Relembremos o caso en passant: em novembro de 2003, Gabriela Oliveira Cordeiro, de Teresópolis (RJ), então com 18 anos, teve sua privacidade devassada pela imprensa ao pedir autorização judicial para abortar, em face do diagnóstico de anencefalia. O padre Luiz Carlos Lodi da Silva, presidente do Comitê Pró-Vida de Anápolis (GO), impetrou o habeas corpus e conseguiu sustar a realização do abortamento. Nesse meio tempo, Gabriela e seu marido, pressionados por todos os lados, desistiram do abortamento. A menina nasceu, foi batizada de Maria Vida e morreu sete minutos depois.
O troco veio na forma de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n. 54) que a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde propôs em 17.6.2004. O processo está parado no Supremo Tribunal Federal, sem previsão de julgamento. Especula-se, contudo, em face de manifestações de voto feitas de forma oficial ou extra-oficial, que a Corte Suprema, por pequena maioria, vai autorizar o abortamento nos casos em que o feto possua doença que inviabilize a sua vida, comprovadamente.
Não entrarei neste mérito. Quero noticiar outro fato, que li agora na Folha:
O Hospital São Joaquim, gerenciado pela Unimed de Franca (440 km a norte de São Paulo), realizou nesta quarta-feira cirurgia para antecipar em dois meses o parto de um bebê anencéfalo (sem cérebro).
A cesárea foi permitida pela Justiça local há cerca de uma semana e meia. Segundo o hospital, o bebê, uma menina, morreu minutos após o nascimento. A mãe deve receber alta amanhã.
O pai da criança disse à Folha apenas que a família tem sido alvo de discriminação por parte da sociedade. Na semana passada, o contador Clóvis Alberto de Castro, 40, que não tem ligação alguma com a família, entrou com um pedido de habeas corpus na Justiça para impedir a interrupção da gravidez sob a alegação de que a medida se constitui um crime contra a vida - a ação não foi julgada.
Luiz Carlos Lodi da Silva, morando em Anápolis, não sabia que na distante Teresópolis morava uma certa Gabriela. Quando soube, sem legitimidade alguma, atribuiu-se o direito de decidir por ela e por seu marido sobre a continuidade da gestação. E o poder que ele mesmo se atribuiu surtiu efeito, pois efetivamente interferiu na decisão do casal.
Agora, um tal de Clóvis Alberto de Castro, sem qualquer vínculo com a família atingida por tão grande sofrimento, inspirando-se no precedente, também impetrou habeas corpus para decidir pelos outros. Claro, é cômodo: eu imponho a minha moralidade sobre gente que sequer conheço, protegido pela certeza de que não sofrerei as consequências de meus atos. Os desconhecidos é que sofrerão.
Li muito do que Lodi da Silva escreveu e, sinceramente, não respeito a sua cruzada. Considero-o um padre à extrema direita, movido pelo pior de todos os sectarismos: aquele que usa o nome de Deus para impor verdades a quem não é obrigado a comungar de sua miopia. Para mim, é um homem perigoso, especialmente por sua capacidade de transformar contadores em operadores do Direito (com todo o demérito que esta expressão merece).
Amanhã, qualquer dona de casa que saiba de uma vizinha querendo abortar ou antecipar o parto de um feto anencéfalo irá às barras de um tribunal, para resolver um assunto que não lhe diz respeito. E o habeas corpus terá que tramitar.
Enfurecido, eu me pergunto: haverá alguma razão legítima para que pessoas totalmente estranhas aos interessados possam impetrar habeas corpus?
Estamos diante de uma crise, sim, porque o ordenamento jurídico precisará redefinir, com a máxima urgência, o jus postulandi nas hipóteses de habeas corpus. Senão, amanhã, uma pessoa do outro lado do mundo poderá impedir-me de agir conforme a minha própria vontade, em consonância com as leis do meu país. Isto subverte completamente, aniquila mesmo, a legitimidade processual, que é um dos mais importantes cânones do Direito.
Ao meu desprezo por extremistas religiosos soma-se, agora, a minha convicção de que habeas corpus somente poderiam ser admitidos, pelo Judiciário, quando estivesse provado que os impetrantes agem no interesse dos pacientes.
Do contrário, vai cuidar da tua vida, marginal!Chegamos ao ponto em que eu queria, que batizo de crise do habeas corpus. Este remédio constitucional tem, como uma de suas principais características, poder ser impetrado por qualquer pessoa do povo, sem a necessidade de advogado. Trata-se de uma medida democrática, para facilitar o acesso à justiça, vinda de épocas em que o cidadão tinha muito maiores dificuldades de reagir aos abusos de poder do Estado. Ocorre que, com base nisso, os moralistas de plantão agora se acham no direito de intervir nas vidas alheias.
4 comentários:
Prof. Yúdice, realmente é caso de revisão com máxima urgência do nosso ordenamento jurídico! Sabemos que esse habeas corpus tem possibilidade jurídica, mas a legitimidade das partes e o interesse processual certamente deverão ser discutidos.
Excelente consideração, mestre! Está na hora deste País - e principalmente a Justiça deste País - assumir seu papel de Estado laico. Não é possível que crenças insustentáveis legislem sobre os direitos dos cidadãos. As igrejas mostram seu lado cruel e anti-religioso ao impedirem o aborto de fetos anencéfalos. dizem defender tanto a vida mas nunca tiveram o menor pudor em queimar pessoas vivas, em apoiar chacinas dos conquistadores e outras barbaridades semelhantes. Depois, corremos o risco de, ao garantir o nascimento de fetos anencéfalos, criarmos criaturas como George Bush, com o perdão pelo humor macabro.
Outra questão importante é o fator da atividade cerebral como forma determinante de vida. Se não há cérebro, logicamente não haverá atividade cerebral.
Gostaria aqui de manifestar minha mais absoluta concordância com os termos deste seu maravilhoso post. Vc se superou, Yúdice.
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