quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Só os pacientes "de bem"

Ganhou a imprensa, hoje, e promete render, o caso do médico que, estando de plantão no Hospital de Pronto Socorro Municipal de Belém, o da 14 de Março, recusou-se a atender um paciente que ali acabara de chegar, trazido em veículo da Superintendência do Sistema Penal SUSIPE. O rapaz está preso na Presídio Estadual Metropolitano II e necessita de uma cirurgia. Mesmo com os agentes da SUSIPE mostrando a documentação necessária para a admissão, o traumatologista se recusou a fazer a cirurgia porque não atende presidiários. Dispôs-se a, no máximo, internar o paciente. Que o seu substituto fizesse a cirurgia.
É claro que já apareceram os primeiros cidadãos de bem aplaudindo a omissão do médico. Mas é preciso lembrar que o dito profissional é duas vezes obrigado a atender o paciente: como médico e como servidor público.
Sabemos que aos esculápios se reconhece o direito de não atender certos pacientes, por escusa de consciência. Mas esse direito é limitado às situações em que, da omissão, não decorra nenhum dano para o paciente, o que talvez não fosse o caso. Infelizmente, as notícias que li na imprensa local não pormenorizam o caso, de modo que não sei por qual razão o rapaz está preso (o que, convenhamos, simplesmente não interessa!) nem o motivo pelo qual necessita de uma cirurgia. Podemos, contudo, buscar no Código de Ética Médica, versão 2010, disponível no site do Conselho Federal de Medicina, motivos para criticar o procedimento do médico belenense:
No capítulo I são estabelecidos os princípios fundamentais da profissão, dentre os quais:

I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
XVII - As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente.

O capítulo II versa sobre os direitos dos médicos e veda "recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência" (inciso IX).
No capítulo III, sobre responsabilidade profissional, é vedado ao médico "Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência."
Por fim, no capítulo IV, sobre direitos humanos, esta é a vedação: "Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto."
Não bastasse isso, o servidor público causou prejuízos à Administração Pública, inviabilizando o deslocamento do preso à casa de saúde, procedimento que também envolve riscos, em tese, aos agentes penitenciários envolvidos.
Mesmo que pudéssemos admitir alguma justiça na recusa do médico em atender um presidiário ou criminoso, ou coisa que o valha, para valer como escusa de consciência, a alegação ainda precisaria passar pelo crivo da ética médica geral, isto é, aquela que não se mede pelos valores e pelas miopias individuais, mas que é reconhecida pela categoria profissional, tão disseminadamente quanto possível.
A menos que haja, nessa história, algum fato que não tenha sido tornado público até o momento, a omissão dolosa do traumatologista é caso de punição.

7 comentários:

Anônimo disse...

Lendo a notícia, a qual só fiquei sabendo por meio de seu blog, veio imediatamente à mente a excelente obra "A filosofia de House", que aborda, como o próprio nome sugere, vários aspectos relativos ao personagem Gregory House, da excepcional série homônima. Entre análises de teorias, apreciação da ética, superética e afins, passando pelas esquisitices, supostas imoralidades e até mesmo ilegalidades cometidas por House, os autores do livro surgem com uma conclusão inabalável: a de que, na condição de médico, a única ética seguida por House é a certeza de que, independentemente de quem seja e de que modo, deve salvar a vida do paciente. Não precisa nem mesmo conhecer seu próprio Código de Ética. Talvez assistir um pouco de televisão complemente a formação de um médico...

Marcelo Dantas

Luiza Montenegro Duarte disse...

É interessante essas pessoas que se acham mais dignas do que as outras. Mal elas sabem...

Anônimo disse...

Yúdice,
Infelizmente este acontecimento não é fato isolado. Com os adolescentes infratores ocorrem tais situações desumanas também, além de outros segmentos da população.
Já estive envolvida numa situação similar, mas consegui êxito através de determinação judicial para garantir tratamento a um paciente presidiário.
Os médicos devem ficar mais atentos, pois estas negativas de atendimento não estão enquadradas nas possibilidades encontradas no código profissional da categoria.
Definitivamente, além da PUNIÇÃO é extremamente necessária uma formação extra curricular em direitos humanos para os profissionais da área médica.
A SENSIBILIZAÇÃO para tais temas é fundamental aos profissionais que trabalham com pessoas. Muitas situações vexatórias poderiam ser evitadas, naõ apenas com os presidiários, mas com a população em geral que vem reclamando da insensibilidade dos profissionais de saude.
Abraços,
Anna Lins

Ana Miranda disse...

Eu, hein?!
Sou eu ou o mundo que está completamente louco???

Yúdice Andrade disse...

Essa série alguma coisa e a Filosofia é excelente, Marcelo. Temos alguns exemplares em casa (Lost, super-herois, Matrix, etc.). Sem dúvida, essas leituras e bons programas de TV seriam bons instrumentos para ajudar na formação do médico. Sou aficcionado por Plantão Médico, série que permite uma infinidade de discussões éticas.

Com efeito, Luiza, esse tipo de julgamento envolve também um certo sentimento de superioridade. É preciso se sentir superior para se crer capaz de decidir que merece viver ou morrer.

Bem lembrado, Anna. Existe um ódio crescente em relação aos adolescentes em situação de risco, sempre considerados delinquentes, embora nem sempre o sejam. Com isso, tornam-se particularmente vulneráveis a esse tipo de abuso.

Ana, suponho que não sejas tu.

Anônimo disse...

E quando um médico perito do INSS,dá alta médica e manda de volta pra casa ou ao trabalho um(a) cidadão(ã) sem a menor condição de saude, não estará ele também negando um direito e deixando de cumprir o Código de Ética??

Abraços da Maria

Yúdice Andrade disse...

Sem dúvida alguma, Maria. E isso pode acontecer porque o perito, muitas vezes, sofre pressões superiores para liberar o segurado, eliminando um benefício. Assim, economiza-se uma merreca aqui, outra merreca ali. Afinal, é de merreca em merreca que se somam os milhões desviados em fabulosos assaltos aos cofres da previdência social brasileira, alguns dos quais inesquecíveis. Recordemos o esquema da ex-advogada Jorgina de Freitas, que até hoje está presa, cumprindo a sua pena. Mas o dinheiro desviado foi recuperado? Nada!
No dia em que os bandidos terminarem suas penas, ainda gozarão do dinheiro e da nossa cara.
Podemos lembrar, ainda, que muitos médicos, na rede pública de saúde, também liberam pacientes indevidamente, por preguiça, por cansaço ou também por pressões, para liberar vagas e não haver reclamações de omissão de atendimento. Para uma prefeitura como a de Belém, p. ex., não interessa que o atendimento seja péssimo, desde que ele ocorra. Ruim é se os jornais publicarem que as pessoas estão voltando da porta sem atendimento algum.