quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O problema do mérito

A função jurisdicional é presidida por diversas exigências, dentre as quais a de imparcialidade. Tudo bem que só mesmo os próprios juízes ainda tentam convencer os outros de que são imparciais. Eventualmente, algum acadêmico ingênuo pode acreditar nisso. O foco deste artigo, contudo, não é a existência ou não da imparcialidade, mas uma implicação prática de sua utilização, como hipótese de trabalho da praxe forense.
Assim, como corolário da imparcialidade do juiz, não pode o mesmo incorrer em pré-julgamento. Suas manifestações, dentro e fora dos autos, não podem antecipar qual será o veredito, pois isso implicaria numa inevitável quebra da isonomia entre as partes. A questão, porém, assume contornos interessantes quando um tribunal é chamado para tomar decisões que repercutirão sobre o andamento de uma ação penal, em trâmite perante a primeira instância. Refiro-me, especificamente, a duas hipóteses.

Conflito de jurisdição
Trata-se da situação em que dois órgãos jurisdicionais se julgam competentes para conhecer de certo feito (conflito positivo) ou, ao contrário, declinam dessa competência (conflito negativo). A depender do fundamento, este tipo de incidente processual pode ou não forçar uma investigação antecipada do mérito da pretensão punitiva. Se discutirmos competência em razão do território ou de prerrogativas pessoais, p. ex., não é o caso. Mas se a controvérsia versar sobre a competência do tribunal do júri versus a do juízo singular, solucioná-la pode implicar em resolver se os fatos narrados nos autos correspondem a um crime doloso contra a vida ou não. Ou seja, se o agente teve dolo de matar ou apenas de ferir. Ou se o sujeito nem sequer teve dolo, incorrendo em delito culposo.
Nessa conjuntura, o julgador enfrenta o desafio de, sem incorrer em prejulgamento, emitir um juízo conclusivo sobre a natureza do delito, sobre a capitulação penal. É impossível decidir o conflito sem enfrentar questões, fatos e provas, que tocam diretamente ao mérito da causa. Ao afirmar que o juízo competente é o do tribunal do júri, o tribunal está automaticamente afirmando que o caso é de crime doloso contra a vida. Por conseguinte, teve que valorar os aspectos mais profundos da causa, tais como qual teria sido a motivação do agente.
Entende-se, neste caso, que se trata de uma decisão provisória, na medida em que se destina, tão somente, a resolver que órgão jurisdicional deve conhecer da causa. Contudo, após a instrução processual, o juiz conserva a sua independência para decidir diversamente, p. ex. desclassificando para culposo o crime que antes foram entendido como doloso.
Habeas corpus para trancamento de ação penal
É uma situação ainda mais drástica, porque enseja uma decisão definitiva, isto é, o veredito do tribunal vincula o juízo de primeiro grau. Caso haja o trancamento, não há esperneio possível ao juiz da causa: o processo será extinto, mesmo que o juiz esteja convicto de que deveria prosseguir.
O habeas corpus, por sua natureza heroica, tem cognição limitada e não admite a análise aprofundada de fatos e de provas. Contudo, se a pretensão é trancar a ação penal, torna-se imperioso analisar fatos e provas, em alguma medida, porque aqui também o julgador vai se imiscuir no mérito da pretensão punitiva.
O trancamento de uma ação penal constitui medida excepcionalíssima. Deve ser admitido, apenas, quando haja uma demonstração inequívoca de ausência de tipicidade, antijuridicidade ou de culpabilidade, bem como quando restar manifesto que o acusado não poderia ser o autor do delito. Fica excluída essa hipótese quando a falta de responsabilidade do imputado seja duvidosa, exigindo valorações que só poderiam ser feitas com segurança mediante a instrução processual, lembrando que a ação penal pública é indisponível.
Apenas exemplificativamente, já trabalhei em casos onde houve o trancamento da ação penal ou ao menos a exclusão de um dos réus, pelo seguintes motivos:
  • médico que, chamado a corrigir atestado de óbito emitido por um colega, emite outro atestado após comparecer à unidade de saúde e inteirar-se do caso;
  • militar acusado de peculato por desvio de combustível da unidade em que servia, quando havia prova documental (mapa de consumo) e diversas testemunhas negando a irregularidade. Neste caso, o único indício era o depoimento de outro militar, também investigado na sindicância e por isso suspeito;
  • gerente de banco acusado de estelionato, pelo recebimento fraudulento de empréstimo por terceiros, quando havia prova de que os valores haviam sido obtidos com a utilização de cartão e de senha pessoal, creditados diretamente na conta da beneficiária, além de que o gerente não dispunha de competência funcional para autorizar empréstimos;
  • diretor de estabelecimento penitenciário acusado de tráfico de entorpecentes, quando se apurou ter ele apreendido a droga na casa penal, guardado numa gaveta trancada à chave e determinado a instauração de investigação sigilosa, falhando apenas ao omitir o registro dos fatos em livro próprio.
Como se vê, nestes casos o julgador precisa apreciar detalhamentos essenciais ao mérito, mas sempre na perspectiva de que a prova seja manifesta.
Não prestar a jurisdição requerida com base numa tecnicalidade implicaria em colocar os legítimos interesses da parte abaixo de formalidades estéreis e prejudiciais ao ideal de justiça.

4 comentários:

Anônimo disse...

Yudice, outro aspecto a impactar fortemente a falada imparcialidade do magistrado , vem a ser a forma como a demanda é vista junto a sociedade. Nos dias atuais existem associações corporificada por pessoas que passaram pelo mesma dor , como aqueles que tiveram familiares que faleceram em procidmentos cirurgicos e atrelados a sentimento de incorfomismo e revolta com a morte, se associam no intuito de acalmar suas revoltas e buscam na caracterização de supostos rerros médicos o remédio para suas amarguras. Desta forma fazemn passeatas, acampam em frente a Tribunais de Justiça, buscam apoio na midia e influenciam fortemente os julgadores de suas demandas, ocasionando com isso para prejuízo próprio a manutenção de uma ferida aberta que é a perda de um ente querido, através da punição de médicos que a meu ver não imagino entrem em uma sala cirugica com o intuito diverso do de salvar vidas.

abraço.
DIOGO ALVES.

RAÍZES DO ANANIN disse...

ACABA DE ENTRAR NO AR O BLOG DO PREFEITO DE ANANINDEUA HELDER BARBALHO, É MAIS UM POLÍTICO QUE ADERE A TECNOLOGIA DA INTERNET PARA SE RELACIONAR COM A POPULAÇÃO.

EIS O ENDEREÇO: blogdohelderbarbalho.blogspot.com

Abraço
Felipe Ericeira
Raizesdoananin.blogspot.com

Ana Miranda disse...

Adoro o símbolo da justiça:
Realmente ela é cega para os ricos e não tem dois pesos e nem duas medidas, há apenas um peso e uma medida: o da impunidade!!!

Yúdice Andrade disse...

Caro Diogo, li o teu comentário na hora em que eu comecei a escrever a postagem seguinte, onde essa influência da opinião pública era comentada.

Obrigado pela sugestão, Felipe.

A justiça não é cega para os ricos, Ana. Ela os enxerga muito bem, para favorecê-los.