sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Vale por uma radiografia

Alguns alunos de minhas novas turmas de Direito Penal I acharam que as primeiras aulas  de cunho fortemente teórico e centrado em diferentes visões de legitimação do sistema repressivo eram apenas discurso, talvez ideologia, e não Direito Penal propriamente dito. Ledo engano. Mais à frente, quando atolados em artigos de leis, regras e doutrinas, verão que eu não falava de castelos no ar. Ou ao menos assim espero.
Abordando as diferenças de tratamento do sistema de justiça criminal em relação aos criminosos pobres (que normalmente cometem crimes toscos) e ricos ou mais intelectualizados (que conseguem perpetrar crimes mais sofisticados), mencionei com base nas lições de Eugenio Raúl Zaffaroni a situação de pessoas pertencentes às classes sociais mais privilegiadas que, em princípio imunes à ação repressiva do Estado, acabam sendo alcançados por ela quando cometem delitos bárbaros, o que o autor argentino chama de criminalização por comportamento grotesco ou trágico. Citei o caso do jornalista Pimenta Neves, que matou sua namorada, Sandra Gomide.
Observei que uns tantos alunos não pareciam saber de quem eu falava, apesar de o crime em questão ser um dos mais conhecidos da ainda atual crônica criminal brasileira. Trata-se, na verdade, de uma demonstração radiográfica de como o sistema sabe ser generoso com delinquentes de maior nível social. Nesta reportagem, você lê que os familiares da vítima apostam na conclusão do caso ainda este ano. Por "conclusão" entenda o julgamento dos dois últimos recursos pendentes, já pelo Supremo Tribunal Federal. Após isso, salvo aventuras advocatícias (que sempre acontecem), haveria o trânsito em julgado da sentença condenatória e Pimenta Neves deveria, enfim, cumprir sua pena de 18 anos de reclusão.
Vale lembrar que o homicídio foi perpetrado em 20 de agosto de 2000, ou seja, há exatos dez anos, motivo de ter sido lembrado hoje. O homicida tinha 63 anos e a vítima, 32. O julgamento pelo tribunal do júri somente aconteceu em maio de 2006. Depois de escutar a leitura da sentença, o réu saiu caminhando do fórum, entrou num carro e foi para casa, já que respondera ao processo em liberdade e tinha o direito de permanecer livre atê o trânsito em julgado da condenação. E assim está até hoje. Ninguém tenha a leviandade de afirmar que seria do mesmo jeito se ele fosse um ajudante de pedreiro, profissão que sempre aparece nas páginas policiais.
Suponha que cheguemos à situação em que a sentença se torne definitiva e seja expedida a guia de recolhimento contra Pimenta Neves. A execução da pena, se chegar mesmo a acontecer, não seria hoje igual ao que seria uns anos atrás. Com quase 73 anos, é provável que o réu sofra agravos à saúde, o que exigirá atenção especial do sistema penitenciário. E ele com certeza receberá essa atenção especial, o que não ocorreria se fosse aquele tal ajudante de pedreiro. Vale lembrar o caso do ex-presidente do TRT de São Paulo, Nicolau dos Santos Neto, já um octagenário, que passou a última década migrando da carceragem da Polícia Federal para sua própria residência, onde cumpria prisão domiciliar, porque era idoso e doente.
Sendo ainda mais seco e pragmático, se Pimenta Neves começasse a cumprir sua pena hoje, precisaria viver até os 91 para cumpri-la até o final (incluindo o eventual tempo de liberdade condicional). Não sabemos se isso acontecerá, mas isso está além da expectativa de vida do brasileiro. Portanto, quanto mais tempo passar, menos pena será cumprida. E, mais uma vez, voltaremos à velha esperança de que ao menos a justiça divina seja feita. E, como já escrevi antes, quem não acredita em Deus não terá esse prazer.

3 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Yudice,

como seu aluno que fui, sou prova viva de que não há mais direito penal propriamente dito do que a parte geral. Graças ao excelente contato que tive com essa parte (ou seja, a você) me considero um bom criminalista (e bem modesto, como se pode perceber).

Quanto ao Pimenta Neves, considerações meritórias à parte, tendo em vista a pena aplicada, o efeito substitutivo dos recursos e a idade dele, já não ocorreu a prescrição?

Abç.

ps1: retornei ao blog, após longo e tenebroso inverno.

ps2: lembra da conversa que tivemos sobre a inserção de IPL´s e processos em andamento na Certidão de Antecedentes? Achei o ato normnativo do TJ que regulamenta esta indecência: trata-se do provimento n. 002/2004 da Corregedoria da Capital. Um primor! Como ainda não encontrei norma semelhante na Corregedoria do Interior - o que me interessa mais diretamente - vou provocá-los para que me respondam se aplicam o mesmo ato. Depois, impetrarei HC no STJ contra essa vergonha. Mantê-lo-ei informado, prometo.

Marcelo Dantas.

Camila Maia Migliano disse...

Querido Professor,
Primeiramente, registro minha perplexidade com os novos alunos. Não percebem a importância do debate crítico para o bom entendimento do DIREITO (propriamente dito) que tanto anseiam. Além do que, "DIREITO" não faltará, garanto!
Sobre o caso em questão, vale relembrar o brocado: A justiça tarda, mas não falha. Em analogia ao caso de Pimenta Neves, a justiça tem tardado TANTO, que ao final, certamente falhará! Depois disso, como boa católica, só acredito na justiça divina! Fico pensando no criador do aforismo que citei acima... Deve “balançar os ossinhos” dentro do caixão toda vez que um caso desses acontece! Vive em constante sacolejo...

Yúdice Andrade disse...

Tu és, sim, um bom criminalista, Marcelo. A tua paixão pela área era visível desde os primeiros momentos. Fico feliz que estejas de volta por estas paragens.
Quanto ao caso Pimenta Neves, com certeza não houve a prescrição. Com a defesa que ele possui, que está contando nos dedos esse prazo, se já tivesse ocorrido, estaríamos todos sabendo.
Agradeço se me mantiveres informando sobre o procedimento.

Camila, querida, para a maioria dos alunos, a ficha cai devagar. As coisas começarão a fazer sentido mais à frente. Eu não os recrimino. Ao contrário, eu me vejo no primeiro ano do curso, perdidaço, sem saber sequer o que fazia ali.
Mas vai dar tudo certo, se Deus quiser.