Acabou de acontecer na cidade de Altamira. Um menino de dois anos de idade foi internado em estado grave, com anemia crônica, diarreia e desnutrição. Precisava de uma transfusão de sangue, mas o pai se opôs, por ser testemunha de Jeová. A mãe da criança e outros familiares intervieram, pediram o apoio do Conselho Tutelar e o caso acabou na Vara da Infância e Juventude daquela cidade. O juiz autorizou a transfusão, que foi realizada e, agora, a criança passa bem. Ficará duas semanas em observação.
O conflito entre os objetivos de tratamento de saúde e as convicções desse segmento religioso é um tema altamente debatido no Direito. Há documentos em profusão a respeito mas, desconfio, boa parte deles possui um cunho mais religioso do que propriamente jurídico. De um lado, temos o direito à vida e, de outro, a liberdade de crença. A balança pende em favor do primeiro, mas as implicações disso não são digeridas por quem professa religiões restritivas das ações de seus fieis.
Por coincidência, ontem chegaram a minhas mãos duas publicações, que a Comissão de Ligação com Hospitais para as Testemunhas de Jeová estão divulgando. São dois pareceres, o primeiro subscrito pelo famoso processualista Dr. Nelson Nery Júnior, sob o título "Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes testemunhas de Jeová como exercício harmônico de direitos fundamentais". Trata-se de uma consulta encomendada pela Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová, que termina em 33 quesitos, todos respondidos exatamente de acordo com os interesses da consulente.
O segundo parecer é subscrito pelo Prof. Dr. Álvaro Villaça Azevedo, contratado por aquela mesma instituição. O documento, intitulado "Autonomia do paciente e direito de escolha de tratamento médico sem transfusão de sangue mediante os atuais preceitos civis e constitucionais brasileiros", aborda um aspecto que o primeiro omite: o que fazer em relação aos filhos dos religiosos. Suas conclusões:
30. Têm os pais o direito fundamental1 de tomar as decisões médicas em favor de seus filhos menores, mesmo quando isso envolve escolher um tratamento médico em detrimento de outro?2
Resposta: Os pais têm direito fundamental de tomar as decisões médicas relativamente a seus filhos menores, mesmo quando for o caso de escolher um tratamento médico em substituição a outro.
Isso acontece, principalmente, em decorrência do poder familiar que abrange a escolha de tratamento de saúde por parte dos pais e cuidados de saúde. Além disso, os pais são representantes legais de seus filhos menores.3
31. O exercício pelos pais da escolha de tratamento médico para a criança sob sua guarda e responsabilidade, diferentemente de um padrão médico4, caracteriza abandono, maus tratos ou extravio, à luz do ECA e demais disposições normativas?
Resposta: O exercício pelos pais da escolha de tratamento médico para a criança sob sua guarda e responsabilidade, diferentemente de um padrão médico, não caracteriza abandono, maus tratos ou extravio, à luz do ECA e demais disposições normativas.
Quando os pais exercem esse direito de escolha, ou expressam a própria vontade do menor com discernimento dos fatos, estão procurando o melhor para seus filhos, exercendo, no lugar deles, os direitos reconhecidos pela legislação em geral, em favor desses menores, nos moldes de sua dignidade, respeitando os seus direitos de personalidade e sua liberdade de crença professada por sua família.5
Além disso, o pai que leva o filho ao hospital e acompanha de perto os procedimentos e tratamentos a que será submetido não o está abandonando, mas tão somente, conforme dito, cumprindo seus deveres/direitos inerentes ao poder familiar nos melhores interesses do direito à vida e à saúde de seu filho.
O caráter tendencioso do parecer fica ainda mais evidente nas duas perguntas seguintes, quando o autor afirma que o menor de idade, que seja maduro e tenha discernimento para tomar decisões, compreendendo suas consequências, deve ter respeitada sua vontade de receber tratamento médico sem utilização de sangue alogênico, aplicando-se o "consentimento informado". Mas em momento algum há menção, por mais breve que seja, do direito desse mesmo menor de optar por receber a transfusão, caso queira.
Eu defendo a autonomia da vontade. Penso que cada pessoa deve decidir o que é melhor para si, se isso não afeta direitos de terceiros. Admito, inclusive, o direito de morrer. Por conseguinte, respeito a decisão da testemunha de Jeová que rejeite tratamento médico de qualquer tipo. Respeito a decisão de qualquer pessoa, quanto a rejeitar tratamento por qualquer motivo, em relação a si mesmo. A decisão nunca pode ser tomada em relação a terceiros, inclusive filhos. Por isso, devem os médicos e as autoridades encarregadas de proteger crianças e adolescentes, como conselheiros tutelares, intervir no caso, para fazer prevalecer outro mandamento constitucional: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (art. 227).
Eu sei que quem pensa diferente possui uma resposta veemente para tudo, na ponta da língua. Mas é minha opinião que religião alguma deve expor a perigo a segurança de uma pessoa, a menos que esta seja uma decisão consciente dela mesma. E quanto a isso vale mais a realidade do que a formalidade: pais representam seus filhos, mas qual seria realmente a preferência da criança? Continuar vivendo, talvez?
Notas:
1 Observe a retórica: o parecerista faz questão de destacar o caráter de "fundamental" do direito dos pais de decidir em relação a seus filhos.
2 A pergunta desvia para uma questão de escolher entre alternativas. Em momento algum se evidencia o que realmente importa: escolher um tratamento que represente riscos para o paciente ou, ao menos, prolongue o tratamento, impondo-lhe sofrimentos evitáveis.
3 Como se vê, mesmo na resposta, a questão é toda tratada em termos de autoridade e legitimidade. Nada se considera em termos de riscos.
4 De novo, a retórica. A pergunta faz parecer que os médicos estabelecem padrões por conveniência, e não porque seja o melhor para o paciente, de acordo com o atual estado de desenvolvimento científico.
5 A resposta é meramente idealista e tenta nos convencer de que a vontade da criança está sendo respeitada. Sintomático, entretanto, a menção à crença professada pela família. Afinal, do ponto de vista do desenvolvimento psicológico e mesmo neurológico, aos dois, quatro, seis anos, a criança realmente professa uma religião?
5 comentários:
É inadmissível que uma criança fique seja exposta ao risco da morte somente pelo fato do pai desta ser de uma determinada religião.
Será que o Deus dessas pessoas -que não vejo outra maneira de classificar além de extremistas- gostaria de ver crianças morrendo por não poder receber uma transfusão sanguínea?
Felizmente o pai não pode por a criança em risco, mas o que aconteceria se a mãe da criança desejasse que o filho também esperasse a providência divina para melhorar ao invés de receber a bendita transfusão?
Aconteceria que haveria uma dificuldade bem maior dos médicos, e mesmo de terceiros, em conseguir socorro para a criança. E teríamos mais um dos muitos casos em que eclodiu uma verdadeira guerra entre a equipe médica, de um lado, e a família, de outro, terminando nas mãos de um juiz.
Neste caso, pelo menos, a preocupação da mãe contribuiu para um socorro mais rápido.
Gostei muito da postagem, agradeço que tenha dividido conosco o texto dos pareceres jurídicos, que eu não conhecia, e concordo inteiramente com a sua posição. Autonomia da vontade deve ser soberana apenas quando as consequências não atingem outros envolvidos. Mas, por respeito à profundidade da discussão, quero fazer algumas observações: ser verdadeiramente religioso é ter uma visão de mundo toda imersa na fé; para uma visão assim, a violação de um preceito divino é um pecado mortal, que afeta a possibilidade de salvação do indivíduo; a vida terrena é apenas um grão de areia comparada ao deserto da eternidade; nada acontece por acaso, e sim pela Providência Divina, que só coloca os pais num dilema desse tipo para testar a sua fé; a Abraão ele pediu que sacrificasse o filho Isaque por suas próprias mãos, apenas para que, no momento fatal, um Anjo impedisse o assassinato e premiasse a fé do Patriarca, que havia sido atestada de forma definitiva; assim, na lógica do crente, Deus está testando, quanto a um de seus entes mais queridos, no que ele acredita mais: na força da religião, da fé e de Deus, ou na medicina dos homens ignorantes e pecadores; a isso se acrescente que ele "sabe" que, se permitir a transfusão, seu filho jamais alcançará a vida eterna e que, se o filho tivesse discernimento para escolher, de um ponto de vista mundano, escolheria viver, mas, se pudesse avaliar a situação de um ponto de vista espiritual, escolheria ele próprio ter o risco de morte; dizer que, em casos assim, a visão do Estado laico, que defende a vida, deve prevalecer sobre a visão religiosa do pai é dizer que sua crença é falsa, ou no mínimo suspeita, pois, se se considerasse a hipótese de que fosse verdadeira, isto é, de que a transfusão pudesse realmente privar o indivíduo da vida eterna, ninguém em sã consciência quereria isso para a criança, muito menos imporia tal destino a ela contra a vontade de seu pai. Há ainda uma última dificuldade a considerar: Na Antígona, Creonte, ao decidir que Polinice não poderá ter um funeral, indiretamente o condena, nos termos da religião grega, a ser uma alma errante, presa à terra por causa do corpo inumado, incapaz de alcançar a mansão dos mortos; isso, dizem muitos, é ultrapassar o que o Estado pode legislar e fazer, pois o Estado tem jurisdição apenas sobre as coisas desse mundo. Ora, não seria difícil aplicar o mesmo argumento a esse caso e ver no Estado que força a transfusão um novo Creonte que, em nome da visão laica e mundana da pólis, decide o que lhe parece justo ignorando as possíveis consequências e repercussões dessas decisões para a vida espiritual dos envolvidos, particularmente de seu futuro pós-morte. Tudo isso, relembro, está sendo escrito por um ateu que concorda com você. Mas acho importante que seja trazido à discussão. Abraços!
Bem, para quem distorce as Sagradas Escrituras a fim de parecer com que elas digam exatamente o que eles (pensam que) querem ouvir, distorcer um parecer jurídico é o menor dos males... E que o Santo Anjo do Senhor nos proteja a todos...
André, sempre agradeço por tua capacidade de enriquecer as questões. Para teres uma ideia, eu mesmo tive que adequar minhas convicções às tuas considerações. O texto da postagem reconhece o poder da fé religiosa, mas o menciona tangencialmente, pois o destaque é quanto à conclusão. Mas depois de ler a tua ressalva, ficou mais claro para mim o desespero com que o crente precisa salvar a alma de seu filho. Então como recriminá-los? Mas nós o fazemos e eu, pelo menos, continuarei firme na posição defendida.
Deveras, das 16h32. Torçamos para que essa proteção não nos falte.
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