O homem que chora na fotografia é Thomas M. Wallace (45 anos), um caminhoneiro do Estado americano de Ohio que, em 12 de dezembro do ano passado, provocou um acidente e a morte de uma mulher de 33 anos, mãe de duas crianças. No espaço de 27 horas, Wallace dormira apenas quatro horas e meia (o que é proibido e fiscalizado pelas autoridades americanas, mas ele disfarçou através de uma fraude) e, para piorar, ele se distraiu vendo um filme pornográfico e acessando a Internet através de um notebook. Por isso, não viu o carro da vítima, que sofrera uma pane e estava parado no acostamento, colidindo com o mesmo. Leia a notícia aqui.
Wallace foi condenado a uma pena de três a nove anos de prisão, o que me motiva alguns comentários.
Pena relativamente indeterminada
Alguns Estados americanos adotam um modelo punitivo segundo o qual o réu é condenado a uma pena incerta, pois se conhece apenas o mínimo e o máximo que pode ser imposto. São as circunstâncias da execução penal, notadamente as demonstrações de disciplina e os prognósticos de respeito às leis, no futuro, que podem abreviar a sanção.
A ideia em princípio não parece ruim, porque as penas são cominadas aos delitos dessa forma: do mínimo ao máximo. No modelo brasileiro, porém, assim como na maioria dos sistemas, na hora de uma condenação concreta a pena deve ser individualizada. Saber exatamente qual é o seu montante. Deixar que uma pena já aplicada varie aumenta sobremaneira o poder das autoridades administrativas (os diretores das casas penais). A administratização da execução penal é um dos maiores abusos que os modelos da linha lei e ordem podem cometer, porque subtraem o tratamento dado ao apenado da supervisão judicial. E mesmo que um juiz controle esse processo, é um poder excessivo, mais adequado à sentença do que a execução. Do contrário, pode-se chegar a uma situação em que o apenado não esteja mais sendo punido pelo delito cometido, e sim por suas desavenças pessoais no cárcere.
Outrossim, no modelo brasileiro, embora a pena seja fixa, as condições de seu cumprimento variam. Para isso existem os regimes penitenciários e os benefícios de execução. A meu ver, é um procedimento mais justo, analisando desapaixonadamente. A pena imposta retrata a gravidade do delito, segundo a compreensão externada no julgamento, e isso se consolida, não sendo passível de alterações. Mas o cumprimento da pena variará de acordo com o comportamento do apenado. Além disso, ele sempre está sujeito a punições por outros ilícitos que cometa ao longo da execução.
Intensidade da pena
No Estado de Ohio, um homicídio culposo de trânsito rende cadeia por três a nove anos. No Brasil, dois a quatro anos de detenção, naturalmente conversíveis em alguma das chamadas penas alternativas. Se fosse aplicada a prisão, o réu iria para o regime aberto, salvo circunstâncias especiais. O regime fechado inicial é proibido. A pena pode ser aumentada de um terço se o réu não era habilitado, se atingiu a vítima na faixa de pedestres ou na calçada, se deixou de prestar socorro (quando possível) ou se, motorista profissional, estava transportando passageiros. Em qualquer caso, também é imposta a suspensão (e não a cassação) da habilitação, ou do direito de obtê-la. Isto é o que prevê o art. 302 da Lei n. 9.503, de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Um homicídio culposo fora do trânsito é punido com mais brandura: um a três anos de detenção (art. 121, § 3º, do Código Penal).
A pena imposta a Wallace, se chegasse ao seu máximo, seria superior à que, no Brasil, poderíamos impor a delitos como redução à condição análoga à de escravo e tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual (máximo de oito anos) — estes, crimes dolosos e revestidos de particular gravidade. Ou os americanos estão surtados ou nós somos umas mãezonas. Ninguém precisa responder a esta assertiva, porque já sei o que dirão.
Necessidade de penas mais duras
Segundo dados (não atualizados) do Ministério da Saúde, ocorrem mais de 35 mil mortes em acidentes de trânsito, nas estradas e vias urbanas brasileiras, todos os anos. 47,4% desses acidentes envolvem veículos de passeio. Num segundo lugar distante (29,4%) vêm os ônibus e caminhões. Considerando os sinistros ocorridos apenas nas rodovias federais, os prejuízos econômicos ultrapassam os 10 bilhões de reais, conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Se quiséssemos aprofundar esses dados, teríamos substrato para um roteiro de terror.
O Código de Trânsito de 1997, com seus erros e acertos, é um dos instrumentos no esforço que o poder público faz (quando faz) para reduzir esses índices trágicos. Associa-se a ele a Lei n. 11.705, de 2008, amplamente conhecida pela impertinente alcunha de "Lei Seca" (o que é um despropósito, já que referida lei não proíbe ninguém de consumir ou mesmo de adquirir bebidas alcoólicas, mas apenas de conduzir veículos após tê-lo feito) e que poderia ser chamada de lei da alcoolemia zero. É novamente do Ministério da Saúde que vem a informação de que,após dois anos de vigência, a nova lei contribuiu para a redução em 6,2% do número de mortes. Um número ao mesmo tempo diminuto, porque ainda são muitas as mortes, mas expressivo, pelas conclusões que propicia. Ainda há muita imprudência não associada ao consumo de álcool matando pessoas, sobretudo pelo excesso de velocidade.
Já escrevi aqui no blog e digo sempre em minhas aulas que, por mais terríveis que sejam as estatísticas da violência no trânsito do Brasil, o brasileiro médio não as interpreta como violência. Esta fica restrita aos homicídios e aos delitos patrimoniais e sexuais, para os quais a classe média não se cansa de reclamar penas mais duras. A mesma classe média, contudo, opõe-se com ferocidade ao endurecimento das leis de trânsito. Afinal, qualquer um de nós pode passar para o outro lado do balcão, após um happy hour com os amigos numa sexta-feira qualquer, certo? Veja-se o escândalo feito pela galera bem nascida ou bem empregada quando suas baladas regadas a cerveja foram ameaçadas. Quando o governo anunciou restrições à propaganda de bebidas alcoólicas, à semelhança das que já existiam em relação ao tabagismo, a indústria cervejeira e seus marqueteiros milionários colocaram no horário da TV uma campanha que é o maior primor de cinismo publicitário da história recente do país, ultrapassando as mentiras criminosas dos políticos em campanha eleitoral e da turma contrária ao desarmamento, no referendo de 2005. Veja o filminho cretino no YouTube.
E quando, por fim, algum acidente de maior repercussão ceifa vidas, o Ministério Público e o Judiciário apelam para uma saída abusiva, sem respaldo nos fatos: impor ao acusado a imputação de homicídio doloso, por dolo eventual. Uma medida cada vez mais comum, que tende a ser derrotada por bons advogados ou por tribunais mais sensatos. Isso prova, a meu ver, que nós realmente precisamos de leis mais severas e eficientes contra os delitos de trânsito. Quem me conhece pode levar um susto ao ler estas linhas, mas essa é a verdade. Não defendo a hipercriminalização nem as penas escorchantes, mas a adequação à realidade. Essas leis mais duras não precisam ter caráter criminal. Elas devem, isto sim, assegurar que os maníacos percam a habilitação e tenham dificuldades enormes para recuperá-la, após um bom número de anos. Obviamente, isso só funcionaria se houvesse fiscalização e se as autoridades de trânsito vencessem o câncer da corrupção, ou ao menos fossem mais honestas ao lidar com a sua existência.
Há pouco tempo, quatro pessoas das minhas relações precisavam renovar suas habilitações e, para tanto, precisavam cumprir algumas horas de escola de trânsito. Todas elas compraram o certificado, através de um corretor. E foi bem baratinho. E todas elas acharam a coisa mais normal do mundo proceder dessa forma, manifestando inclusive amplo desprezo pelas normas que instituíram essa obrigatoriedade. Para esses setores da sociedade, tudo não passa de cobranças indevidas e excessivas e de "indústria de multas".
Não é assim que a nossa permanente guerra civil de trânsito será enfrentada.
6 comentários:
Yúdice, no comentário da outra postagem fiz uma ironia em relação às leis de trânsito. Sublinearmente, quis dizer que não é o agravamento da lei que fará com que os acidentes diminuam, mas sim a redução da impunidade. Aplicar a lei exemplarmente no que já está disposto pode ter um efeito mais significativo que simplesmente torná-la mais grave, com penas mais duras. Leis mais severas não resolvem quando o destinatário da norma não tem capacidade e não foi educado para se determinar e conduzir de acordo com o entendimento de que cumpri-la lhe trará benefícios. O raciocínio é o mesmo de quem é contra a pena de morte, porque desta forma entende que não haverá grandes consequências nos índices de crimes dolosos. Enfim, a questão é mais moral que legislativa.
Impunidade. Eis o 'x' da questão.
Já que você disse que não precisamos responder a sua questão, pois você já conhece a resposta, apenas digo que é essa mesma, tá?
Não entendo muito de leis, mas acho que se cada um de nós dirigisse corretamente, respeitando as normas do trânsito, o limite de velocidade, não haveriam tantos acidentes e os que houvessem não causariam tantas mortes...
Cada um a seu jeito, Fred e Ana estabeleceram que o enfrentamento do problema é mais ético do que jurídico. E estão corretíssimos ao pensarem dessa forma.
Professor, veja notícia sobre pesquisa da ONU, estimando que o álcool cause 2,5 milhões de mortes por ano: http://br.noticias.yahoo.com/s/07092010/11/saude-alcool-2-5-milhoes-mortes.html
O que não entendo é o porquê de carros com velocidade máxima de 250 km/h são comecializados no Brasil sem limitador de velocidade, quando o limite nas rodovias, creio eu, seja de 100hm/h ou 120 km/h?
Aí fica se discutindo leis mais severas, quando na verdade quem comete este tipo de acidente, em geral, acha-se imortal. Não creio que o endurecimento de leis ou mesmo a própria aplicação da vigente mudará muita coisa.
Abraços
Agradeço pela informação, Luiza. Conhecer estatísticas mundiais também é importante.
Caríssimo Jean, conheço a tua alma libertária e sei que és contrário, de um modo geral, ao endurecimento das leis penais. Eu também sou, mas aqui e ali tenho a impressão de que certas medidas mais punitivas são mesmo necessárias. Este é um campo. Na verdade, os maiores assassinos do trânsito não se acham imortais. Eles ser acham apenas bons demais, tanto no sentido de ases ao volante quanto no de melhores do que os demais motoristas e os pedestres.
Trata-se de um problema que seria resolvido pela educação. Mas como não se pode contar com esta, o jeito é apelar para a força. Afinal, a condução de veículos é prática usual e necessária, o que nos impõe vários riscos.
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