Este é o tipo de postagem que se sairia melhor fora do período de férias acadêmicas, quando os alunos estão (ainda) mais preocupados com as questões mundanas da vida (não é uma crítica; todos nós somos habitantes deste mundo). Mas como a ideia me ocorreu agora e eu costumo deixar de lado os temas que não desenvolvo de imediato, vamos lá.
Em maio de 1994, o Conselho de Justiça Federal publicou um trabalho intitulado "O que não deve ser dito: notas de linguagem forense e algumas observações práticas", de autoria do juiz federal Novély Vilanova da Silva Reis. Não me recordo como o documento chegou às minhas mãos, mas ele pode ser encontrado na Internet. Assim que li, passei a seguir suas diretrizes na elaboração dos trabalhos que desenvolvo. Afinal, sempre fui preocupado com precisão técnica e, acima de tudo, gosto de entender por que as coisas são como são, a fim de não me tornar uma pessoa que somente executa.
De saída, gostei de ver a apresentação, redigida pela hoje Ministra do STJ Eliana Calmon, à época juíza do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, mencionando que "o consenso atual na magistratura brasileira sinaliza para a necessidade de buscar-se maior aproximação dos juízes com os jurisdicionados". Tenho cá a minha suspeita de que o tal "consenso" é mais uma visão pessoal da magistrada, que já deu mostras de sua ousadia quando assumiu a Corregedoria Nacional de Justiça, comprando briga com seus pares.
Não creio que a realidade seja como ela afirma. Pelo contrário. Mas concordo que esse deveria ser um dos maiores objetivos do Judiciário. Para implementá-lo, uma das medidas precisa ser a simplificação da linguagem jurídica, como pensam também Calmon e o juiz Novély Reis.
Referindo-se à "volúpia da palavra", o autor pondera que "por uma questão cultural, a linguagem forense é profusa e rebuscada, comprometendo a objetividade do texto". Os exemplos de abusos que ele cita merecem ser lidos, mas quem acompanha este blog deve recordar que, volta e meia, apresento aqui alguns desatinos da vida forense local (como este, este, este e este, além desta remissão). O autor informa que, durante o Fórum de Debates sobre a Justiça Federal, realizado naquele ano de 1994, foi extraída a recomendação, aos juízes, de que "utilizem, nos atos judiciais, linguagem acessível aos jurisdicionados".
Seguem-se, então, vários vícios de linguagem forense. O autor explica por que são errados ou, ao menos, inconvenientes. São informações necessárias para quem trabalha nesse meio e tem que enfrentar esses desatinos diariamente, quando não os comete. Alguns exemplos:
"Peça vestibular"
O autor sugere que se use, apenas, petição inicial — e não "peça vestibular", "peça exordial" ou "peça preambular" —, pois é esse o termo empregado pelo art. 282 do Código de Processo Civil. "Todos vão entender melhor", assevera. Pode ser. Mas é da natureza de todo escritor (e até somos levados a isso, nas aulas de redação) evitar a repetição de termos, que tornam o texto cansativo e pobre. A mim não parece problemático buscar alternativas a "petição inicial", até porque "vestibular" e "preambular" são expressões que qualquer pessoa razoavelmente educada deveria conhecer. Não as entender é um sintoma preocupante. "Exordial" é mais incomum, com certeza.
Seja como for, na hora de variar "petição inicial", é escolha do comunicador usar uma alternativa acessível ao interlocutor ou aloprar, como normalmente acontece. Caso daqueles que insistem em chamar a denúncia de "exordial increpatória".
"União Federal"
Novély Reis ensina que não existe União Federal, mas tão somente União, como sempre constou de todas as constituições brasileiras. "Federal" é a forma do Estado brasileiro, lembra ele, invocando o art. 18 de nossa Carta Política. Tem razão. Não há qualquer motivo para essa adjetivação, já que não existe outra União que não seja, justamente, a organização política da própria Nação (ou seja, o todo).
Neste particular, vale lembrar que todo mundo fala em "Constituição Federal", até para diferenciar das cartas estaduais. No entanto, a expressão é incorreta. O documento se chama "Constituição da República Federativa do Brasil" ou, simplesmente, "constituição", como ela mesma se designa. Mais uma vez, constata-se que federal ou federativa é a República, não a sua constituição. A famosíssima sigla "CF" deveria ser substituída por "CR".
"Justiça Pública"
Esta é ótima. O autor do texto afirma que tal expressão não deve ser mencionada em caso algum. Afinal, o autor da ação penal é o Ministério Público ou o ofendido. Aludir-se a uma "Justiça Pública" com função acusatória passa, ao leigo, a ideia de que existe uma justiça privada, o que não se admite.
Novamente ele tem razão. Não existe nenhum órgão chamado "Justiça Pública" e, como a palavra "justiça" se confunde com "Poder Judiciário", a conclusão elementar a que se chega é que tal órgão seria judicial, cumulando as funções de acusar e julgar — sabidamente uma das maiores excrescências de outras épocas.
Curiosamente, essa expressão injustificável continua sendo largamente utilizada no Judiciário local, a sugerir que o comunicador médio não pensa no significado daquilo que enuncia. Algo semelhante acontece com quem ainda se reporta a "promotor público", expressão há décadas substituída por "promotor de justiça".
Qualquer hora dessas, volto com outras ponderações do gênero.
2 comentários:
Legal essa postagem. Estou lendo exatamente sobre isso em "A Técnica da Redação Jurídica ou a Arte de Convencer", de Vicente de Paulo Saraiva, editora Consulex. Vamos ver se eu mudo até o estilo.
Essas obras acabam influenciando a nossa produção cotidiana, sim, Fred. Sempre nos deparamos com algo que não sabíamos ou encontramos meios de melhorar.
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