]

Diante da comoção que se instalou no recinto, o juiz decretou a prisão dos réus. Com base em quê? Afinal, eles respondiam ao processo em liberdade e a jurisprudência brasileira já consolidou o entendimento de que réu que responde ao processo em liberdade só pode ser preso após o trânsito em julgado da condenação, a menos que pratique alguma conduta específica, concreta e comprovada, que recomende a custódia cautelar. E os réus não incorreram em nenhuma conduta reprovável no plenário. A dispensa imotivada de jurados é um direito da defesa2.
Em suma, além de não poder decretar a prisão sem motivo concreto, o juiz puniu a defesa por fazer algo que a lei permite expressamente, sem atentar para a sua própria contribuição para a inexistência do número mínimo legal de jurados. Ilegalidade flagrante. Tão ilegal que, ontem, uma desembargadora recolocou os réus em liberdade, através de liminar concedida em habeas corpus. Como era de se esperar, está sendo alvo de críticas dos familiares da vítima, que agem movidos pela emoção e não pelo Direito, o que se compreende e respeita. Contudo, o poder público deve se reger pelo Direito.
Decisões açodadas costumam gerar pelo menos dois efeitos graves: a violação de direitos e tumultos que expõem as instituições ao descrédito público. Ninguém ganha com isso.

1 O Código de Processo Penal determina que a sessão do tribunal do júri só pode ser instalada se houver ao menos 15 jurados (art. 463), para que, afastados todos os suspeitos, impedidos, incompatibilizados e dispensados, ainda haja como selecionar os sete que efetivamente comporão o conselho de sentença.

2 CPP, art. 468: "À medida que as cédulas forem sendo retiradas da urna, o juiz presidente as lerá, e a defesa e, depois dela, o Ministério Público poderão recusar os jurados sorteados, até três cada parte, sem motivar a recusa."

6 comentários:

Anônimo disse...

É difícil. No mundo midiático em que vivemos , os parentes de supostas vitimas , se juntam em associações para tentar pressionar o judiciário a julgar o feito de acordo com seus interesses não se importando com os regramentos legais e o direito da partes na demanda. O que torna pior esse estado de coisas e os magistrados se deixarem levar pela pressão acima exposta, e com o fito de corresponder aos anseios da tais pessoas, praticarem atos ilegais e contrários ao bom direito. Ademais a culpa também é da imprensa que funciona como caixa de resonância dessas mazelas que em nada contribuem para um julgamento justo, cuidadoso e bem delimitado.
Adolfo Alves.

Frederico Guerreiro disse...

Rui Barbosa um dia disse que "justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta".
Entendo que é essa a razão da luta de minha tia Iranilde e meu tio Geremias Russo, e primos Neto e Rodolfo e viúva, pelo que têm de nossa família irrestrito apoio a favor de sua luta por justiça.
Pelo que sei, minha família não intenciona fazer pressão ao Judiciário, mesmo porque não somos uma familia influente. Caso contrário, já teríamos todos os acusados julgados e condenados.
Vejo a atenção dada ao caso pela mídia como uma forma legítima e democrática de divulgar a insatisfação da sociedade com esse setor extremamente mal aparelhado do estado, a segurança pública. A saber, foi esse mesmo estado o verdadeiro assassino de meu primo Gustavo.
Não se pode inferir que a luta pelo direito intentada pela família da vítima, minha família, seria uma forma de pressionar o Judiciário, dando-nos levianamente um ar de soberba, enquanto família frustrada pela sensação de impunidade que entristece a qualquer de nós. Perdemos tragicamente um ente muito querido, dor provavelmente ainda não sentida pelo indigitado acima.
Leviandades desse tipo só podem ser arguidas por pessoas sem senso de solidariedade, sem senso de direito, sequer capazes de elaborar a correta abordagem dado ao caso nesta postagem do Yúdice, mormente quando o comentarista acima jamais deva ter perdido um ente querido pelas balas pagas por si próprio.
Sem merecimento de mais comentários, pela infelicidade intrínseca.

Yúdice Andrade disse...

Fred e Adolfo

1. Imaginava que teríamos um comentário do primeiro, já que é parente dos envolvidos. Justamente por já ter conversado a respeito do trágico episódio, procurei me por no lugar dos familiares.
2. Quero crer que o meu texto reconheceu o direito das famílias de protestar, de usar a mídia e, até mesmo, de pressionar o Judiciário. Neste ponto, sou até mais enfático do que o próprio Fred. A família tem todo o direito de pressionar quem quiser. Compete ao poder público reconhecer essas demandas, puramente humanas, e continuar a atuar de acordo com a legalidade.
3. No mais, como de hábito, a exploração midiática desses casos é tendenciosa e descompromissada com o Direito e até com o bom senso. Explora-se a emotividade das famílias como forma de vender jornal, sem o menor respeito a essas pessoas. Isso me leva a dizer que o Adolfo não está de todo errado. Inclusive porque muitos juízes decidem mesmo sob pressão, trazendo terríveis prejuízos à justiça. Quantos casos conheço!
Um abraço conciliador para ambos.

Anônimo disse...

Não reprovo o FRED pelo posicionamento desairoso sobre o meu comentário, entendo que ele está olhando o problema de dentro, por ser parente do falecido, e isso leva a entendimentos emocionados e desconectados da realidade dos fatos que coloquei. Solidarizo-me com a sua dor e desejo do fundo de meu coração tranquilidade e desasombro para que saiba superar essa perda familiar que lhe deve ter sido muito cara. No entanto, mantenho meu entendimento acima referenciado, e a força de sua revolta apenas referendou aquilo que disse no comentário em análise.
abraço.
Adolfo Alves.

Yúdice Andrade disse...

Uma postura lúcida e conciliadora, Adolfo. Obrigado.

Vladimir Koenig disse...

Yúdice, desculpa requentar o assunto, mas só hoje voltei a ter tempo para ler os blogs. Quero fazer só uma mínima correção. A defesa dos 3 réus recusou apenas 8 jurados (3 por um réu, 3 por outro e 2 por outro). O nono recusado foi do MP.
Passando ao largo da discussão sobre a pressão da família ser válida, o que mais me chamou a atenção foi o juiz repousar sobre os réus sua clara insatisfação pelos atos da defesa. Se os defensores dos réus fizeram algo ilegal ou imoral, que fossem aplicadas as penalidades legalmente previstas a eles, mas nunca sobre os réus. Uma pena que ainda não se compreenda que uma defesa plena é interesse de todos e não só dos réus. Que sejam condenados (se assim for o entendimento dos jurados), mas respeitando-se a ampla defesa e o contraditório. Caso contrário, se é para fazer de conta que estão sendo julgados, melhor aplicar logo uma pena qualquer e não realizar o júri.
Aproveitando o assunto, você tem alguma estatística sobre o tempo de duração dos processos que apuram homicídios nos EUA? Norte-americano adora estatística! Deve haver alguma! Hehehehe. Queria ter uma ideia se estamos tão lentos assim ou é apenas impressão causada pelos saltos temporais e as licenças poéticas dos filmes do Tio Sam.
Abraços,
Vlad.
P.S.: Tentarei não requentar outros assuntos! Hehehehehe.