Com essa expressão, Eugenio Raúl Zaffaroni fez sua crítica às leis progressivamente mais rígidas, que comprovadamente não reduzem em nada as taxas criminais, em lugar algum do mundo. Foi o que afirmou em sua conferência, ontem à noite, após receber o título de doutor honoris causa da Universidade da Amazônia.
Em sua preleção, o magistrado argentino criticou o fato de a Criminologia ter-se omitido de estudar o crime de genocídio, embora se tenha ocupado de todas as demais manifestações criminosas. E olvidou o genocídio porque este é encarado apenas sob a ótica da guerra, quando um povo tenta eliminar outro, tal qual os nazistas fizeram com os judeus na década de 1940, ou os sérvios contra os bósnios, na de 1990 (apesar de que o Tribunal da ONU inocentou a Sérvia dessa acusação, em 2007). Todavia, existe um outro genocídio, praticado pelos Estados fora da situação de conflitos armados, que são verdadeiros crimes de Estado, praticados pelos detentores do poder contra grupos pré-determinados (aqui, Zaffaroni recorreu a sua teoria da criminalização por seletividade). Reflexos de uma atividade tipicamente policial. Ele citou os homicídios praticados por regimes repressivos, como as diversas ditaduras militares que dominaram a América Latina há poucas décadas, ou o neocolonialismo, em que nações ricas exploravam recursos naturais de países pobres, com centenas de milhares de mortes.
Após lúcidas considerações, Zaffaroni mostrou a pernamanca que ceifou a vida do ofídio: disse que esses estudos não são feitos porque, quando a pesquisa fornece os diagnósticos sobre a realidade, o orçamento precisa ser aplicado de forma racional. Isso explica tudo.
Foi um privilégio escutar Zaffaroni. Emocionante, até. Lá estava eu, ouvindo o sujeito em cujos livros me baseio e me inspiro, não apenas para formular minhas aulas, mas acima de tudo para construir minhas convicções de vida. E foi bastante oportuno encontrar meu aluno Adrian Silva e meu ex-aluno, agora colega, Arthur Homci, que com sua habitual gentileza me disse ter aprendido comigo a gostar de Zaffaroni. É o ciclo de reprodução e aprimoramento da cultura.
A noite, infelizmente, teve seus percalços. O coordenador do programa de pós-graduação em Direito, de onde partiu a iniciativa da homenagem, ao invés de simplesmente saudar o homenageado, decidiu colocar a si mesmo no centro do discurso e se pôs na condição de vítima de dez crimes, pelo que assumiu uma linha bastante conhecida, principalmente nos programas criminais de TV e rádio: pediu que os estudiosos das ciências criminais (ele não é da área) também "se lembrassem" das vítimas e de seus familiares. Em que pese o fato de que o sistema deve, realmente, ocupar-se destes últimos e vem sendo historicamente falho em fazê-lo, a exortação foi duplamente deselegante: primeiro, por soar como uma provocação a uma pessoa que veio de outro país a convite; segundo, por dar a entender que o próprio homenageado incorre no vício "denunciado", o que está longe de ser verdade.
Encerrada a solenidade, em conversa com amigos, percebi que eles haviam ficado tão irritados quanto eu com a desnecessária atitude, que se esconde em argumentos pretensamente humanitários e, no final, serve apenas para relegitimar medidas punitivas extremas e Estados policiais.
Por fim, o mesmo professor ainda lembrou os sete outros nomes que já receberam o título de doutor honoris causa da UNAMA e destacou um, justamente o que não merecia tal honraria: Jarbas Passarinho. Soltou o maior confete para o antigo ideólogo e ainda defensor da ditadura militar brasileira. Sem dúvida, Passarinho prestou um enorme contribuição ao entendimento entre as pessoas.
É lamentável que Passarinho tenha sido posto no mesmo seleto grupo que Zaffaroni e Benedito Nunes. Mas afora isso, foi uma grande noite, pela qual a UNAMA está de parabéns.
2 comentários:
A despeito do inconveniente, pelo qual acabei passando despercebido, confesso (mas não devido falta de atenção, pelo contrário, neste momento, na sala em que eu me encontrava houvera um grande tumulto instalado por conta de problemas no sistema de transmissão da palestra (no áudio) -, foi um grande noite, e que noite! Tal como o sr, professor, também considerei esta experiência emocionante. Certamente, E. Zaffaroni é um dos meus favoritos juristas e doutrinadores, não somente pela magnânima sabedoria na seara Penal, mas também por sua interdisciplinariedade com que aborda seus textos, corroborando o seu status de douto. Ainda neste sentido, a presença de meu egrégio professor de Direito Penal, ao qual devo muito do que sei neste ramo (ainda que pouco) e também sou um fã - como pessoa mesmo -, fora verdadeiramente marcada na memória. A presença do professor Arthur Homci também foi de grande agrado, pois é outro grande professor que me inspira bastante, quando em reflexo à minha carreira acadêmica, além de sua generosidade que lhe é peculiar, pelo menos comigo tenho essa certeza.
Não há como negar, ontem foi uma grande noite. Espero que argumentos de adpétos de um Direito Penal mais Humanitário, como é o caso de Zaffaroni, possam cada vez mais reduzir a atuação repressora e antigarantista das agências judiciais e do Estado Policialesco, mesmo. Que o Direito, em termos práticos, possa atuar submisso à norma fundamental que rege todo o ordenamento, podendo garantir, concretamente, os Direitos Fundamentais do homem.
Abraço, Prof. Yúdice.
Yúdice,
Outro ponto marcante da Conferência foi a referência à criminologia midiática.
Zaffaroni expôs com uma simplicidade genial a promiscuidade com a qual a mídia lida com o crime, utilizando os cadáveres e as vítimas como se fossem um bem de consumo não durável. Quando o seu crime não serve mais à elevação das audiências (ele não disse com essas palavras), as pessoas são simplesmente descartadas. DESCARTADAS.
Foi emocionante, mais ainda pelo semblante simples do homenageado. Assim como os criminosos, os gênios também não são de papel.
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