Já disse aqui no blog, antes, que a superexposição de um assunto na mídia faz com que não me sinta propenso a escrever sobre ele. A par disso, por um questão de responsabilidade não apenas pessoal, mas sobretudo profissional, evito tecer considerações sobre casos reais, em relação a aspectos desconhecidos ou duvidosos. Afinal, sou lido por acadêmicos e não devo correr o risco de fazer uma afirmação que, amanhã, poderá ser desmentida. Ou eles verão em mim um sujeito açodado ou então acharão que errei na análise. As duas coisas não contribuem para a sua formação.
Por isso, cheio de dedos, farei uma exceção para comentar um aspecto do caso Isabella Nardoni.
Tomo por base o fato, agora notório, de que a polícia formalizou o indiciamento de Ana Carolina Jatobá (acusada de tentar asfixiar a menina, levando-a a desfalecer e criando a impressão de que estava morta) e de Alexandre Nardoni (acusado de simular um ataque por terceiros, atirando a criança do 6º andar e, com isso, dando causa a sua morte). Faço questão de destacar que o indiciamento está muito longe de ser prova de culpa. Aliás, o indiciamento é apenas um norte para o trabalho da polícia, mas que não vincula ninguém, tanto que o Ministério Público, ao receber os autos do inquérito, pode oferecer denúncia por crime diverso ou nem a oferecer — situações que são corriqueiras no universo criminal.
O fato é que esse indiciamento deve ser recebido com cautela, para evitar os desvarios de vingança a que o cidadão comum facilmente é levado. Aliás, mesmo que o promotor de justiça do caso denuncie nos mesmos termos capitulados pelo delegado presidente do inquérito — que alega agir com suporte nas perícias, mesmo que nem todos os laudos já tenham sido apresentados —, a confirmação de que Isabella morreu nas condições narradas pela polícia não conduz, necessariamente, à condenação exemplar dos acusados.
Se o povo brasileiro espera que os dois sejam condenados por homicídio qualificado, melhor ir com calma. Um advogado em começo de carreira não leva mais do que alguns instantes para vislumbrar mais de uma tese defensória nesse caso específico. E não teses calhordas, daquelas que ofendem a inteligência ou o senso de humanidade (como queimar um índio "por brincadeira" ou estuprar uma criança "porque ela seduziu"). Refiro-me a teses sérias, relevantes e dignas. Quiçá verdadeiras.
A versão de que Isabella foi atacada pela madrasta é plausível e explica a falta de motivo para o crime. Momentos antes, em um supermercado, a família aparecia feliz. Como explicar um homicídio em seguida? Simples: não havia a intenção de matar. Quem sabe Isabella irritou a madrasta, por alguma dessas tolices de criança, e Jatobá então a agrediu, excedendo-se a ponto de asfixiá-la. Uma das versões dos legistas (ainda não definitiva) é de que a criança pode ter sido esganada e desfalecido, levando os adultos a pensar que estava morta.
Se ficar provado que os fatos aconteceram dessa maneira, o crime de Jatobá seria o de lesão corporal, grave talvez, por perigo de morte, mas não homicídio.
Quanto a Nardoni, ele pode ter acreditado na morte acidental da filha e decidido proteger a esposa. Afinal, eles possuem dois filhos pequenos juntos, motivando-o a querer preservar o que restou da família. Aí entra em cena a simulação e, o mais grave, o ato de atirar a vítima do 6º andar, ainda viva, especificamente por supor que já estava morta. Nesse caso, ocorreria o chamado dolo geral ou erro sucessivo. Nardoni poderia responder por homicídio doloso, mas simples, sem nenhuma causa de qualificação. E ainda se pode dizer que o desespero ante a morte da criança o deixou com a capacidade de julgamento prejudicada, o que também soa plausível. Eventual frieza posterior não indica que ele estivesse indiferente no momento dos fatos. O normal é que estivesse violentamente estressado.
Note que, nesta hipótese, não necessariamente Jatobá poderia ser acusada pelo homicídio, se partirmos da premissa de que a decisão de atirar a menina foi unilateral do pai.
Apenas na hipótese de Nardoni e Jatobá estarem cientes de que Isabella ainda vivia quando foi atirada do 6º andar é que pode permitir, tecnicamente falando, que os dois sejam condenados por homicídio qualificado. E provar isso está além da simples vontade de que sejam punidos com o máximo de rigor.
A batalha está apenas começando. Isabella, infelizmente (que isso não é coisa que se sonhe ou se deseje), pode estar prestes a se tornar mais um daqueles casos emblemáticos da história criminal brasileira, extremamente didáticos e importantes para a formação das novas gerações. É o que já acontece com o caso do índio pataxó, em relação à eterna luta entre dolo eventual e culpa consciente. O affair Isabella, pelo visto, permitirá a abordagem de um feixe maior de assuntos.
Espero que, pelo menos, ela esteja em paz.
6 comentários:
Caro Yúdice,
Primorosa aula.
Belíssimo artigo, aliás, o mais coerente que ja li até agora sobre o assunto.um abraço,
Teuly
Conhecimento é coisa cara. Tanto que poucos podem pagar por ele. Mas você, amigo e mestre, tem a minha admiração por não aprisioná-los no mundo acadêmico.
Todavia, só alguns reconhecem o valor desse conhecimento e podem se servir dele de modo gratuito. A diferença: leitura, coisa de poucos.
Obrigado, Yúdice! Se algum dia alguém disser que eu sei alguma coisa de direito penal, terá sido você o responsável, a referência.
Um abração
Querida Teuly, não é uma aula. Ao menos não pretendi ir além de teses que me parecem bastante plausíveis no contexto - teses que saem comprometidas apenas diante da enormidade que foi essa simulação. Mesmo assim, as teses sobrevivem, para julgamento pelo tribunal do júri.
Agradeço a calorosa manifestação e me sinto feliz e honrado por ter, pela primeira vez, uma manifestação tua no blog, que com isso fica mais bonito. Com todo o respeito, viu, Francisco?
Não aprisiono mesmo, Fred. Sou comunista principalmente em relação ao saber. Penso que toda pessoa tem a obrigação moral de repassar aos outros aquilo que aprendeu - não necessariamente comoi professores, claro, mas sobretudo no dia a dia. O conhecimento está aí para melhorar a vida das pessoas e não é justo que a maioria não possa ususfruir dele.
Assim, "do muito que li, do pouco que sei", para não dizer que "nada me resta", como na canção ora citada, prefiro deixar minha contribuição para a ciência alheia. Se servir de algo, estará à disposição dos que quiserem.
PS - Não te ofereci muito em um semestre, amigo. Nos outros três, com certeza, aprendeste mais.
Data vênia o louvável posicionamento de um inteligentíssimo operador do Direito (cujo blog, felizmente, acabei de descobrir), eu, humilde e parcialmente, venho a discordar.
É fato que o clamor popular, auto-intitulado Doutor na Ciência Penal, é categórico em condenar num piscar de olhos o réu de acordo com o julgamento da mídia, ainda que sem plausividade fática e, muito menos, jurídica. No entanto, neste caso em específico, eu tenho que me render... No início, fiquei com um pé atrás e me recusei a acreditar - até mesmo por ter fé no homem e na humanidade - que o pai, legítimo garantidor da proteção dos bens jurídicos da filha, bem como a madrasta, mãe de dois filhos pequenos, iriam cometer um crime atroz, cruel e covarde como o em destaque. Contudo, os fatos não apontam para outra opção. Muito pelo contrário. Eles não abrem outra possibilidade.
De fato, as câmeras do Sam's Club mostram uma família comum, harmônica, cotidiana. Contudo, o histórico da família evidencia seu desequilíbrio, mostrando que, para eles, não precisava de muito para a paz ser quebrada. Falo isso com relação à Jatobá, que, inclusive, já registrou boletins de ocorrência contra o próprio pai, por atirar-lhe um vaso diante da negativa da "madrasta" em carregar seu filho de 11 meses, que chorava, dentre outros casos de instabilidade emocional. Ademais, inúmeros são os depoimentos das testemunhas no sentido de apontar as brigas violentas do casal, sobretudo quando estavam em companhia de Isabella, bem como demonstrando que no dia do crime o mesmo, em meio a uma festa no prédio de seus sogros, agrediu a criança após uma suposta má criação, prometendo que a mesma "iria ver só quando chegasse em casa". E, como que num passe de mágica macabra, após tal promessa de castigo, o pai deixou a criança para dormir e, 10 minutos depois, ao retornar, a mesma já havia sido asfixiada, a tela do apartamento, cortada, a vítima atirada e o assassino, misteriosamente desaparecido. Bizarra e até mesmo ingênua essa defesa de negativa de autoria. Quanto à tipificação penal... Pelo (pouco) que sei, não há a necessidade de haver o dolo direto para caracterização do homicídio, bastando, para tanto, o dolo eventual. E entendo que, quando uma mulher adulta aperta, enfurecida, por mais de 3 minutos consecutivos o pescoço de uma criança de cinco anos de idade, não tenciona ela causar uma mera lesão corporal. Está, sim, assumindo o (altíssimo) risco de produzir o resultado morte, como aconteceu, sendo a asfixia um meio qualificador por sua crueldade. Logo, ainda que a fim de preservar sua família e os filhos que 'restaram' da ação homicida de Anna Carolina Jatobá, Alexandre Nardoni também embarcou na ação criminosa e planejou/executou o resto do delito, limpando o rosto da menina, então sujo de sangue, a fim de encontrar uma maneira de encobrir o crime ora cometido. Até acredito que o casal não acordou, naquele fatídico dia, com o cruel pensamento "hoje irei ceifar a vida de uma criança". Desequilibrados por pouco, eles possivelmente se excederam. As perícias realizadas na pequena Isabella mostram que ela foi espancada antes de sua morte e do esganamento. Logo, um castigo desmedido e o poder familiar entregue à um casal irresponsável e desumano acabou por pôr fim a uma vida que mal chegou a começar e acabou pelas mãos do próprio pai, que segurou pelas mãos sua suposta 'princesinha', antes de jogá-la, em queda livre, à escuridão da noite, rumo ao chão.
Lorena, minha cara, antes de mais nada, obrigado pela visita. Espero merecer outras. Mas se sinta dispensada de usar a pomposa linguagem que nos empurram nos meios jurídicos. Aliás, o que significa "auto-intitulado Doutor na Ciência Penal"? Dá a entender que eu me designei doutor e jamais fiz ou faria isso. Doutor é quem conclui, com sucesso, o doutorado e esse, infelizmente, ainda não é o meu caso.
No mais, entendo que suas colocações são muito pertinentes e, na verdade, não compreendo em que medida você discorda de mim, pois nada do que escrevi na postagem contraria as suas impressões. Eu apenas elenquei algumas teses que podem ser suscitadas pela defesa, num plano bastante hipotético. Além disso, do dia da postagem para cá, muitas outras informações surgiram que, de fato, corroboram a culpabilidade do casal. Aí você está correta. Hoje, teríamos um trabalho muito maior para adequar uma tese defensória às mais recentes conclusões das perícias.
Se você entendeu que eu pretendo defender o casal, que eu concordo com as hipóteses por mim mesmo levantadas, não é o caso. Já disse antes: eu acredito na ciência e, por isso, dou crédito ao que os peritos afirmam. Só posso concluir que o casal é culpado, sim, exatamente como você.
Nem por isso as teses defensórias deixarão de surgir, mais ou menos plausíveis. E quando surgirem, sinta-se à vontade para vir aqui conversar comigo sobre elas. Será um prazer debater com uma acadêmica de outra instituição. Um abraço.
Professor (se me permite), obrigada pela atenção e por responder ao meu comentário.. Apenas esclarecendo, desculpe o mal entendido mas de forma alguma quis dizer que o senhor se auto-intitula doutor nesta ciência tão apaixonante.. até porque o senhor tem mesmo conhecimento de causa para explanar sobre o que quiser nessa area, tenho certeza disso. Quis dizer que o povo, de um modo geral, dificilmente se habilita à discorrer sobre o direito tributário, civil ou trabalhista.. Mas quando se trata de Direito Penal todos se julgam capazes de discutir, opinar e julgar os feitos judiciais, o que acaba por - como o senhor falou - pré-julgar os condenados de acordo com o posicionamento da mídia.
Agradeço mais uma vez por sua delicadeza e atenção e, mais uma vez, deixo aqui minhas estimas por um blog tão interessante, cujos artigos não me canso de ler! :)
atenciosamente,
Lorena Ferreira
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