domingo, 4 de setembro de 2011

Lição de filosofia: sobre a imparcialidade

Na caixa de comentários da minha postagem, o nosso querido filósofo blogueiro André Coelho defendeu a imparcialidade do juiz, que eu criticara. Pedi esclarecimentos e ele, generoso como sempre, brindou-me com este ensaio:

Quando o conceito de imparcialidade do juiz começou, ainda na primeira metade do Séc. XX, a ser objeto de duras críticas do ponto de vista psicológico e sociológico, a "imparcialidade" que as críticas tinham em vista era uma espécie de capacidade psicológica: a capacidade de o juiz examinar cada controvérsia trazida a ele de modo em primeiro lugar neutro (sem ser influenciado por nenhum elemento de sua biografia prévia, de sua posição social, de sua criação e valores etc.), em segundo lugar objetivo (atendo-se de modo frio apenas aos estritos requisitos fáticos levantados pela lei, sem envolver-se quer emocional quer valorativamente com a situação em questão) e em terceiro lugar imparcial (sem identificar-se ou inclinar-se mais ou menos para um dos lados em detrimento do outro na disputa). O que as críticas psicológicas explicavam do ponto de vista teórico e as críticas sociológicas comprovavam do ponto de vista estatístico é que a crença de que os juízes eram pessoas capazes de alcançar e permanecer em tal distanciamento racional que os tornasse a pura "boca da lei" não tinha o menor fundamento, simplesmente porque, antes de serem juízes, eram seres humanos, e seres humanos são qualquer outra coisa que não neutros, objetivos e imparciais, especialmente quando precisam julgar e decidir e quando investidos do poder que confere à sua palavra autoridade coerciva. Quanto a essa crítica, psicológica e sociológica, tenho pouco a discordar, porque o fato para o qual ela chama atenção me parece, de modo geral, inegável. Minha única restrição seria talvez que eu não iria tão longe a ponto de dizer que neutralidade, objetividade e imparcialidade são impossíveis para qualquer ser que se conte entre os humanos, mas diria, em vez disso, que qualquer tentativa de aproximar-se desses "estados apáticos" luta contra a intensa resistência em contrário de uma psique que se formou desde sempre pelo afeto, pela emoção, pela estima, pela preferência e pelo valor, todos os quais a levam a ser influenciada pelo passado, a envolver-se com as situações e a tomar lados nas controvérsias. Portanto, tentativas de ser neutro, objetivo e imparcial são lutas contra si mesmo, de um imperativo da razão contra as disposições e tendências psicológicas normais do ser humano. Não é o tipo de empresa favorecida pela natureza, sem dúvida alguma. Por isso, só é possível alcançar tais estados de maneira parcial e aproximativa, fazendo, por assim dizer, o maior esforço possível para permanecer numa situação de equidistância mesmo quando todas as forças e potências internas balançam a ponte em baixo dos pés e puxam todos juntos o juízo pelo braço para um dos lados, sabotando seu equilíbrio.Minha divergência mais séria não é tanto com a crítica psicológica e sociológica à ideia de que os juízes são neutros, objetivos e imparciais (desde que devidamente moderadas do modo que indiquei), mas sim com uma consequência que se costuma retirar muito facilmente daquela crítica e que toma uma dessas duas formas: a primeira é "Embora a imparcialidade seja um ideal nobre e necessário para a justiça, um exame realista dos seres humanos e de seus julgamentos nos convence de que devemos abandonar qualquer esperança de alcançá-lo e devemos, em vez disso, simplesmente aceitar que os juízes são, infelizmente, pessoal, social, política e valorativamente engajados e comprometidos com certas pessoas, grupos, causas e situações em detrimento de outras" (a isso eu chamarei aqui de ceticismo derrotista da imparcialidade); ou que pode tomar ainda essa forma ainda mais forte: "Devemos, na verdade, não lamentar, mas aplaudir que seja assim, porque também o direito, quando regula alguma situação, toma partido de um dos lados, a saber, do lado mais fraco, mais vulnerável, mais injustiçado e mais perseguido, protegendo-o em detrimento do outro, de modo que se o juiz, ao julgar, não tomar também ele o partido daquele que o direito visa a proteger na situação em questão não poderá apreender aquela situação da mesma perspectiva que o direito recomenda e acabará por honrar mais a letra que o espírito das normas que ele tem nas mãos para aplicar" (a isso eu chamarei aqui de celebração eufórica da parcialidade). São essas duas versões do abandono da imparcialidade, a derrotista, que julga a imparcialidade desejável, mas impossível, e a eufórica, que julga a imparcialidade, além de impossível, também indesejável, que considero profundamente nocivas para qualquer concepção que seja da aplicação justa do Direito, porque comprometem algumas categorias básicas sem as quais é impossível sequer conceber um juízo como justo. Um julgamento em que uma das partes já entra estando de antemão favorecida pelos fatos biográficos, pelas convicções pessoais e pelas inclinações patológicas do julgador é qualquer outra coisa que não um julgamento justo. Se as alegações e provas de um dos lados têm sempre mais peso que as do outro não por causa do que dizem e do que contribuem para a compreensão da causa e para o fundamento do pedido, mas por causa apenas da pessoa ou do tipo de pessoa que as faz, a vitória final deste lado sobre o outro é apenas a ratificação de um ato arbitrário de preferência que se formou desde quando as peças chegaram ao fórum ou desde quando as partes entraram na sala de audiência, e não em vista dos fatos, das provas e das normas em questão. Isso é tudo menos justiça. Digo mais: As categorias que o ceticismo derrotista e a celebração eufórica nos convidam a abandonar são categorias sem as quais não podemos sequer conceber a pessoa que julga como um verdadeiro ser humano. Um juiz que simplesmente se considerasse impotente para julgar de outro modo que não aquele influenciado pelo seu passado, pelas suas crenças e valores e pelas suas preferências estaria assumindo em relação a si mesmo um determinismo psicossocial tamanho que comprometeria inclusive sua autoimagem como ser humano capaz de razão e de decisões autônomas. Querendo assumir-se como humano demais, estaria na verdade se contentando em ser humano de menos - um simples autômato, pré-programado psicossocialmente, com razão e vontade débeis demais para enfrentar suas próprias pré-disposições.No lugar dessas versões derrotista e eufórica, defendo uma modalidade de racionalismo crítico da imparcialidade, o qual assume que: i) a imparcialidade não é uma predisposição natural do ser humano, mas é, ao contrário, um ideal da razão (inalcançável apenas quando concebido na sua versão mais pura e completa, a qual é, por assim dizer, não-humana), do qual um ser humano só consegue se aproximar suficientemente numa atitude ativa de confronto de suas próprias pré-disposições, as quais sempre o inclinam para um dos lados da controvérsia; ii) a realização - repito, sempre aproximada, nunca total - desse ideal da razão depende não de uma abstração das diversas influências psico-sociais, e sim por uma tomada de consciência cada vez mais ampla de todas elas, capaz de submeter cada uma das crenças e propensões formadas durante o julgamento de uma causa específica a uma suspeita e vigilância racional que examine até que ponto tais crenças e propensões podem ser de fato sustentadas à luz dos fatos, provas e normas relevantes no caso e até que ponto não recebem o influxo extra das influências psico-sociais adversárias da imparcialidade; e iii) é impossível e desnecessário chegar a um estado de plena consciência e controle sobre todas as influências psico-sociais; basta, em lugar disso, submeter, como já disse, as crenças e propensões formadas durante o julgamento ao teste de até que ponto se sustentam apenas à luz dos fatos, provas e normas relevantes no caso, perguntando-se, por exemplo, se outra pessoa, com biografia, convicções, atitudes emocionais e preferências valorativas completamente diversas, mas que se visse diante daqueles mesmos fatos, provas e normas e os levasse suficientemente a sério formaria, também ela, as crenças e propensões que eu formei ao longo do caso; isso, é claro, de modo algum impede a influência astuta, disfarçada e sub-reptícia dos fatores psicossociais, mas, se a crença ou propensão em questão seria sustentável com base nos fatos, provas e normas relevantes, então se torna pouco relevante saber até que ponto não existem ainda nelas influências extrajudiciais, porque elas são, nesse caso, plenamente compatíveis com os elementos intrajudiciais, o que já é toda a imparcialidade que podemos exigir e de que precisamos para, sem ultrapassar nossa humanidade, também não renunciarmos a ela numa medida maior do que deveríamos.


Não é todo dia que temos acesso a uma análise tão profunda assim, de camarote.
Grato como sempre, André.

7 comentários:

Anônimo disse...

Obrigado pela homenagem, Yúdice. Já que achaste digno, vou colocar o textinho numa postagem em meu blog apenas para dar maior divulgação. Um abraço!

Anônimo disse...

Relendo o que escrevi, percebi uma gafe não intencional: não quis dizer que o seu blog não tenha suficiente divulgação (o que os números claramente provam que ele tem), e sim que publicaria no meu blog para ter maior divulgação entre as pessoas que me conhecem e me seguem. Sem mal entendidos! Abraço!

Yúdice Andrade disse...

Foi exatamente o que entendi, André. Aliás, mesmo que não fosse isso, um texto circulando em dois blogs aparece mais do que em apenas um, sejam quais forem. Relaxa, meu amigo.

Anônimo disse...

Sim, sem a "objetividade" do direito o mundo de exploração que nós conhecemos teria de possuir uma outra organização. Nesse sentido discordo completamente da opinião segundo a qual o direito existe para a defesa dos interesses dos mais fracos. Desde Moisés as leis são feitas para manter coesos e previsíveis grupos submetidos (os dez mandamentos são uma das mais claras defesas do status quo já documentada. Protejeu soberbamente a propriedade dos ricos e moralizou o desejo dos pobres). Quem não reconhece isso nunca parou para observar a história dos direito romano ou mesmo a sua própria sociedade. Antes de objetividade eu prefiro celeridade. Sociedades modernas em que há uma satisfação um pouco maior com os códigos jurídicos, são sociedades em que os julgamentos correm não atabalhoadamente, mas em tempo protocolar mínimo. Isso até mesmo os juízes respeitam. Enquanto aqui entre nós, fica-se ainda discutindo a metaobjetividade. Quanto jesuitismo, ainda!!!

Yúdice Andrade disse...

Reduzir as opiniões do André a "jesuitismo" só demonstra que você não o conhece nem um pouco, das 16h19. Vai por mim.

Anônimo disse...

Também recomendo um estudo um pouco mais detido dos dez mandamentos no contexto da tradição talmúdica. O Mishná e a Guemará fazem um comentário exaustivo de como cada um dos mandamentos se relaciona a inúmeras outras tradições hebraicas e referências na Torá. Os próprios mandamentos de não roubar e não cobiçar o que é do próximo são postos em relação com outras determinações como, por exemplo, que o próximo tenha adquirido seus bens de modo justo, que tenha se casado com sua esposa sem violência e que não esteja usando de sua riqueza para explorar os que dele dependem. Antes de aplicar categorias do mais vulgar marxismo a uma tradição multimilenar, é recomendável estar primeiro seguro do que essa tradição realmente diz e de como ela tem sido interpretada historicamente pelas fontes de maior autoridade.

Anônimo disse...

Ah, e completamente: E digo tudo isso sendo 100% ateu e frequentemente crítico da tradição hebraico-cristã. Mas é que tento ser um crítico judicioso, justo e responsável. Pelo menos, eu tento.