quarta-feira, 14 de julho de 2010

O formal e o real

A atriz e escritora Maitê Proença não está em evidência somente por causa de seu polêmico papel de adúltera na atual novela global do horário nobre, ou porque seu namorado a teria proibido de posar nua novamente. Ela também ganhou a mídia especializada em questões jurídicas, por conta de uma querela na qual se envolveu contra a autarquia São Paulo Previdência (SPPrev).
O pai de Maitê era procurador de Justiça e, ao morrer, em 1989, deixou-lhe uma pensão vitalícia, que ela perderia na hipótese de se casar. Alguns setores privilegiados, como os militares, ainda possuem esses questionáveis benefícios, que por sinal desmerecem a mulher, pois remetem a um tempo em que elas eram dependentes em tudo de seus pais ou esposos. Daí as tais pensões vitalícias: em caso de morte de seus provedores, as inúteis teriam um meio decente de sobrevivência. A revolução feminina, entretanto, curiosamente, nunca se preocupou em derrubar tais privilégios, decerto porque não vê neles nenhum demérito à imagem da mulher contemporânea.
O fato é que Maitê nunca se casou oficialmente, mas constituiu família através de união estável. Por esse motivo, a SPPrev — que administra as folhas de pagamento de pensões e aposentadorias da Administração direta e indireta do Estado de São Paulo, Assembleia Legislativa, tribunais de contas, Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e universidades públicas — decidiu suspender, no ano passado, o pagamento da pensão de 13 mil reais que lhe fazia.
A atriz impetrou mandado de segurança e venceu a causa, em primeira instância. A SPPrev deve retomar os pagamentos e, claro, suportar o retroativo. Clique aqui para conhecer maiores detalhes.
A questão que motivou esta postagem é que a SPPrev, em sua decisão administrativa, privilegiou a realidade sobre as formalidades e equiparou união estável a casamento. O Judiciário paulista, contudo, argumentando com base em regras hermenêuticas bastante conhecidas, entendeu que essa equiparação era impossível e, privilegiando aspectos formais, restabeleceu o direito à pensão.
No geral, é alentador quando o Judiciário assegura os direitos do indivíduo frente ao Estado, que é o maior inimigo do cidadão, como várias vezes afirmei aqui no blog. Mas, às vezes, uma decisão pró indivíduo pode despertar inquietações. É o caso.
É muito difícil saber quanto ganha um ator da Rede Globo. Consultei umas tantas páginas pela Internet, ficando mais atrapalhado do que esclarecido. No entanto, pareceu-me plausível a afirmação de que um ator de primeiro escalão (como presumo possa ser classificada Maitê Proença), na Globo, tem um salário em torno de 100 mil reais quando está no ar (o que é o caso), com uma redução à metade quando fora do ar. Enfim, não há dúvida de que se trata de uma brasileira privilegiada. Ela realmente necessita receber 13 mil reais por mês, suportados pelos cofres públicos paulistas, os mesmos que sustentam milhões de velhinhos aposentados e pensionistas, de exíguos rendimentos?
Mesmo que a decisão administrativa da SPPrev lhe tenha sido altamente conveniente, ela não acaba por realizar uma melhor distribuição da riqueza, em favor de quem realmente necessita?
Não estou defendendo um ponto de vista; apenas suscito um questionamento, em relação ao qual eu mesmo ainda preciso refletir um pouco mais. A ideia central, porém, é a velha discussão entre legalidade e legitimidade das decisões judiciais.

4 comentários:

Ana Miranda disse...

E o mais interessante é que corrupção, roubalheira, é o que os políticos fazem...
Vai entender.
Eu sei que muitos dirão, "É, mas se fosse você, eu duvido que você abriria mão."
A Maitê não é so atriz, ela é atriz, apresentadora do Saia Justa e escritora.
Tenho certeza que em todos os outros empregos dela, ela ganha muito mais que 13 mil mensais.

RC disse...

São assuntos que sempre descambam para o casuísmo é o umbiguismo. O que dizer, então, dos senhores de 60, 70 anos, servidores públicos, que andam casando, certamente por amor, com senhorinhas de 20 anos, que após uns três ou quatro anos de ardorosa paixão enviuvam e passam a receber pensão do finado até o próprio passamento?

Yúdice Andrade disse...

Não creio que alguém abrisse mão espontaneamente, Ana. Por isso, minha postagem se centrou na decisão do Judiciário e não em eventuais alegações da beneficiária, que aliás nem foram mencionadas.

Verdade, RC. Há moçoilas dessas recebendo pensões. E se houvesse a tal melhor distribuição da riqueza, a que me referi, elas acabariam beneficiadas. Isso seria ruim? No plano ético, decerto. Mas quero crer que, nesse caso, a discussão sairia do plano judiciário para outro, mais individual.

Arthur Laércio Homci disse...

Yúdice,

Como a questão é previdenciária, vou me meter (rs).

De fato, a pensão vitalícia às mulheres é um instituto em defasagem com a Constituição Federal, tal como você mencionou. E, de acordo com as formações contemporâneas de família, não se pode deixar de reconhecer que a união estável possui (em termos teóricos e práticos) os mesmos efeitos do casamento.

Assim sendo, a sua interpretação parece a mais ajustada (tratando hipoteticamente da questão, como você fez). O problema é que, no caso em tela, estamos diante de outra questão importante: a garantia do direito adquirido, já que à época da concessão da pensão a interpretação sobre a equiparação da união estável ao casamento ainda estava engatinhando. Ademais, sendo o direito à previdência social um direito fundamental, que resguarda a dignidade do indivíduo nos momentos de maior necessidade, a interpretação sobre o exercício desse direito nunca pode ser realizada de maneira restritiva, a impedir o seu exercício pelo indivíduo.

Esses, creio, não são argumentos hermeneuticamente ultrapassados, mas se coadunam com a moderno técnica de interpretação constitucional. É verdade que podem levar a situações fáticas incoerentes (como o caso de uma pessoa que recebe um salário de R$ 100 mil pleitear uma pensão de R$ 13 mil), mas a interpretação, nem por isso, deixa de ser contemporânea e, acima de tudo, constitucional.

Como sempre digo, é o preço a pagar pela defesa dos direitos fundamentais. Um preço às vezes salgado, mas eu pagaria.