segunda-feira, 5 de abril de 2010

Uma experiência cinematográfica

Finda a exibição, um rapaz, contrito, pôs-se de pé e aplaudiu. Eu ainda estava sentado, porque sempre fui de ver a ficha técnica até o final. Enquanto os demais espectadores(*) deixavam a sala, fiquei observando a emoção daquele moço, tocado sabe-se lá em qual fímbria de sua alma.
O filme era Os vivos e os mortos (The dead, 1987, dirigido por John Huston), com Anjelica Huston no papel principal. Um filme de arte, que só atrai mesmo um público específico. Uma dessas experiências cinematográficas delicadas e raras, que você se sente privilegiado por assistir.
Até ontem, esse era o único caso, que eu presenciara, de público aplaudindo após uma sessão de cinema. E, mesmo assim, tratava-se de uma manifestação isolada. Ontem, contudo, um sujeito entusiasmado (percebi isso por sua postura durante a exibição, incomodando-nos com seus comentários tipo "isso é lindo") puxou as palmas, hesitou um instante mas, em seguida, contou com a adesão de uma boa parte do público que lotava a sala. Os aplausos foram a reação da plateia a Chico Xavier, de Daniel Filho.
Eu estava um pouco preocupado, porque desconfio do padrão global de fazer cinema. Preocupava-me não apenas desperdiçar um personagem tão relevante em uma produção tipo novelinha, apelando para a pieguice. Mas Daniel Filho calou a minha boca, realizando uma obra que já pode ser inscrita entre os maiores títulos do cinema brasileiro.
Tudo bem, sou suspeito para falar, como espírita naturalmente inclinado a me encantar com a figura de Chico Xavier. Mas o roteiro se preocupou em contar uma história com acentuados apelos dramáticos sem, contudo, incorrer no vício de enfocar demais esses aspectos. A emoção inevitável das perdas e das esperanças foi mostrada como precisava ser, numa narrativa que é essencialmente leve, permitindo-nos momentos de sorrisos e até de gargalhadas. Algumas das passagens mais pitorescas da vida do médium estão ali retratadas, como a cena do bordel, a noite em que ele manda o assistente aplicar o Evangelho com firmeza e a turbulência no avião. Mas em momento algum se exagera na comicidade. Nada é burlesco, como se percebe por ocasião dos créditos finais, quando vemos a imagem do verdadeiro Chico contando a dita experiência do avião para uma plateia que ri desbragadamente.
O diretor já começa se explicando: através de uma legenda, alerta que seria impossível mostrar todos os episódios relevantes da trajetória do biografado, assim como todas as pessoas que poderiam ser interessantes. Chama a si apenas o dever de ser fiel aos fatos. Com essa lúcida iniciativa, ele consegue se concentrar nos aspectos essenciais dessa vida ímpar, deixando-nos satisfeitos. Ele não mostra, p. ex., os últimos anos do médium, quando ele, bastante alquebrado com apenas 35 quilos e preso a uma cadeira de rodas , já nem atendia mais na Casa da Prece. Ou o lamentável dia em que Fernando Collor, não me recordo se ainda candidato ou já presidente da República, invadiu-lhe a residência, ávido por tirar uma casquinha da respeitabilidade do líder espiritual. Acertou ao encerrar sua narrativa num momento em que o médium estava plenamente ativo.
Como sempre ocorre nas produções da Globo Filmes, lá está o desfile de atores das novelas. Mas era uma elite que revelou outro momento de grande felicidade do diretor: a escolha do elenco.
Todos os intérpretes de Chico são bem sucedidos, inclusive o pequeno Matheus Costa, que no próximo dia 12 completa 12 anos. O menino já tem no currículo cinco novelas (e estará em Escrito nas estrelas, a partir do dia de seu aniversário), três especiais, um seriado, três filmes e três peças de teatro. Ele cativa como o menino tido por louco, contando com o auxílio da sempre adorável Letícia Sabatella.
Na fase intermediária, Ângelo Antônio mostra grande competência como ator, notadamente na cena em que Chico livra a própria irmã da dominação de um espírito. Ele convence com os maneirismos e a delicadeza do personagem. E, por fim, como já se podia esperar de um veterano, a brilhante caracterização de Nelson Xavier, que de óculos e chapéu ficou idêntico, além de reproduzir até a voz aguda do médium.
O que precisava ser mostrado estava lá, ainda que de modo sumário: a perseguição da Igreja Católica, a descrença de pessoas para as quais psicografou, as acusações de fraude e charlatanismo e as incursões judiciais, seja na ação movida pelo espólio do escritor Humberto de Campos, seja na ação criminal em que o réu foi absolvido graças a uma carta psicografada (no total, foram três casos). O resultado disso tudo é um filme que decerto fará bem a todos os que a ele assistirem desarmados, sem as habituais (e hoje incompreensíveis) resistências ao Espiritismo, que não é o personagem principal ali. Acima de tudo, fala-se de um homem que dedicou sua vida a auxiliar a todos quantos podia, com sacríficios pessoais e sem lucrar absolutamente nada com isso. Não há ninguém que possa apontar um só momento em que Chico tenha vivido com luxo ou prazeres mundanos. Somente por isso já se constata que foi um indivíduo extraordinário.
E quem quiser abrir mais os olhos, verá além.

PS1 O filme não é baseado em obras espíritas, e sim na biografia escrita pelo jornalista Marcel Souto Maior ("As vidas de Chico Xavier"), que é mais um exemplo de algo comum nesse meio: alguém que começou cético e terminou transformado. Não quero dizer convertido ao Espiritismo, mas convencido de que há algo mais, no mundo, do que supunha antes.


PS2 O filme já bateu o primeiro recorde de bilheteria.


(*) Leia, na caixa de comentários, uma explicação sobre este vocábulo.

9 comentários:

Tanto disse...

Olha... juro que não estava com muita vontade de ver o filme. Primeiro, biografia não é um assunto que me agrade muito. Segundo, achava que seria uma propaganda religiosa, e espírita ou católica, não sou fã.

Mas juro que, depois dessa tua resenha, vou repensar e ver se convido a namorada para assistir comigo.

Yúdice Andrade disse...

Faz isso, Fernando. E depois me diz o que achaste.
Pessoalmente, gosto de biografias, literárias ou cinematográficas. E nesta mídia elas são particularmente complicadas, por causa da composição do personagem.
Quanto à propaganda religiosa, é possível que muitos identifiquem apologia ao Espiritismo, mas honestamente não acho que seja isso. Acho até que seria prevenção pensar assim.

Ivan Daniel disse...

Eu assisti no sábado. Também houve aplausos no final. Fiquei emocionado com o que vi. Aceitar, compreender e fazer bom uso de uma condição espiritual tão especial quando se está na matéria, é prova de grande evolução moral. O filme mostra uma pequena gota mas revela o oceano de paz, luz e caridade que foi a vida do Chico Xavier. Minha Páscoa foi ótima!

Anônimo disse...

Não tenho o mínimo interesse pelo Chico Xavier, confesso. Até gostaria de ver o filme como produção cinematográfica nacional, até pq do algo incensado Daniel Filho não vi nada. Já presenciei um aplauso espontaneo e generalizado no cinema, após o filme "Piaf", aliás, para mim um dos melhores filmes dos últimos tempos. Nenhuma comparação entre os personagens, mas esse último sim um primor de atuação de Marion Cotillard e um jeito fascinante de narrar uma história. Abs, Daniel Silveira

Anônimo disse...

Meu caro Yúdice, permita-me: é "espectadores" e não "expectadores".
Cordialmente...

Yúdice Andrade disse...

A minha também, Ivan. Penso que nos sentimos de modo muito semelhante.

Valorizar o cinema nacional também é um bom motivo, Daniel. Penso que, justamente por não teres interesse pela figura de Chico Xavier, vale a pena ver o filme, com a possibilidade de analisá-lo de modo mais isento.
Gosto é mesmo um negócio complicado. Vi "Piaf" e considerei o filme chatíssimo, justamente por conta da narrativa. Os aspectos técnicos e sobretudo a interpretação da Tittelrolle estavam fantásticos, sem dúvida.

Yúdice Andrade disse...

Das 8h57, antes de mais nada, obrigado pela dica. Contudo, há controvérsias. Fiz uma consulta rápida e constatei a existência de duas correntes:
1ª) "expectar" significaria estar na expectativa de algo, ao passo que "espectar" significaria assistir a um programa ou peça de teatro;
2ª) não existe diferença entre os dois vocábulos, que se originam em correlatos verbos latinos e significariam, ambos, estar na expectação de algo, que tanto expressaria o sentimento de expectativa quanto o ato de ver, de acompanhar alguma coisa.
Confesso que desconhecia essa controvérsia e escrevi a palavra com "x" por acreditar que "expectar" tinha, também, a acepção de "assistir a". Pelo visto, eu não estava errado.

Anônimo disse...

Meu caro Yúdice, permita-me outra vez. Numa simples conferência ao Aurélio. Espectador, do lat. spectatore, é aquele que vê qualquer ato, testemunha; aquele que assiste a qualquer espetáculo.
Já expectador, do lat.exspectatore, é quele que tem expectativa, que está na expectativa. O nó vernacular da questão está neste "xs".
Mas vamos além do Aurélio. Expectativa, do lat. expectatu, é esperado, desejado.
Existe em latim o verbo spectare para significar olhar, contemplar. Intensificando a significação do verbo, mediante o prefixo aumentativo "ex", formou o latim o verbo exspectare, que passou a ter significado mais forte: esperar.
Bem, não adianta desenovelar todo esse latim: melhor ler Virgilio.
No entanto, recomendo-lhe, na acepção por você utilizada, que adote o "espectador", sem precisarmos recorrer a Domingos Vieira, Morais, Cândido de Figueiredo, Aulete et caterva. Poderia tranquilamente nominar-me, mas, neste caso, seguirei no anonimato, por ser pessoa até de pública exposição, lavrada em texto diário. De qualquer maneira, nas vezes que venho aqui, prezo sempre sua articulação crítica, ainda que eventualmente discorde.
Ex toto corde,...

Yúdice Andrade disse...

Meu caro, agradeço o seu detalhamento e dou-me por convencido. Modificarei o texto. Prezo a Língua Portuguesa com um ardor quase parnasianista, de modo que não me admito nem o mais elementar erro. Além disso, se algo está certo, mas pode ser dito melhor, então eu prefiro o melhor.
Fique à vontade para fazer suas considerações sobre meus textos. Reputo valioso merecer a sua atenção, inclusive no que tange às discordâncias. E lamento desconhecer sua identidade. Mas quem sabe por e-mail você não me diz?