quarta-feira, 2 de abril de 2008

O valor da pontuação

Antigamente, na época em que o ensino fundamental era chamado de primeiro grau, havia um livro de Língua Portuguesa cuja capa mostrava um homem olhando perplexo para uma jaula, em cujo interior um macaco, com a maior cara de vitorioso, escondia atrás de si um lápis. Na grade, havia uma tabuleta com a mensagem "NÃO DÊ COMIDA AO MACACO". A lápis, fora acrescentado um ponto de exclamação: "NÃO! DÊ COMIDA AO MACACO".
A inteligente imagem mostrava a importância de uma correta pontuação, para que a mensagem seja transmitida com sucesso ao destinatário — coisa que os estudantes de hoje simplesmente ignoram: em mais de oito anos de carreira docente, só me deparei com uns dois ou três acadêmicos que sabiam pontuar e acentuar.
A pontuação, agora, está sendo utilizada como estratégia de defesa pelo advogado Ricardo Martins, que representa Alexandre Nardoni e sua esposa, respectivamente pai e madrasta da pequena Isabella, de 5 anos, morta ao ser atirada de um edifício em São Paulo. Enfatize-se que o casal não está indiciado em inquérito, sendo apenas foco de uma das linhas de investigação.
Segundo o delegado que preside o inquérito, Calixto Calil Filho, uma testemunha teria escutado uma criança (não se sabe se Isabella) gritar, mais ou menos na hora do crime, "Pára, pai! Pára, pai!" Para o advogado, contudo, essa afirmação é "interpretativa". Para ele, ao ser atacada por sabe-se lá quem, a criança pediu socorro ao pai, gritando "Pára!" (ao agressor) e chamando "Pai!" logo em seguida.
Provavelmente, muitos dirão que o desinibido advogado, que na frente as câmeras exibiu as duas versões da mensagem, está aloprando, como normalmente ocorre na defesa de casos complicados. O pior é que não. O que ele diz faz sentido. Afinal, segundo os relatos até agora, o casal chegou em casa com três filhos, sendo que Nardoni subiu primeiro com Isabella, a mais velha, que estava adormecida. Depois retornou para ajudar a esposa a subir com os dois filhos do casal. Natural que a menina, mesmo sonolenta, soubesse que estava no colo do pai — que, afinal, devia ser sua referência de proteção. Ao ser surpreendida por um agressor, o impulso natural seria chamar o pai, com quem estivera há poucos instantes.
O que acabei de escrever é apenas uma interpretação sobre acontecimentos que ignoro exatamente, louvando-me nas declarações divulgadas até aqui. Mas me parece uma interpretação bastante razoável, que mostra como tudo, no Direito Penal, tem que ser analisado com muito cuidado — até a Língua Portuguesa.
Afinal, é imperioso não repetir, com o casal Nardoni, o que foi feito com o casal McCain, pais da menina Madeleine, desaparecida há quase um ano em Portugal.

Esclarecimento em 21.10.2010: Ao tempo da redação desta postagem, ainda não vigorava a reforma ortográfica, que acabou com o acento diferencial em palavras como "pára", verbo, tal qual se encontra no texto.

5 comentários:

Anônimo disse...

Bela colocação, Yúdice!

Mesmo sabendo da pobreza na acentuação das palavras pelas pessoas, fiquei surpreso com sua estatística sobre os acadêmicos que sabem pontuar.

Se colocarmos esses dados no papel e fizermos um cálculo simples de relação, veremos que o resultado é NADA. Ou seja, tudo indica que nossa Língua Pátria já foi uma riqueza valorizada. Lastimável, infelizmente.

Seu artigo é muito importante para chamar a atenção das pessoas sobre este assunto. Como você diz: "Afinal, é imperioso não repetir, com o casal Nardoni, o que foi feito com o casal McCain, pais da menina Madeleine, desaparecida há quase um ano em Portugal."

Mas falando sobre pontuação, um outro exemplo é uma questão que caiu num Vestibular (não me lembro qual), na qual pedia para acentuar a frase corretamente, fazendo com que tenha concordância:

Enquanto o padre pastava a ovelha orava.

Resultado? Os mais intrigantes, menos o correto.

Saudações,
Alexandre (Campinas-SP)

Anônimo disse...

Minha interpretação, por enquanto:

PÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ...RA.........

Paaaaaaaaaaaaaaaaa...iiiiiiii!!!

O que isso significa?

A garota pede ao assassino:

- PÁRA!!!

E chama pelo pai:

- "PAI"...

Anônimo disse...

Afinal, por que o pai subiu, antes, sozinho, acompanhado apenas da filha Isabella, deixando na garagem a mulher/madastra e os outros dois filhos, para irem ao apartamento somente depois?
Por que não subiram todos juntos?
Muito estranho, não acham?
Que interesse tinha o pai para ficar sozinho com Isabella?
Agravante: parece que não foi encontrado nenhum vestígio de arrombamento nas vias de acesso ao apartamento.
Por outro lado, em defesa do pai, também poderia ser dito que ele bem poderia "matar" a filha em outra circunstância, não exatamente naquela ocasião.
Afinal, tudo é muito estranho.
Pobre menina...

Anônimo disse...

O QUASE BOMBARDEIO DE MANAUS

Conheço outra história de pontuação.
No tempo da 2ª guerra mundial, enviaram um telegrama assim:
"NÃO BOMBARDEIE MANAUS".
Aí o telegrafista cometeu um pequeno equívoco na remessa do telegrama (código Morse) e a mensagem ficou assim:
"NÃO, BOMBARDEIE MANAUS".
Observaram a vírgula depois do "não"?
Pois é. Nossos irmãos amazonenses escaparam por um triz. Por que o telegrama ainda foi corrigido a tempo de evitar o bombardeio de Manaus.
(Humor negro: que pena!...)

Yúdice Andrade disse...

Agradeço ao Alexandre e ao anônimo os exemplos de problemas lingüísticos trazidos.
Aos demais anônimos, que se referiram ao caso criminal propriamente dito, do dia da postagem até aqui a conjuntura mudou e o pai e a madrasta da pequena até já foram presos. As situações mencionadas agora são objeto do inquérito, sobre o qual não temos maiores informações. Resta-nos, portanto, aguardar e acompanhar o desenrolar dos fatos. Um abraço.