quarta-feira, 27 de julho de 2011

Tigre, tigre

Dia desses topei na Internet, casualmente, com uma nota sobre o livro Tigre, tigre (no Brasil, editado pela Rocco), no qual a americana Margaux Fragoso narra a própria experiência de 15 anos de abuso sexual. Minha atenção foi imediatamente despertada e não tardei a comprar o livro. Agora que acabei de lê-lo, recomendo-o para todos aqueles que sentem a necessidade de entender melhor como age um pedófilo, inclusive para proteger os próprios filhos.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que o hoje banalizado conceito de pedofilia precisa ser posto em termos. Até onde vejo — particularmente em minha experiência profissional, que me coloca diante de inúmeras ações penais envolvendo crimes sexuais contra crianças —, boa parte dessas agressões (quiçá a maioria, mas não quero generalizar, porque isso implicaria em ignorar variáveis de tempo, espaço, temperatura e pressão) acontece porque a criança está à mercê do agressor: é vulnerável e não possui, no momento, quem a defenda. São os delitos de ocasião, muitas vezes precipitado pelo consumo de álcool, mas sem dúvida influenciados, também, por uma mentalidade largamente disseminada, que coloca a mulher num papel de satisfação obrigatória dos desejos do homem, notadamente no campo sexual.
Um estuprador desse tipo não é, entretanto, necessariamente um pedófilo. Refiro-me à pedofilia como uma modalidade de parafilia, que exige uma compreensão mais técnica. Dito isto, é preciso destacar que o drama retratado em Tigre, tigre é muito diferente dos casos de violência sexual que encontramos nos noticiários, cotidianamente. O agressor ali desvelado, Peter Curren, é um pedófilo autêntico, isto é, um homem que efetivamente sente desejo sexual por crianças (oito anos é a "idade mais bonita da vida de uma menina"), em prejuízo de seus relacionamentos com mulheres adultas, embora no começo de sua relação com Margaux ele convivesse maritalmente com uma mulher. Com o passar dos anos, porém, a relação com a namorada se deteriora e ele passa a viver exclusivamente para a menina, àquela altura também envolvida com ele até o âmago.
Peter não é um abusador serial, que caça vítimas na rua. Está convencido de que entre ele e Margaux existe um amor verdadeiro e que um dia estarão casados. Mas sua mente perturbada parece pregar-lhe uma peça pois, à medida que a menina cresce, é perceptível a sua saudade de quando era uma criança. Provam-no as fotos que mantém na parede, de Margaux e outras crianças aos 7, 8 anos, mas nenhuma dela já adolescente. A essa altura, contudo, ele mesmo já está dominado por um relacionamento visceral, doentio, que envolve crises de ciúme com direito a agressões físicas. Peter estapeia Margaux várias vezes e ela sempre aceita isso. Fiquei impressionado com a passagem em que ela, referindo-se a um tapa, diz ter concluído que, cada vez mais, Peter parecia agir como se ela fosse sua esposa. Um reflexo do casamento trágico de seus pais.
Os pais de Margaux têm um enorme destaque na narrativa, porque sem dúvida são em parte responsáveis pelo drama. Este é um dos aspectos mais importantes do livro: mostrar como uma família desestruturada produz a criança perfeita para ser seduzida por um predador.
A mãe de Margaux e sua irmã foram violentadas quando tinham 6 e 8 anos, respectivamente. A irmã, mais velha, foi estuprada e, nela, o agressor introduziu os dedos na vagina até que sangrasse. Este episódio é apontado como a gênese do transtorno mental que ela desenvolverá mais tarde. Não nos é dado um diagnóstico, mas a doença é séria o bastante para que o governo a considere como não funcional, aposentando-a por invalidez e dando, todos os meses, um cheque para ela e outro para sua filha. Sua atitude é de negação e isso explicará como ela simplesmente não percebeu o que Peter fazia com Margaux, embora mãe e filha estivessem dentro da casa dele. Outrossim, sua submissão a um marido que a desprezava e agredia também contribuiu para que a menina não aprendesse a se defender. A reprodução do abuso sexual nas gerações seguintes é uma das preocupações que o livro pretende destacar.
Por sua vez, o pai de Margaux sofre de narcisismo exacerbado, oriundo de uma violenta falta de autoestima. Ele passa o tempo todo glorificando as muitas virtudes que acredita possuir e menosprezando as pessoas cujo pecado, no fundo, é não serem como ele mesmo. Mas isso passando ao largo de ser um assalariado de baixa instrução e alcoólatra (ainda que não nos níveis mais graves do alcoolismo). Quando a narrativa começa, uma Margaux de 7 anos já percebe que o pai nunca demonstra carinho pela mãe e sequer a chama pelo nome. Em seus arroubos de fúria quase diários, o pai convence Margaux de que ela é a culpada pela doença mental da mãe e aniquila toda a sua autoestima, fragilidade que será potencializada pelos anos de bullying que a garota sofre na escola.
Mas o cerne da questão é mesmo Peter Curren. Ele tem 51 anos quando conhece Margaux, de 7, o que dispara em nós imediata aversão pelo sujeito. No entanto, é preciso examiná-lo com calma. Em sua miserável trajetória de vida, estão os elementos que explicam a sua condição de abusador. Fruto de um lar destruído, viveu pelas ruas e chegou a se prostituir, permitindo-se sodomizar aos 10 anos. Curiosamente, sua mente registrou o episódio como um estupro, do qual ele se considerava vítima. Assim como também era vítima das duas dançarinas que o obrigaram a fazer sexo oral nelas, gerando um trauma nunca superado. Ele faz sexo oral em Margaux mas, quando ela se torna adolescente e muda de cheiro, não consegue mais.
Em seus últimos cinco anos de vida, Peter é um homem doente, pobre (mora de favor na casa da ex-namorada), desdentado e completamente desesperançado, pois sabe que Margaux cresceu e está saindo com jovens de sua idade, o que ele não tenta impedir senão através de muxoxos. É uma criatura triste, patética. Nem por isso, todavia, nos apiedamos dele, já que seu histórico depõe contra: consta que ele teria abusado das filhas, razão pela qual sua esposa se separou dele e o impediu de ter contato com as meninas. No período de dois anos que esteve separado de Margaux, foi preso e respondeu a um processo por "conduta imprópria" com uma de suas filhas adotivas. Durante um certo tempo, antes disso, ele adotou algumas meninas, sempre meninas, na mais bela idade de suas vidas.
Peter Curren se matou aos 66 anos, pulando de um penhasco, o que nos é revelado logo no primeiro parágrafo do livro. Não se trata de contar o final da história, mas talvez de um estímulo para que não desistamos da leitura antes do fim. Quando ele morre, deixando para Margaux seu único bem (um carro velho), ela, agora adulta e namorando um rapaz de sua idade, sente-se vazia. Afinal, como ela mesma diz, após tantos anos de convívio com Peter, não sabia mais onde ele terminava e ela começava. Muito tempo se passou até que ela superasse (quanto possível superar) e chegasse ao estágio de se casar com um bom homem e se tornar mãe. E ao se tornar mãe, desejando romper o ciclo de abusos, silêncios e sofrimentos, decidiu contar sua história.

Em tempo:
Encontrei no blog Mulher 7x7, vinculado à revista Época, uma entrevista com Margaux Fragoso. É longa, mas recomendo enfaticamente que seja lida na íntegra, porque permite uma compreensão melhor do livro, mostra os preconceitos que a autora sofreu após se expor e dá novas informações úteis a nós, que somos pais.

3 comentários:

Scylla Lage Neto disse...

Yúdice, parabéns pela postagem muito interessante e intrigante sobre um tema tão controverso que é a pedofilia.
Do ponto de vista médico, a pedofilia é praticamente intratável, sendo o próprio diagnóstico difícil, pelo menos enquanto a patologia está incipiente.
Aliás, aí reside o problema maior.
O pedófilo, geralmente alguém que sofreu abuso, é capaz de permanecer inerte durante toda uma vida, convivendo com um "monstro" latente, domando-o e contendo-o, o que por si só parece já lhe dar boas doses de mórbido prazer.
Seria uma espécie de "pedofilia virtual", que pode se transformar facilmente em real quando a oportunidade se revela, em geral numa falha de "vigilância" familiar (a vulnerabilidade da vítima, como você mencionou).
Outro aspecto que me parece interessante é a busca instintiva do pedófilo por profissões ligadas à infância, como a de educador infantil, pediatra, padre, pastor, funcionário de creches e tantas outras.
Vou checar o livro, sem dúvida.
Um grande abraço.

Yúdice Andrade disse...

Graças a Deus, Scylla! Eu estranhei quando ninguém escreveu acerca desta postagem. Agradeço a manifestação, sempre tão fundamentada. Abraço.

Anônimo disse...

obrigada pela indicação yúdice.também fiquei com vontade de ler o livro.