sábado, 26 de abril de 2008

Uma realidade para ser vista

Ótima a entrevista que o Diário do Pará publicou hoje com o deputado federal Domigos Dutra (PT-MA), relator da CPI do Sistema Carcerário, que há sete meses vem percorrendo o país e vendo os horrores de que o Estado brasileiro é capaz. A seguir, alguns dos melhores trechos:

"A média nacional [custo de um preso] é de R$ 1.500,00. (...) Mas os Estados não cuidam dos presos. Nós temos uma herança de que preso não é gente. É bicho humano. Então se criou essa cultura que a própria sociedade quer que o preso seja morto. Muitos defendem a pena de morte ou querem que o preso seja tratado como fera. É uma visão equivocada. As autoridades, por sua vez, não querem saber de presídio."

"Quase 100% dos presos no Brasil são pobres e não têm dinheiro para pagar um advogado. A maioria tem o advogado que o juiz dá. Esse advogado que não recebe nada faz de conta que defende. E à medida que o preso não tem uma defesa técnica efetiva, que o Ministério Público tem a mentalidade de só acusar e se pega um juiz indiferente, que não gosta de pobre, a pena tende a ser mais alta que o razoável. (...) as autoridades não se preocupam com os presos. Primeiro porque são pobres. Segundo: têm medo, porque se passa a idéia de que todos os presos são feras, são violentos. É um engano: a grande maioria é de pessoas que praticaram pequenos delitos. Terceiro: as autoridades têm nojo de preso. Nojo. Essa é a palavra."

"Não há ressocialização se a pessoa não estuda e não trabalha. A conseqüência disso é que a reincidência é de 80%¨. Quem paga a conta? Todos nós: em vidas, em patrimônio ou em tributos."

"Eu posso lhe adiantar, sem pré-julgamento, pelos dados que a gente tem, que não tem como a doutora Clarice [Maria de Andrade, do caso da menina de Abaetetuba] não responder a um processo, não ser indiciada. Primeiro porque ela sabia que havia uma mulher presa: foi ela que homologou o flagrante. Segundo: ela sabia que só havia uma delegacia em Abaetetuba. A distância da delegacia para o fórum é de mil metros. Eu fui lá e calculei. Da delegacia para a Defensoria dá 1.200 metros; e 2.000 metros da delegacia até o Ministério Público. Portanto, todo mundo sabia que só tinha uma delegacia. Todo mundo sabia que tinha uma mulher presa. (...) A idade da mulher foi só um agravante a mais."

"Teria sido melhor se todos eles tivessem reconhecido que foi um erro e pedissem desculpas. Não só a juíza, mas outras pessoas também deverão ser indiciadas. (...) A promotora, a defensora pública, os delegados. Não tem como escapar. (...) o Pará é o Estado em que mais se encontrou mulheres presas junto com homens."

"A gente viu, no interrogatório (da CPI), a indiferença da juíza. A senhora que veio aqui (a servidora) também prestou depoimento com a maior indiferença. Então há uma coisa estranha na cultura do Pará: essa frieza - pelo menos dessas mulheres, não digo de todas - diante de uma situação grave que deixou todos, no Brasil e no mundo, horrorizados. E depois teve declarações como a da delegada que disse que a menor se insinuava para os presos."

Como a maioria da população é adepta da política do esfola e mata, Dutra não deve deixar muitas simpatias por aqui. Se lhe valer de alguma coisa, tem a minha. Mas me pergunto como reagirão advogados, Ministério Público e Judiciário ante suas palavras duríssimas, sobre defensores que não defendem (existe isso, claro; vejo toda hora nos autos que manuseio), promotores que só querem acusar (grande verdade) e juízes indiferentes (idem).
Uma coisa é certa: se a entrevista de Dutra não sacudir ninguém, os efeitos do seu trabalho hão de fazê-lo. Felizmente.

2 comentários:

Vladimir Koenig disse...

Yúdice, concordo com você. Realmente espero que o epósidio sirva para sacudir as coisas. mas espero que sirva para não só demonstrar as falhas das pessoas, mas mostrar as falhas das instituições. Afinal, não podemos esquecer que a defensora pública era a única responsável pela defesa em processos penais em uma município com aproximadamente 150.000 habitantes e cuja imensa maioria deve ser de pessoas que não podem pagar advogados. Não quero ser corporativista (até mesmo proque não tento esconder as deficiências da Defensoria Pública e nem sou amigo da defensora pública diretamente envolvida), mas não podemos fechar os olhos para as deficiências crônicas que as instituições sofrem. Hoje, por exemplo, sou defensor público em Icoaraci. Lá somos dois para a área cível, dois para a área penal e uma coordenadora. Parece muito. Mas imagine que se trata de um distrito com mais de 270.000 habitantes e que se fosse município, provalvelmente seria o 4º ou 5º maior do Estado (não vou nem adentrar no fato de que por algum tempo, até março de 2008, eram apenas dois defensores e a coordenadora). Ou seja, há uma enorme carência de pessoal na defensoria pública e confesso que é muito difícil prestar a assistência jurídica que gostaria de fornecer aos assistidos. Felizmente, desde o ano passado, temos conseguido algumas melhorias, mas estamos longe de atingir o ideal. Isto é apenas um exemplo, pois cenários semelhantes se repetem em outros locais do Estado. O mesmo acontece no MP e na magistratura. Por isso, tenho certeza que os erros pessoais devem ser apurados e punidos. Mas, a omissão histórica do Estado com o sistema de Justiça não pode passar impune. É o momento de refletir: ou há investimento no sistema de Justiça ou a coisa vai apenas piorar, seja com a impunidade, seja com o excesso na punição.
Abraços,
Vlad.
P.S.: Quando falo em investimento, reporto-me a aumento no número de juízes, promotores e defensores públicos, bem como em aperfeiçoamento técnico-profissional, com uma visão mais garantista de direito penal, uma visão humanista das relações sociais, em especial daquelas em que há a transgressão da norma.

Yúdice Andrade disse...

Diante de uma manifestação com conhecimento de causa, como a tua, só posso agradecer por trazeres tais luzes ao blog. É importante ouvir quem está por dentro.
Que fique claro, contudo, que lamento que profissionais abnegados paguem a conta de um sistema que não funciona e acaba por sacrificá-los.