quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Tecnicamente correto, mas perigoso


A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu, na tarde de terça-feira (6/9), Habeas Corpus a um motorista acusado de dirigir embriagado e causar a morte de uma pessoa em acidente de trânsito. A decisão da Turma desclassificou a conduta imputada ao acusado de homicídio doloso (com intenção de matar) para homicídio culposo (sem intenção de matar) na direção de veículo, por entender que a responsabilização a título “doloso” pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime.

O julgamento do HC, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, foi retomado no dia 6 de setembro com o voto-vista do ministro Luiz Fux que, divergindo da relatora, foi acompanhado pelos demais ministros, no sentido de conceder a ordem. A Turma determinou a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba (SP), uma vez que, devido à classificação original do crime (homicídio doloso), o motorista havia sido pronunciado para julgamento pelo Tribunal do Júri daquela localidade.
A defesa alegava ser inequívoco que o homicídio perpetrado na direção de veículo automotor, em decorrência unicamente da embriaguez, configura crime culposo. Para os advogados, “o fato de o condutor estar sob o efeito de álcool ou de substância análoga não autoriza o reconhecimento do dolo, nem mesmo o eventual, mas, na verdade, a responsabilização deste se dará a título de culpa”.
Sustentava ainda a defesa que o acusado “não anuiu com o risco de ocorrência do resultado morte e nem o aceitou, não havendo que se falar em dolo eventual, mas, em última análise, imprudência ao conduzir seu veículo em suposto estado de embriaguez, agindo, assim, com culpa consciente”.
Ao expor seu voto, o ministro Fux afirmou que “o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual”. Conforme o entendimento do ministro, a embriaguez que conduz à responsabilização a título doloso refere-se àquela em que a pessoa tem como objetivo se encorajar e praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.
O ministro Luiz Fux afirmou que, tanto na decisão de primeiro grau quanto no acórdão da Corte paulista, não ficou demonstrado que o acusado teria ingerido bebidas alcoólicas com o objetivo de produzir o resultado morte. O ministro frisou, ainda, que a análise do caso não se confunde com o revolvimento de conjunto fático-probatório, mas sim de dar aos fatos apresentados uma qualificação jurídica diferente. Desse modo, ele votou pela concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao acusado para homicídio culposo na direção de veiculo automotor, previsto no artigo 302 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro). Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
HC 107.801

Trânsito e conduta dos profissionais de saúde: são os dois campos em que a celeuma em torno da distinção entre dolo eventual e culpa consciente pega fogo. Mas, para mim, a questão é bastante simples de equacionar. Como a pena para o homicídio culposo é pequena (máximo de 3 anos de detenção, segundo o art. 121, § 3º, do Código Penal, e de 4 anos de detenção, na forma do art. 302 do Código de Trânsito, em ambos os casos com possibilidade de majoração em um terço), com a natural substituição por medidas não privativas de liberdade, a sensação de impunidade é grande.
Dá para entender. Quem perdeu um ente querido não se conforma com a ideia de o culpado passar somente alguns meses prestando serviços à comunidade, p. ex. Eu mesmo não me conformaria. O problema é que como não se pode resolver o problema da lei branda, tenta-se um golpe: converter, a forceps, o que é culpa em dolo, para levar a uma punição, em tese, de 6 a 20 anos de reclusão ou até de 12 a 30, se crime qualificado.
Eu acredito que se uma nova lei redimensionar a reprimenda para o homicídio culposo, criando medidas mais consentâneos aos atuais parâmetros de responsabilidade e aos avanços tecnológicos, esse tour de force artificial em torno de um dolo que não é dolo deve arrefecer. A solução precisa ser legislativa. Mas até lá, os embates continuarão acontecendo casuisticamente, no foro. Só que este precedente do STF deve pesar, doravante.

12 comentários:

Anônimo disse...

Yúdice, não sou um especialista. Longe disso, você é que é. Por isso mesmo, recorro à sua explicação. Gostaria de entender como é possível conceber que alguém que ingeriu bebida alcoólica e, mesmo assim, tomou o volante de um carro para dirigir nas ruas não assumiu o risco de produzir um acidente, um de cujos possíveis desdobramentos sendo a morte de outro ser humano. Entendi o seu argumento de por que se quer converter, nas suas palavras, a forceps, um não dolo em dolo. Minha questão, contudo, não é essa. Trata-se de não entender as razões conceituais por que não cabe para o caso o dolo eventual. Não entendo, particularmente, como é possível dizer que a pessoa não assumiu o risco de produzir, inclusive e eventualmente, um homicídio. Agradeceria a sua explicação.

Anônimo disse...

É o tal do garantismo, André Coelho. Em nome dele se pode tudo nesse país, inclusive acabar com a vida de famílias ao dirigir bêbado por aí, mesmo sabendo dos riscos. A interpretação, mesmo que perigosa deve ser assim, obrigatoriamente. É como se o dolo fosse da bebida e não de quem bebeu. Sabe aquela história de "a culpa foi da bebida"? É isso.

Yúdice Andrade disse...

Caro André, como a indagação é feita por um filósofo, não me atreveria a respondê-la de chofre. Elaborarei um raciocínio mais cuidadoso, em uma futura postagem.
E embora você não seja especialista em Penal, é jurista e tem bom senso, então de antemão sabe que:
1. A ideia suscitada na postagem tem caráter técnico, não chegando ao ponto de enveredar pelas teorias de legitimação ou deslegitimação do Direito Penal, como o garantismo.
2. Especificamente, eu me reportei à teoria do dolo, que é tema atinente ao conceito de conduta e, por conseguinte, de fato típico.
3. Garantismo é uma teoria específica e não um conjunto de teorias ou uma "escola", como se poderia dizer. Logo, atribuir o rótulo de "garantismo" a esmo é coisa de quem não tem o mínimo preparo para este debate.
4. Os termos "garantismo" e "garantista" vêm sendo terrivelmente deturpados por pessoas que sequer sabem do que estão falando e que buscam compensar sua desinformação com ironias vazias, que se expressam p. ex. pelo uso do termo "tal", que é característico de menosprezo.
Responderei a você dentro em breve, com foco nas aulas que ministrarei em poucas semanas sobre este mesmo tema. Abraço.

Anônimo disse...

Yúdice, agradeço a consideração dedicada à minha pergunta. Fico, por um lado, meio frustrado de não saber logo a resposta porque não quiseste responder "de chofre", mas sei, por outro lado, que esperar valerá a pena porque certamente você preparará uma explicação cuidadosa e pontuada. Aliás, peço que nessa ocasião me trate mais ou menos na mesma posição de um dos seus alunos que lhe fizesse a mesma pergunta, porque, em matéria de domínio das categorias do Direito Penal, a minha situação não é lá muito melhor que a dele (e a dele, daqui a alguns meses, será certamente bem melhor que a minha).

Quanto à temática do garantismo, fiquei de início sem entender por que você tinha tocado nela na sua resposta, mas aí reli os comentários e vi que devia ser uma reação à irônica "sugestão de resposta" do "anônimo das 11:50" (como você costuma se referir aos seus comentadores incógnitos). Quanto a mim, sequer antevi qualquer relação entre o comentário que você fez sobre a aplicação dos conceitos de dolo e de culpa àquele caso concreto e as premissas da posição garantista.

Gabriel Parente disse...

Sempre reparo que, quem rotula algo como "garantista", deveras não sabe nem por onde se passa o garantismo, muito menos tem conhecimento da obra do Ferrajoli.

Pois bem. Eu concordo em dizer que há uma linha bastante tênue entre o dolo eventual e a culpa consciente. Penso que seja tão difícil identificar tal diferença quanto aquela no imperativo categórico de Kant, onde haveria distinção em agir por dever e agir conforme o dever. Mas arriscarei alguma opinião sobre o post. Eu lembro perfeitamente de uma aula de Direito Penal I onde tu mesmo indagaste tal dificuldade, chegando a citar (acho que um email ou sei lá), de forma bem humorada, que, grosseiramente, dolo eventual e culpa consciente se distinguiam quando o agente pensava, para ambas, respectivamente "dane-se" e "danou-se". Achei interessante e resolvi estudar mais - talvez tenha sido a partir daí que peguei o gosto pelo D. Penal.

Nos meus modestos estudos, aprendi que, no homicídio (doloso), o elemento subjetivo é o dolo, onde o agente atua com 'animus necandi'. no caso, diz-se que a infração é cometida por dolo direto ou, algumas vezes, é tido como eventual. Esse último surge quando o agente não se importa com o resultado que poderá ocorrer; na culpa consciente, ele prevê um possível resultado negativo, porém, confiando nas suas habilidades, presume que poderá evitá-lo. Ele não almeja a conduta ilícita, não podendo ser dito - na minha opinião - que ele não se importou com o resultado. Na cabeça deste agente, ele tem plena possibilidade de evitar qualquer dano a outrem. Nota-se que essa culpa consciente ocorre na mente do infrator, uma vez que ele confiava nas suas habilidades, confia sinceramente. O dolo eventual é retirado dos fatos em si, e não da mente infratora. Aqui, a possibilidade do resultado é antevista, entretanto o agente assume o risco. E eu não consigo vislumbrar que "assumir o risco" e "confiar nas próprias habilidades" sejam condutas idênticas.

Sendo assim, eu defendo, até então, que não se deve generalizar o pensamento de que o homicídio causado pela embriaguez no volante seja doloso; deveria haver um cuidado maior ao analisar os casos concretos, pois penso que eles são bem diferentes entre si, pois existem os arruaceiros que gastam a grana do pai em boates, pouco importando o resto do mundo e, em contrapartida, existem os pais de famílias, os quais, após uma semana inteira de trabalho, se reúnem num churrasco ou num happy hour com amigos apenas para confraternizar.

Abraço.

Anônimo disse...

Enquanto isso, aqui do lado: http://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-argentino/noticia/2011/09/torcedores-do-river-pegam-prisao-perpetua-por-assassinato-de-torcedor.html

Fora a Argentina ter legitimado o casamento gay antes de nós, a quantidade de oficiais militares presos por crimes durante a ditadura, mais uma punição de um crime que nos assola por motivos tão bestas quanto dirigir embriagado. Zaffaroni não deve dormir hoje por lá.

Yúdice Andrade disse...

André, minha preocupação é atender a tua consulta de modo mais realista, extrapolando a mera repetição dos conceitos que já foram enraizados na dogmática penal. Por isso pedi esse tempo. Seja como for, não existe a menor possibilidade de te tratar como a um indivíduo zerado no assunto, por conta da tua capacidade de raciocínio. Nem em coma chegarias a uma condição tão frágil.
No mais, o restante da resposta era mesmo apenas um protesto.

Gabriel, fico feliz de saber que algo que eu disse te fez tomar gosto pelo Direito Penal. Os estudos que fizeste valeram a pena, porque a tua abordagem foi bem enxuta.

Não, das 21h05, mestre Zaffaroni dormirá tranquilamente, porque é um homem sensato. Ele nunca defendeu a impunidade, muito menos a violência. Assim como eu, ele espera que os autores de crimes sejam punidos. E eu, particularmente, admito até punições severas. Minha questão nunca foi passar a mão na cabeça de ninguém, por isso que me aborreço tanto com os comentários toscos e desinformados que surgem aqui toda vez que publico textos sobre a temática penal, que é uma das razões de ser deste blog.

Anônimo disse...

Yúdice, fico, então, à espera da tua postagem especial, sobre dolo e culpa for dummies (ou for philosophers, o que, neste caso, está longe de ser tão diferente). Permita-me apenas por um instante dirigir minha fala ao Gabriel, que foi também meu aluno e cuja contribuição aqui na discussão foi, pelo menos quanto à clareza conceitual (da atualidade doutrinária e da precisão técnica, deixo para ti julgar), notável e muito instrutiva. Corresponde ao que estava nos manuais já à minha época de faculdade e ao que estudei e me lembro sobre o assunto. Mas o que me intriga é que, também à época em que estudei, os professores gostavam de um exemplo de trânsito em particular para ilustrar a noção de dolo eventual: o do motorista que, estando atrasado para um compromisso, dirige à noite, na chuva, em trajeto urbano, a 120 Km/h, porque a ele pouco importa que atropele ou não alguém, que provoque ou não um acidente - ele, para lembrar a expressão que o Gabriel trouxe à conversa - ligou o "dane-se" e saiu dirigindo na velocidade que bem entendia. Ora, assumamos que esse seja um bom exemplo de dolo eventual. Façamos agora o contraste entre esse exemplo e o do caso em questão: Um motorista que, tendo consumido bebida alcoólica e estando, em algum nível, embriagado, assume o volante do automóvel e resolve ir dirigindo até o seu destino, porque confia plenamente na sua capacidade de manobrar o veículo em segurança e não quer e nem assume, de modo algum, o risco de produzir um acidente. Ele tinha bebido e estava dirigindo, mas, em que pese ser isso ilegal, já fizera o mesmo várias vezes antes e nunca tivera problema, motivo por que tinha plena confiança na sua capacidade de evitar um acidente. Digamos, então, que este é um exemplo de culpa consciente, e não de dolo eventual. Por último, suponhamos agora que o motorista do primeiro exemplo, na sua defesa, redescreva a sua conduta como tendo sido a seguinte: Ele estava muito atrasado e dirigiu muito acima da velocidade permitida, mas, em que pese ser isso ilegal, já fizera o mesmo várias vezes e nunca tivera problema, motivo por que tinha plena confiança na sua capacidade de evitar um acidente. A questão passa a ser: O que ainda distingue os dois casos? Dizer que é aceitável confiar nas próprias capacidades no caso da embriaguez, mas não é aceitável o mesmo no caso do excesso de velocidade se baseia em que? (cont.)

Anônimo disse...

Digo: Em que ainda se baseia a distinção dos dois casos, a não ser na suposição de que, objetivamente, 40 a 60Km/h acima da velocidade permitida cria um risco tal em que ninguém pode se dizer realmente capaz de evitar qualquer acidente, enquanto que , por outro lado, alguns copos de chope não necessariamente criam um risco que foge ao controle do motorista da mesma maneira? E, se for essa a suposição de fundo, então já não teria sido ela afastada pelas pesquisas científicas que embasaram a proibição legal de dirigir embriagado, as quais apontam que, independentemente do metabolismo da pessoa e da sua habilidade como motorista, mesmo algumas poucas doses de bebida alcoólica afetam a acuidade de seus reflexos, a amplitude de sua percepção e a rapidez de sua reação? E, se tais pesquisas estiverem certas, então não deveríamos incluir também a situação de dirigir embriagado entre aquelas que criam um risco que foge ao controle do motorista, não dependendo mais das suas respectivas habilidades, mas, ao contrário, nublando seu juízo inclusive sobre essas mesmas capacidades? E, depois das numerosas campanhas alertando para esses fatos científicos, não se deveria considerar que mesmo o cidadão medianamente informado deveria saber que, se, estando embriagando, assume o volante do carro, não está em condições de avaliar claramente quais são suas reais condições e está diminuído em suas habilidades de motorista, de modo que sabe, portanto, que está assumindo o risco de causar um acidente e até, eventualmente, um homicídio? Porque, se, depois de todas essas considerações, ainda assim se considerar que era aceitável que o sujeito cresse em sua plena capacidade de evitar qualquer acidente e que, se ele não quis diretamente matar, tampouco aceitou de modo consciente o risco de produzir esse resultado, então, nesse caso, eu já não saberia como sustentar que não se passou também o mesmo com o motorista que dirigia à alta velocidade, o qual poderia ainda alegar que, ao contrário do seu colega embriagado, estava no pleno gozo de suas capacidades e habilidades, tendo até mais motivos que ele para acreditar que poderia evitar qualquer fatalidade. Falta-me realmente um fundamento claro para distinguir entre a conduta do primeiro e do segundo motorista. Creio que isso deixou mais claro para o Yúdice qual é exatamente o núcleo da minha dúvida.

Antes de encerrar, ainda dois comentários sobre a contribuição do Gabriel. Gostaria que ele esclarecesse por que é assim tão difícil distinguir entre conduta conforme o dever (legalidade) e conduta por dever (moralidade) na teoria de Kant. A distinção me parece - desculpe-me o Yúdice, mas, tenho que dizer, mesmo com todo o respeito, contrariamente a esta distinção do Direito Penal - absolutamente cristalina e a diferença não me parece em nada sutil entre as duas coisas. Por último, acho que a distinção dos casos de motoristas embriagados, quando pensada em termos de "arruaceiros" e "pais de família", é não apenas extremamente simplificada e estereotipada, como é também facilmente suscetível de contaminar o juízo jurídico sobre a conduta dos agentes com juízos éticos sobre o caráter e os modos de vida dos agentes, o que nunca é desejável num Estado de Direito.

Abraços aos dois!

Gabriel Parente disse...

Pelo visto, me meti numa tremenda enrascada, mas o que vale é a intenção - e também, se tem algo que me deixa contente é o aprendizado de temas que me fascinam. Perdoem desde já os eventuais equívocos, mas vamos lá.

André, suscitei a comparação entre dolo e culpa com a teoria moral de Kant porque, na minha opinião, a diferença entre agir por dever e conforme o dever encontra-se, subjetivamente, na cabeça do indivíduo. Por exemplo, determinada pessoa, na iminência de cometer um homicídio, não o faz. Agora, podemos dizer que ela não comete o delito por dois motivos: simplesmente porque matar alguém é (moralmente) errado; os ensinamentos de vida e a noção de certo e errado desta pessoa fizeram com que ela tomasse tal decisão. Foi uma atitude tomada em favor dela mesma. Em contrapartida, na mesma hipótese, a pessoa opta pelo não cometimento do homicídio porque ele sabe que tal conduta é - além de reprovável socialmente - um ilícito penal, sujeitando a pessoa a uma pena de reclusão. Portanto, neste último caso, eu acredito que a pessoa age da maneira correta porque tem medo de uma sanção penal futura; ela está legalmente correta, mas os motivos os quais levaram-na a este resultado se afastam da moral. O que pretendo alegar: é praticamente impossível um terceiro determinar se a minha conduta se deu por dever ou conforme o dever, posto que apenas eu sei o que de fato ocorreu. E, por conseguinte, imagino que seja, tal qual no caso acima, difícil um estranho afirmar com absoluta certeza se a conduta de um indivíduo acusado da prática de homicídio, se deu porque ele assumiu o risco do ilícito ou se ele, em momento algum almejou o resultado, pois confiou nas suas habilidades de evitar qualquer sinistro. Portanto, a comparação não se dá pela essência do imperativo ou da distinção dolo/culpa. Foi apenas uma analogia à subjetividade de ambos os pontos.

Em relação a tua última consideração, admito que os esteriótipos foram propositais, pois é assim que a sociedade enxerga, tendo em vista o modo como os veículos de informações colocam a ela, os acusados dessa modalidade de crime. É quase impossível distinguir, através da notícia, quais foram os reais motivos que causaram o acidente, pois para os repórteres, sempre os motoristas estão, supostamente, embriagados. Alguém - leve ou totalmente - embriagado não excederá sempre o limite de velocidade tão-somente pelo seu estado. Alguém sóbrio pode, tranqüilamente, dirigir a 150 Km/h. Acredito que assumir o risco de causar um acidente não esteja ligado apenas à embriaguez, mas a todos os outros fatores externos desfavoráveis a uma condução segura, onde o motorista sabe que, em função de tais condições, o risco de acidente é alto, pouco importando o resultado para ele.

Anônimo disse...

Certo, Gabriel, acho que entendi.

Bom, quanto à distinção kantiana, gostaria de destacar em primeiro lugar que ela é absolutamente indispensável. Se não distinguirmos entre quem agiu conforme o dever apenas por acaso ou por interesse próprio e quem agiu conforme o dever por respeito ao dever, não poderemos sequer começar a formular um conceito adequado do que é uma ação moral. Em segundo lugar, concordo que, sendo o principal diferencial a motivação do agente, esta se encontra oculta à perscrutação de um terceiro, sendo, para este, impossível saber com certeza quando alguém agiu legalmente ou moralmente. Na verdade, Kant vai além: No começo da Segunda Seção da Fundamentação à Metafísica dos Costumes (doravante, FMC), ele diz explicitamente que, mesmo que o agente esteja examinando apenas a intenção de sua própria ação, ele jamais poderá estar certo de que aquela se dirige inteiramente ao dever, pois pode sempre ser o caso de que algum secreto impulso egoísta, oculto em seu coração, se disfarce de respeito ao dever apenas para que o agente se sinta moralmente mais honesto e autônomo. Logo, no que se refere aos casos concretos, Kant tem até mais suspeitas que você, Gabriel, de que é quase impossível distinguir entre conduta legal e conduta moral. Ocorre que, diferentemente da distinção entre dolo eventual e culpa consciente (a qual, além de difícil de traçar, tem a pretensão de ser aplicada a casos reais e de gerar inclusive consequências para o julgamento e eventual condenação dos agentes num processo penal), a distinção entre legalidade e moralidade da conduta serve para fins conceituais: aplica-se apenas a casos ideais, como aqueles sugeridos por Kant na Primeira Seção da FMC, em que as circunstâncias são tão extremas e tão exigentes, que nos levam a pensar que, naqueles casos, apenas o dever pode ter sido a verdadeira motivação do agente; e se presta a confirmar a posição de que a única coisa absolutamente boa no mundo é uma boa vontade (ou seja, a vontade de agir em conformidade com a lei moral por simples respeito à lei moral) e de que, ao julgarmos sobre a moralidade de uma ação, devemos atentar antes para a máxima (que descreve a intenção ou propósito com que a ação é feita) que a inspirou, e não apenas à ação em si, o que, como se sabe, terá consequências diretas para o modo de formulação do imperativo categórico. Pois bem, em resumo, a distinção kantiana, embora dependa de fato de um difícil exame da intenção do agente, se presta para propósitos conceituais na construção das noções básicas da filosofia moral. Kant jamais recomendaria a aplicação de uma distinção desse tipo no campo do direito. Para Kant, o direito, diferentemente da moral, não cobra intenções, mas apenas ações, sendo para ele importante apenas a legalidade ou ilegalidade da conduta. Quando, como no Direito Penal, a intenção se torna relevante, é, segundo Kant, apenas para a aplicação da sanção e se deve basear não na impossível tarefa de perscrutação da intenção do agente, e sim na verificação do que Kant chama de "intenção objetiva": algum tipo de sinal exterior ao qual o direito atribui o condão de ser uma representação externa, objetiva e verificável da conduta. O direito, em Kant, se orienta apenas por sinais exteriores (a conduta e, no máximo, alguma representação objetiva da intenção), e nunca por elementos puramente subjetivos. A distinção entre legalidade e moralidade da conduta, repito, se presta para a moral, não para o direito, e mesmo lá tem propósitos apenas conceituais, funcionando como "tipos ideais" de conduta, e não como critério a ser imediatamente aplicado à realidade objetiva.

Quanto às questões jurídicas do caso concreto que motivou toda essa discussão, já formulei qual é a minha dúvida e agora me ponho à espera da resposta do Yúdice.

Abraços aos dois!

Anônimo disse...

Yúdice, tenho andado bem ocupado. Será que a resposta às minhas questões lá em cima já saíram e eu nem vi? Se for isso, indique-me em qual postagem respondeste e aceita desde já as minhas desculpas.