Não tinha a intenção de escrever sobre o assassinato do menino João Hélio (6), ocorrido semana passada no Rio de Janeiro. Consciente de que se trata do crime do momento — volta e meia ocorre no Brasil, lamentavelmente, algum delito bárbaro que mobiliza a opinião pública por alguns dias e, depois, cai mais ou menos no esquecimento —, preferi assistir ao desdobramento dos fatos e suas implicações. Todavia, as muitas perguntas que me têm sido feitas e, em especial, o pedido do acadêmico de Direito Márcio Almeida, sugerem que eu me pronuncie.
Inicialmente, pelo que foi divulgado até o momento, parece que cinco rapazes decidiram praticar um assalto, nos moldes habituais da criminalidade urbana: abordar um motorista no sinal fechado e levar o carro. Sabe-se que três deles atacaram os ocupantes do veículo e outros dois, pelo que consta, estariam numa motocicleta, para dar suporte.
Os delinquentes mandaram os ocupantes do automóvel descer. A motorista, em pânico, tentou retirar seu filho do banco traseiro, mas ele estava com o cinto de segurança (cuidado obrigatório no trânsito, que quase ninguém cumpre e que o cidadão comum terá medo de cumprir). Ocorre que o ladrão arrancou com o carro antes que ela pudesse resgatar a criança, que ficou pendurada, tendo a cabeça arrastada no chão pelos cerca de sete quilômetros que o bando percorreu. Muitas pessoas, nas ruas e calçadas, assistiram à insólita barbaridade e gritaram ao motorista que parasse, inutilmente. A criança morreu.
Para o Direito Penal, este é um caso de crime praticado em concurso de agentes (reunião de esforços pessoais para o cometimento do delito). Poderia ser o que chamamos progressão criminosa, pois a intenção dos agentes, deduz-se, era apenas roubar, mas os fatos avançaram para uma morte, ou seja, o crime pretendido progrediu para outro, de maiores proporções (desde que se considere haver dolo, também, nem que seja eventual, em relação à morte). Ao se vincular uma morte a um roubo, o tipo penal que se caracteriza é o de latrocínio.
Corrigindo um erro frequente, muito repetido nestes dias, latrocínio não é roubo seguido de morte, pois a morte pode ocorrer antes mesmo do ataque patrimonial. Latrocínio é a prática de um roubo usando, como meio executivo, a morte de um ser humano, em qualquer uma das etapas executivas. Exige-se que haja um vínculo causal entre o fato roubo e o fato morte, que pode ocorrer até sem intenção (dolo). Isto é, mesmo que a morte seja causada culposamente (sem intenção de produzir este resultado), mas esteja associada ao ataque patrimonial, temos um latrocínio (Código Penal, art. 157, § 3º, parte final). A pena varia de 20 a 30 anos de reclusão, além de multa.
No caso de João Hélio, as circunstâncias escabrosas sugerem que o bando não tinha a intenção de matar ninguém. A execução do delito poderia dar-se de modo imprevisto até por eles, se entendermos que não podiam prever a presença de uma criança no banco traseiro, nem que estivesse com cinto de segurança. Assim, a primeira tese seria de latrocínio com resultado culposo.
Contudo, considerando que eles sabiam que a criança estava presa (além dos gritos de alerta, um dos criminosos estava no banco traseiro), a melhor interpretação é a de que eles assumiram os danos à criança como necessários à sua fuga, caracterizando o dolo eventual (dolo de consequências necessárias). Assim, temos um latrocínio com resultado doloso, acarretando uma pena mais intensa.
Por fim, pode-se sustentar a tese de que o resultado morte deve ser atribuído somente ao criminoso que dirigiu o veículo. Os demais, principalmente aqueles que estariam na moto, por não terem controle de suas ações — ou, como dizemos, o domínio do fato sobre essa parcela do processo causal —, poderiam ser beneficiados pela cooperação dolosamente distinta (CP, art. 29, § 2º). Assim, o motorista responderia por latrocínio e os demais, apenas por roubo qualificado, com penas variando de 5 anos e 4 meses a 15 anos, além da multa. Qualquer destes que tenha auxiliado o motorista a agir como agiu, mesmo que apenas moralmente, também incorreria em latrocínio.
Quanto ao menor de 16 anos, que participou da ação, sujeita-se ao regramento do Estatuto da Criança e do Adolescente, podendo sofrer a medida socioeducativa de internação em estabelecimento próprio, pelo tempo máximo de três anos. Tal estabelecimento não deveria parecer uma cadeia, mas na prática não passa disso.
4 comentários:
bem explicado.
Ótima sequencia, professor.
E obrigado pelo gentil comentário saudando a minha "volta"...rs.
E que surpresa, voce casado com uma neta do mestre Isoca!
Abs
Muito bom, Yúdice.
Realmente aprendi muito com a série.
Abs
Olá, meus caros, espero ter ajudado a lançar alguma luz sobre o caso. Abraços.
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