segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Tráfico de pessoas

Nem execuções sumárias, nem tortura, nem crimes em série, nem mesmo genocídio. A prática que considero mais abominável, no sentido mais superlativo da palavra, é o tráfico de seres humanos. Ontem à noite, motivado por um programa de TV, pus-me a pensar no assunto e confesso ter procurado, sem sucesso, outra coisa que me desperte tanta fúria quanto isso. Eu consigo me ver abdicando de todos os meus valores e princípios para punir alguém que fosse comprovadamente envolvido com tal abjeção.
Segundo consta, o tráfico de pessoas já ultrapassou o de armas e o de entorpecentes em lucratividade. Isso graças a um de seus aspectos mais crueis: a mesma vítima pode ser explorada por tempo indeterminado, até o exaurimento de seu valor de mercado. É muito mais barato e seguro traficar uma pessoa do que os itens supramencionados. E embora o retorno por objeto seja menor, o lucro da atividade, projetado no tempo, é mais atrativo. O fato é que, para tanto, temos reinstituída a escravidão como prática rotineira.
A forma clássica da escravidão era como modelo econômico, para exploração de mão-de-obra. O Brasil foi o último país a abolir essa prática ignominiosa como política oficial. Passados mais de 120 anos, contudo, o sequestro seguido de comercialização de gente continua movendo muitas economias regionais, em países pobres, sob procedimentos que não destoam dos que aparecem nos livros de História.
Mas foi a exploração sexual que tornou o mercado tão atrativo para os traficantes. E aqui vemos outro aspecto dos mais repugnantes: os cidadãos de bem, os bem nascidos, os endinheirados, os chefes de famílias socialmente destacadas são as molas propulsoras desse sucesso. Gente que se veste bem, vai à missa e ocupa os mais variados lugares de posição elevada não veem mal algum em pagar por sexo, não importando que as mulheres não estejam ali voluntariamente. Note bem: estou deliberadamente afastando da análise a prostituição exercida livremente, embora mesmo nesses casos normalmente haja alguma reserva da exploração por terceiros. Por isso, em boa hora a Lei n. 12.015, de 2009, incluiu entre os delitos contra a dignidade sexual a conduta de manter relações sexuais com menores submetidos à prostituição ou exploração sexual de outra forma.
Algumas rotas de tráfico humano internacional.
Com isso, as mulheres se tornaram as vítimas preferenciais do mercado. Mas a exploração sexual, mantida graças ao viciamento em drogas, à remessa para outros países e às ameaças inclusive contra familiares, não é a única forma de reificação das mulheres. Os traficantes também as utilizam como barrigas de aluguel, porque bebês também são rentáveis nos subterrâneos. E ainda temos a extração de órgãos, traficados para fins de transplante. Quando as mulheres sobrevivem às precárias cirurgias para extração dos órgãos, são forçadas a voltar para a prostituição. Como dito acima, somente o exaurimento final fecha o ciclo. Morrer passa a ser o maior desejo de uma pessoa nessa situação, o que me faz recordar a última estrofe do conhecido poema "A cruz da estrada", de Castro Alves:

Caminheiro! do escravo desgraçado
O sono agora mesmo começou!
Não lhe toques no leito de noivado,
Há pouco a liberdade o desposou.

Não creio que algum roteirista de cinema de terror, algum escritor clássico do gênero ou mesmo um desses alucinados de hoje fosse capaz de pensar em algo mais terrível e inacreditável do que a maldade que muitos indivíduos trazem dentro de si.
Desculpem, mas esse assunto realmente me mortifica.

5 comentários:

Ana Miranda disse...

Yúdice, o que me me mata é exatamente isso: Saber que pessoas, ditas "de bem", alimentam a exploração sexual, como você bem disse, mulheres escravas sexuais. Isso realmente é terrível.
E ainda tem seus agravantes. Sem comentários...

Yúdice Andrade disse...

O Ministério da Saúde está visitando blogs para angariar doadores de órgãos? Que interessante.

Abdicando de valores que me são caros, Ana, penso que essas pessoas deveriam ser trancafiadas numa gaiola de vidro e expostas à execração pública!

Luiza Montenegro Duarte disse...

Mortifica todos nós, professor. O que se passa na cabeça de um monstro desses é uma daquelas coisas que eu não quero jamais entender, pois isso deve significar que eu não sou mais uma pessoa normal. Prefiro sentir repulsa e incompreensão absoluta sobre o que faz um ser humanos dispor de outro assim, sem nenhum tipo de piedade.
Há um filme muito interessante, sobre tráfico internacional de mulheres, chamado Busca Implacável. A filha de um ex-agente do FBI é sequestrada por traficantes, para fins de exploração sexual. Por toda a sua experiência, ele sabe de tudo o que está acontecendo com a filha e faz isso mesmo que o senhor falou: abdica de todos os princípios e vai atrás dela, como um louco, passando por cima de quem estiver na frente. É angustiante! Acho que já está na TV à cabo. Recomendo aos que tem estômago forte.

Luiza Montenegro Duarte disse...

Trailer do filme:, para quem se interessar:

http://www.youtube.com/watch?v=8bk1P61sG9w

Anônimo disse...

Yúdice,
Aqui em belém existe uma ONG que trabalha diretamente com estas questões. É a SÓDIREITOS, uma turma boa de estudiosos e ativistas. Vc sabia que o Pará é uma rota internacional de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Tenho vários livros sobre o assunto e é aviltante mesmo.
abraços,
Anna Lins