terça-feira, 24 de outubro de 2006

Abandono não; irresponsabilidade, mesmo

Notícia publicada no site da Globo hoje:


Uma mulher de 25 anos foi detida na madrugada desta terça-feira (24) após abandonar a filha no carro para ir assistir a um show de pagode. Por volta das 23h, Kátia de Paula Torres deixou seu carro em um estacionamento na Rua Tagipuru, na Barra Funda, Zona Oeste, e seguiu em direção a uma casa noturna da região onde o grupo "Exaltasamba" se apresentava.
Cerca de duas horas o manobrista do estacionamento estranhou o som que vinha de dentro do veículo deixado por Kátia, que parecia ser o choro de uma criança. E era. Kátia havia deixado a filha, Maria Fernanda Torres, de apenas um ano e um mês, dormindo no carro.
O manobrista chamou a polícia, que levou a menina para o Hospital das Clínicas. Depois de algum tempo, os policiais encontraram Kátia. Ela foi detida e pode ser indiciada por abandono de incapaz.
O crime de abandono de incapaz, mencionado na matéria, está previsto no art. 133 do Código Penal e consiste em "abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono". A pena é de 6 meses a 3 anos de detenção, se não sobrevierem danos graves à vítima.


Ocorre que, como crime que é, a conduta de abandonar exige dolo: no contexto, é a vontade de, mediante o abandono, expor a vítima a perigos físicos. Talvez a reação social ao caso provoque algum exagero sobre a conduta de Kátia, embora não se possa ignorar a possibilidade de dolo eventual. Ela queria se divertir no show e depois pegar a filha de volta. Logicamente, isso não é abandono, no sentido leigo da palavra. Mas pode configurar o crime, pois o sentido penal de abandono é diferente, correspondendo a um afastamento físico que seja capaz de colocar o incapaz, no caso a criança, em perigo concreto.

Kátia é uma jovem de 25 anos, provavelmente ainda imbuída dessa mentalidade de que ser jovem é curtir-curtir-curtir, cuja ficha para a maternidade talvez ainda não tenha caído, mesmo já se tendo passado quase dois anos desde que descobriu a gestação. Pode ser, quem sabe, um espelho do descompromisso com que a juventude tem encarado a vida, depois que os nossos herois morreram de overdose e os nossos inimigos chegaram ao poder.

Normalmente, esquecimentos de bebês em carros ocorrem devido ao estresse provocado por uma rotina estafante. A menor alteração nela e o indivíduo pode não dar conta das peculiaridades do dia. Não é o caso. Kátia esqueceu a filha — ou deliberadamente a deixou no carro "só um instantinho", o tempo do show — para se divertir um pouco, para se premiar pelo muito que ela pensa estar se esforçando. Não houve dolo de machucar a criança; não tenho razões para supor isso. Mas houve uma colossal irresponsabilidade. A sorte da pequena Maria Fernanda foi ter sido largada durante a noite, escapando de morrer asfixiada sob o sol de um dia quente.

Embora haja o que questionar do ponto de vista social, Kátia cometeu um crime em tese. Não é correto condená-la moralmente só para dar vazão à nossa raiva pelo que fez. Mas é bem provável que receba uma pena e alguma coisa precisa ser feita para que ela compreenda a gravidade de seu gesto. Não pelo pecado de gostar de pagode, mas pelo desleixo que, em última análise poderia custar uma vida.

Antes de julgá-la, porém, devemos nos perguntar: Será que ela está sofrendo com o que aconteceu? Será que pediu perdão à filha? Terá finalmente entendido e merecerá uma segunda chance? A exposição que agora sofre não será castigo suficiente?

Adendo em 26.10.2006, às 8h59

Kátia prestou depoimento na polícia, alegando haver deixado a criança dormindo por volta de 23h30 da segunda-feira, 23. Quem encontrou a menina foi um manobrista, que escutou seu choro à 1h45 e acionou a polícia. Maria Fernanda foi levada a um hospital e passa bem. Permanecerá ali até que a Justiça decida o seu destino.

Kátia deveria prestar um segundo depoimento ontem, mas faltou.

(Texto revisado em 18.12.2014)

5 comentários:

Frederico Guerreiro disse...

Se fosse minha parente próxima teria caído em desgraça. Quer ver?Para quem me conhece, iria persegui-la até que caísse em prantos pedindo perdão. Só iria parar no momento em que eu sentisse que já estava esbagaçada de remorso e com uma condição: comprar um CD do "Exortabomba" e quebrar na minha frente. Não seria um bom castigo?
Pagode...? Eu, ein!? Diga não às drogas!
Valeu a aula!

Carlos Barretto  disse...

Ainda chocado com a notícia, não podemos deixar de comentar alguma coisa.
Na questão em foco, parece ser jovem moradora de periferia. Mas fato semelhante já ocorreu quando uma senhora de classe média esqueceu um bebê na cadeirnha traseira do carro enquanto foi ao shopping. Neste segundo caso, o bebê morreu provavelemnte por desidratação e hipercapnia (acúmulo de gás carbônico no sangue).
Nos dois casos, provavelmente não se pode falar de mesma relação causal, tendo em vista a primeira ser uma jovem e a segunda uma "senhora".
O crime é o mesmo: bárbaro e indesculpável.

Yúdice Andrade disse...

Preclaro Barreto, agradeço por diminuir um pouco o acervo da minha enguinorança: agora sei o que é hipercapnia. Só para informar: eu pensei seriamente em fazer Medicina. O Direito veio depois e acabou ficando, mas nunca deixei de me interessar por temas médicos.
Amigo Fred, fiquei assustado em saber de tuas inclinações à violência, mas não recrimino, porque acho que faria coisa parecida. Ainda mais em se tratando de pagode...

Citadino Kane disse...

Yúdice,
És pessoa ponderada, é claro que no calor do ocorrido, o pensamento não é outro - ela mereceria um-sapeca-nenê, mas deixa pra lá...
Ela já foi punida.
E sigamos em frente.
Abraços,
Pedro

Yúdice Andrade disse...

Amigo Pedro, foi um momento de fraqueza meu. Mas coloquei em questão, justamente, se ela já não está punida. Parece-me que sim, até saber maiores detalhes.