domingo, 13 de junho de 2010

Crítica ao bom menino

Você provavelmente nunca ouviu falar de George Savalla Gomes. Entretanto, é quase certo que ouviu falar de seu personagem, o Palhaço Carequinha, que chegou a ser muito famoso no cenário do entretenimento infantil brasileiro, com direito a programas na TV entre as décadas de 1950 e 1960. Voltou à TV nos anos 1980 e chegou até a participar de uma novela. Em 2005, fez seu último trabalho televisivo numa participação em Hoje é dia de Maria. Também se envolveu com cinema e diversos produtos licenciados com a sua marca.
Como não poderia deixar de ser, enveredou pela seara musical, chegando a gravar 26 discos. Minha memória consegue reter um de seus maiores feitos na área, a canção "O bom menino".
Aposto que você nunca pensou nisso, mas "O bom menino" é um manifesto ideológico terrível, embora seja compreensível que espelhe o tempo em que foi composto. Estou certo de que foi composta com uma honesta finalidade educativa, mas nem por isso fica isenta de crítica. Vamos à letra:

O bom menino não faz pipi na cama
O bom menino não faz malcriação
O bom menino vai sempre à escola
E na escola aprende sempre a lição

O bom menino respeita os mais velhos
O bom menino não bate na irmãzinha
Papai do céu protege o bom menino
Que obedece sempre, sempre a mamãezinha

Por isso eu peço a todas as crianças
Muita atenção para o conselho que eu vou dar

(falado)
Olha aqui.
Carequinha não é amigo de criança que passa de noite da sua cama pra cama da mamãe
E também não é amigo de criança que roi unha e chupa chupeta.
Tá certo ou não tá?
Táaaaaaa

Eu obedeço sempre a mamãezinha
Então aceite os parabéns do Carequinha.

O bom menino...

(falado)
Olha aqui.
Carequinha só gosta de criança que respeita mamãe, papai, titia e vovó
E seja amigo dos seus amiguinhos
E também que coma na hora certa, e durma na hora que a mamãe mandar.
Tá certo ou não tá?
Táaaaaaa

Eu obedeço sempre a mamãezinha
Então aceite os parabéns do Carequinha.
Viva o bom menino
Vivaaa


A despeito de algumas sugestões sensatas, a letra prima pelo maniqueísmo e reduz as situações consideradas como inconvenientes a uma simples questão de escolha pessoal da criança. Exatamente o que a sociedade não reflexiva de hoje faz em relação aos criminosos. Sobre ir para a cama dos pais e chupar chupeta, p. ex., vai uma culpa bem maior dos pais do que da criança. Mas me concentrarei na estrofe inicial. Vejamos.
O controle da micção é uma das habilidades que a criança precisa aprender e que, segundo me sopra minha esposa ávida leitora de livros sobre desenvolvimento infantil, começa pelo controle do cocô noturno e se completa com o controle do xixi noturno. Ou seja, não fazer xixi na cama é a parte mais difícil desse aprendizado. Além disso, justamente porque dorme e está com a musculatura relaxada, a criança não se alivia na cama apenas por mau caratismo. Outros fatores influenciam, de fundo emocional sobretudo. E aqui a responsabilidade ou a culpa, se quisermos um termo mais veemente pode ser deslocada para os pais. Uma família desorganizada, com pais em conflito ou que exijam demais da criança, pode levá-la a atitudes como urinar na cama, inconscientemente, para chamar a atenção.
Longe de ser um indício de transgressão, a micção noturna pode ser um pedido de socorro, que somente pais amorosos e dispostos a educá-la para a autonomia seriam capazes de identificar e trabalhar, com vistas a uma solução tranquila e definitiva. Talvez o Palhaço Carequinha não soubesse disso.
Outro absurdo é o desempenho na escola. Note que a canção não diz que o aluno é responsável ou interessado, que se esforça, que tem mérito. Ela diz que ele "aprende sempre". E segundo o draconiano modelo educacional da época, o aprender era medido única e exclusivamente mediante critérios quantitativos, expressos numa nota ou num conceito. Assim, uma nota baixa indicava que o aluno não aprendeu e, somente por isso, não era um bom menino.
Não se levam em consideração, por óbvio, os mais diversos fatores que influenciam o processo de ensino-aprendizagem. Nada se disse sobre as escolas depauperadas, sem carteiras suficientes para todos os alunos, sem giz, com goteiras ou banheiros ruins. Nada se disse sobre barrigas vazias. Nada se disse sobre a carência de professores ou a sua má formação. E mesmo que quiséssemos nos concentrar em escolas sofisticadas, de excelente infraestrutura e capacidade de investimento, nada se disse acerca dos professores descompromissados com a educação, viciosos, preguiçosos e que se escondiam atrás da docência para dar vazão a desejos mais ou menos inconscientes de tiranizar pessoas vulneráveis. Nada se disse, acima de tudo, sobre o modelo educacional então vigente, deturpado em sua própria concepção, porque fundado em uma premissa de simples memorização e, para piorar, com conteúdos fortemente influenciados por vertentes religiosas ou ideologias governamentais, tais como a submissão da mulher pelo homem, a leniência com a violência intrafamiliar (desde que cometida pelo macho adulto branco, aquele que está sempre no comando), o culto obrigatório do catolicismo com punições morais sobre os dissidentes, o combate ao comunismo e a adoração cega ao governo, notadamente no período da ditadura militar. Daí surgiram disciplinas imbecilizantes como Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e o ápice da patuscada: Educação Moral e Cívica, de que os estudantes a partir da década de 1990 tiveram a sorte de escapar. Para que tenham uma ideia do que se tratava, imagine o seu bisavô centenário, heroi de guerra (???), auxiliado por uma beata há muitos anos viúva, ensinando como você deve se portar, dentro de casa e na vida pública, de acordo com os saudáveis padrões da moral, dos bons costumes e do amor à pátria.
Era mais ou menos isso, só que pior. Inclusive porque você podia ficar reprovado.
Carequinha não era um homem mau. Tomo-o apenas como um representante do seu tempo, defendendo o ideário de sua época, da qual ele próprio era fruto. Mas ele que gostava de se apresentar para os presidentes da República, de Getúlio Vargas a FHC, passando portanto por todos os militares poderia ter ido além e ajudado a formar uma geração de crianças mais competentes e independentes sem abdicar, é claro, dos valores da disciplina e do respeito.
George Savalla Gomes morreu em 5 de abril de 2006, quase aos 91 anos, ainda na ativa. Carequinha, é claro, não morrerá jamais.
Tá certo ou não tá?

6 comentários:

Liandro Faro disse...

Achei simplesmente fantástica a sua análise crítica!

Luiza Montenegro Duarte disse...

Os pais e professores não tem consciência do quanto podem traumatizar um filho com coisas pequenas. As pessoas reagem de forma absolutamente distinta às coisas, então, para uma criança mais sensível, um simples "você é desajeitado" pode influenciar por anos a fio, abalando sua auto-estima de alguma forma.
O pior é que isso independente da falta de amor e descaso dos pais. Cito-me como exemplo: fui criada com muito amor e dedicação pelos meus pais. Hoje, adulta, percebo que eles abdicaram até demais da própria vida e diversão por mim e meus irmãos, sem nunca reclamar ou se arrepender.
Então, tudo o que eles fizeram na nossa criação foi tentando acertar, o que não impediu que eu sentisse necessidade de fazer terapia, para superar algumas dificuldades, que, pude perceber ao longo do processo, foram geradas na minha infância, pela forma como eu assimilei certas coisas, certas exigência e cobranças, que, para meus irmãos, foram naturais.
Isso torna o desafio de educar ainda maior, pois mesmo pais absolutamente preocupados e comprometidos com a educação dos filhos podem cometer erros que deixarão marcas bem profundas, pois às vezes os erros são decorrentes de excesso de amor e zelo.

Yúdice Andrade disse...

Será que os herdeiros do Carequinha diriam o mesmo, Liandro?

Há dois dias fazia uma reflexão sobre isso com minha esposa, Luiza. Algo como um mea culpa, já que tive outras crianças sob minha área de influência e sempre fui crítico demais com ela (como é fácil de imaginar). E o pior é que não se pode dizer que eu tenha agido por amor e zelo.
Confesso que fiquei um pouco afetado por isso. O sinal de alerta foi aceso, para não repetir o erro com a Júlia.

Anônimo disse...

Caramba Yúdice!!!! Muuuuito legal. Fui transportada lááááááá..Ops!!!...Segredo... Lembrei do Alecrim da Beira D'agua rsrsrsrsr.
Cris Cordeiro

Ana Miranda disse...

Eh...eh...eh...
Yúdice, você não deixa passar nada, hein?
Coisas de pai...

Yúdice Andrade disse...

Lembraste de quem, Cris???

Eu me esforço, Ana...