O cinema já produziu algumas obras muito bem sucedidas em glorificar certas manifestações artísticas, como ele mesmo (Cinema Paradiso, p. ex.), a dança (Billy Elliot), a gastronomia (A festa de Babette) e a literatura (Nunca te vi, sempre te amei). Pensei que veria mais uma glorificação da leitura quando comecei a assistir a O leitor, já que não possuía a menor ideia do tema ali abordado. Contudo, eu estava enganado. Em que pese o amor pelos livros proporcionar momentos emocionantes no filme, certamente essa era uma questão transversal. O objeto em discussão tem relação com a vergonha com aquilo que se fez ou se sabe, como sugere esta resenha.
O filme de Stephen Daldry, roteirizado por David Hare e lançado em 2008, tem Kate Winslet no principal papel feminino. O protagonista é Michael Berg, interpretado por David Kross na juventude e por Ralph Fiennes na maturidade.
Não se trata de nenhuma obra cinematográfica inesquecível, mas teve o mérito de comprovar o talento e a dedicação de Winslet a seus personagens. Não por ter vencido o Oscar de melhor atriz em 2009, justamente por esse filme, mas por defender valorosamente sua Hanna Schmitz, uma mulher seca, que nunca sorri e está sempre de cenho franzido. Uma mulher que após escutar de seu amante adolescente que ele a ama, é questionada se o ama também e, após uma hesitação, responde com um movimento ríspido de cabeça, sem o olhar, como se isso a incomodasse profundamente. Em outra passagem, seu supervisor lhe informa que todas as suas avaliações são ótimas e que por isso ela será promovida. E apesar de ele se mostrar simpático, ela não parece feliz com uma notícia que deveria, no mínimo, aliviar uma mulher pobre.
A partir de certo momento, primeiro a leitura, depois o sexo. |
Afinal, por que Hanna não sorria? Por que estava sempre tão amarga? Após ver o filme até o final, somos levados a concluir que um terrível segredo do passado provavelmente a aniquilara. E aí precisamos saber que estamos na Alemanha, em fins da década de 1950, quando aquele país lutava por exorcizar suas culpas pelo nazismo e ainda havia muitos criminosos de guerra vivos e um mundo inteiro clamando por justiça. E por vingança.
Hanna: enojada e excitada com a leitura erótica. |
A mulher que entra de repente e some sem aviso da vida de um garoto de 15 anos, que não era feliz em seu lar, ressurge anos mais tarde como ré em um processo no qual seis mulheres, outrora integrantes das SS respondem por nada menos que 300 mulheres mortas num incêndio, quando teriam ficado trancadas numa igreja atingida por um bombardeio. E é aqui que o filme ganha a minha atenção pessoal: vira um filme de tribunal, incidentalmente. Mas não são as questões jurídicas que me interessam, até porque mencionadas de soslaio, e sim as morais. Enquanto cinco rés negam peremptoriamente qualquer envolvimento no episódio sinistro, Hanna admite tudo e, com uma estranha convicção, que interpretei como naturalidade, alega que apenas cumpriu o seu dever.
A crítica cujo link coloquei acima parece ironizar a tese de estrito cumprimento do dever legal ou de obediência hierárquica. Eu, contudo, encarei a alegação de Hanna sob outra perspectiva. Ela realmente parece acreditar que ser nazista e compactuar com seus atos, por mais infernais que fossem, era a destinação natural de todo alemão durante a guerra. Ela insiste com o juiz: O que mais eu podia fazer? O que o senhor faria no meu lugar? O detalhe que não me passou despercebido é que o juiz não responde e fica desconcertado.
Não se pode desconhecer que, durante a II Guerra Mundial (que não teria sido possível sem um descomunal e deturpado patriotismo insuflado por Hitler, que graças a ele se tornou Führer), as famílias alemães realmente assimilaram aqueles trágicos valores, realmente odiaram os judeus e efetivamente criaram as condições para que um tirano superlativo chegasse onde chegou. Os que se opunham foram embora e eram tidos por traidores. Portanto, o inusitado senso de dever de Hanna Schmitz parece jogar na cara de todos que a julgam ou que a injuriam, duas décadas após o final da guerra, que ela só fez o que eles mesmos fariam. E que a radical mudança de princípios de seus algozes tinha mais a ver com o fato de a Alemanha nazista ter sido derrotada do que com um verdadeiro mea culpa.
As cinco rés, acuadas por Hanna, que comprometia todas, unem-se contra ela. Inventam que ela era a líder do sexteto e, com isso, a carnificina passaria a ser a escolha pessoal de uma mulher, e não das seis. A tática dá certo, mas por um motivo inesperado: Hanna tem menos vergonha de seu passado do que do fato de ser analfabeta. Tem menos medo da condenação do que de ter que lidar com o fantasma de toda uma vida.
Um observador atento descobre o analfabetismo de Hanna e sua vergonha antes da metade do filme. É fácil constatar. E isso leva o jovem Michael Berg ao sofrimento de ser o único a saber o que Hanna esconde, aspecto que pode salvá-la da pena perpétua que acaba por receber. Ele chora ao escutar o veredito, por saber que teve a oportunidade de mudar esse desfecho, porém desistiu no meio do caminho. Afinal, ele também tinha vergonha de seu passado. Ou simplesmente não superou sua paixão juvenil, como se percebe nas sequências finais.
O leitor é um filme que merece ser visto, notadamente pelas cenas entre o acadêmico de Direito Michael Berg e o Professor Rohl (vivido por Bruno Ganz, o magistral Titelrolle de A queda — As últimas horas de Hitler) e pela emoção que nos provocam as cenas em que Hanna descobre que o inesperado presente recebido na prisão foi mandado por seu amor do passado (e reage com choque) ou quando ela decide aprender a escrever sozinha. Esta última eu achei absolutamente fabulosa. Acima de tudo, há sempre a discussão acerca da moralidade humana, não apenas aquela que a coletividade estabelece, mas sobretudo a que carregamos em nós mesmos.
9 comentários:
Yúdice,
Posso dar uma sugestão, na mesma temática? Assiste "A Fita Branca". Creio já ter nas locadoras. É do momento anterior à 1a Grande Guerra e retrata como a semente do mal, para usar um termo popular, imiscuiu-se na alma alemã, muito além da mera convicção política.
Abraço.
Assisti ao filme há quase dois anos, motivada pela indicação de Kate ao Oscar (costumo baixar os filmes em casa antes da cerimônia, para eleger meus favoritos, já que eles só costumam chegar ao Brasil depois).
Sem dúvida é um trabalho primoroso, que merece ser visto. A vergonha de Hanna por não saber ler é chocante. Isso fica implícito desde o início do filme, mas daí a ela preferir uma condenação a prisão perpétua, é estarrecedor. Pensei que Michael iria contar, inocentando-a. Seria um final "feliz", mas filmes excelentes raramente tem finais felizes. Apesar de sempre torcermos por eles, os tornariam piegas.
...mas quase tu contaste a história toda, Yúdice. Receber o presente na prisão, de um amor do passado, deve ser o início do desenlace da história.
Vou procurar nas locadoras.
O título me soa familiar, Francisco. Creio já ter escutado uma referência favorável. Com essa tua explicação, vou assistir, com certeza.
"Chocante" é mesmo o termo, Luiza. Fiquei impressionado com isso. E achei Kate (olha a intimidade...) excelente no papel, sobretudo na cena em que ela pula na cadeira ao reconhecer a voz na gravação e depois religa o gravador tremendo.
Mas eu avisei que havia spoilers no texto, Fred!
A Fita Branca, A Queda, Sem Novidade no Front, O Crepúsculo das Águias e este. Ótimos filmes sobre o lado alemão nas Primeiras e Segunda Guerra.
As cenas de trincheiras de Sem Novidade no Front ainda preservam a crueza, apesar do filme ser dos anos 30. A mensagem pacifista foi bem compreendida pelos nazistas, que interrompiam as sessões jogando ratos nas salas. A ignorância da guerra aparece também no fanatismo da cena inicial e num par de botas que "sobrevive" mais que os soldados que se revezam usando-o.
Tem também Feliz Natal, com mensagem similar, ao mostrar as confraternizações de soldados alemães, escoceses e franceses nas trincheiras da Primeira Guerra e o preço que eles pagaram por isso. Deixei para assistir justamente na época do natal, e tive a impressão que o poder do filme foi ainda maior.
Lhe indico também A Onda. Não é um filme de guerra, mas sobre um experimento, baseado em um fato real na Califórnia, de como algumas pessoas "comuns" podem se deixar seduzir por ideais de extrema direita, de culto ao líder. É um filme alemão que contemporanizou para a Alemanha (não sei se esse verbo existe, hehe) o livro em que foi baseado: dois dos personagens a sofrerem bullying são um estudante de origem turca e outro nascido na antiga Alemanha Oriental, dois segmentos bem discriminados por lá.
Há ainda A Outra História Americana, que já mostra a tentativa de redenção de um ex-nazista - minha definição simplória para este filme, apenas para não revelar mais. Com Edward Norton e Edward Furlong (o jovem John Connor de Exterminador do Futuro II).
Endosso o comentário do Caio sobre "A Onda". Excelente filme! Ainda não vi os outros, mas aproveitarei as sugestões.
complementando Feliz Natal: por acidente, fui pela opção "ver o filme com comentários do diretor" ou algo assim, só depois desativando-a. Mas foi bacana. Como não revi o filme, não sei se no início da história aparecem do mesmo jeito as explicações de por que a trama começa nas Highlands escocesas. Não deixe de ver os extras também. Do pelotão de fuzilamento por traição não escapava nem cachorro.
As punições são melhor entendidas quando se sabe que o front oriental e a batalha de Verdun foram (até onde sei) as maiores carnificinas para, respetivamente, alemães e franceses.
Inteligência do diretor ao colocar um judeu (Daniel Brühl, de Adeus Lênin e Bastardos Inglórios) como líder das tropas alemães. Muito pelo contrário da propaganda antissemita, eles, às centenas de milhares e em sua maioria patriotas inflamados pelos países em que eram cidadãos, lutaram por todos os lados envolvidos, desde como soldados e cientistas até entre os mais abastados - haviam Rothschilds ingleses, franceses, alemães e italianos.
Desses filmes, Caio, vi apenas A queda e A outra história americana, ambos excelentes. Fiquei realmente interessado em ver os demais. Se figuram na mesma lista que esses dois, já valem a pena.
Em termos de sugestões, Luiza, esta postagem acabou sendo muito útil, não?
Que bom, professor! Volto a dizer que "Feliz Natal" tende a ser mais poderoso na época natalina, que já está às proximidades.
Adiantando sobre A Onda: a única coisa que tira a seriedade do filme é a saudação que eles inventam para eles. Foi-me impossível não lembrar daquele Kléber Bambam (primeiro Big Brother), embora ela seja mais simplificada. Mas isso é só um detalhe... assista quando puder. Se não me falha a memória, psicologia lhe atrai, não?
Grande abraço!
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