domingo, 8 de maio de 2011

Como um sacerdócio

Sempre fico desconfiado quando alguém diz que sua carreira é uma espécie de sacerdócio. Juízes e, pasmem, políticos gostam de usar esse artifício para dar a entender que são pessoas abnegadas, que renunciaram a uma vida normal e mais fácil em prol do bem alheio, como se essas carreiras implicassem em alguma forma de doação. Um deboche, é claro, considerando que são atividades muito bem renumeradas e tratadas como funções honoríficas, que enchem seus titulares de privilégios.
Também entre nós, professores, essa autoglorificação a título de sacerdócio aparece de vez em quando. Mas vamos combinar que um professor da rede pública, dos ensinos fundamental e médio, bem merece ser considerado um heroi e, quando verdadeiramente apaixonado pela profissão, sacerdote é pouco. Afinal, ganha menos do que um vendedor de CD pirata, trabalha feito um condenado, é maltratado, não ganha reconhecimento e, ainda por cima, apanha dos alunos (a moda do momento).
Não incorrerei no vício que acabei de criticar. Mas direi que, sim, um bom professor precisa apresentar características análogas às de um sacerdote. A docência é uma atividade que envolve doação, de forma inerente. Pode até haver transmissão intersubjetiva de informações sem entrega pessoal, mas não educação.
E hoje em dia, com a garotada chegando cada vez mais cedo e imatura ao ensino superior (aliás, a imaturidade parece ser a grande marca da juventude, de um modo geral, revelada inclusive por uma postura arrogante quanto ao próprio estado de desenvolvimento), mesmo alguém como eu, que não sou um professor da rede pública do ensino fundamental ou médio, preciso volta e meia agir para além de minhas funções óbvias. Observar além do aparente, escutar, administrar.

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É engraçado, mas eu não pretendia dizer nada do que consta acima. Foi apenas um devaneio. Minha intenção era, apenas, dizer que as experiências mais marcantes que tenho como professor não podem chegar ao blog. Algumas delas são engraçadíssimas, outras altamente reflexivas, outras raivosas, outras emocionam até às lágrimas. Mas simplesmente não podem ser comentadas, porque isso de algum modo exporia indevidamente os protagonistas da história. Minha preocupação em preservá-los é tanta que eu não conto a história nem disfarçada, porque sempre haveria uma testemunha mais atenta a fazer relações. E a rádio-cipó é um perigo para a intimidade de qualquer um. A coisa vira uma espécie de segredo de confessionário.
Já pensei em guardar essas histórias e contá-las um tempo no futuro, quando os eventos já não fossem lembrados. Mas nunca anoto nada e as lembranças se esvaem. Talvez seja melhor assim. O que vem ao blog é aquilo em que a experiência me transformou, não ela em si.
Muitas dessas transformações me fazem crescer como pessoa. E isso torna a docência uma experiência singularmente enriquecedora.

3 comentários:

Maíra Barros de Souza disse...

Professor, a lembrança que eu mais guardarei sua não vai ser a da sala de aula. Vai ser uma situação em que passamos em um dos primeiros semestres do curso de penal. Constatei a imensa preocupação e humanidade que tem dentro do seu coração de educador. Como o senhor, também não vou revelar nada da história pra não expor ninguém, mas fica aqui o registro de que a minha admiração pelo senhor se intensificou naquele momento.
Abraços!

Anônimo disse...

Quando o senhor fala "mesmo alguém como eu, (...) preciso volta e meia agir para além de minhas funções óbvias. Observar além do aparente, escutar, administrar.", creio que isso seja um enorme diferencial que deveria servir de norte aos professores de toda(s) a(s) instituição(ões), pois formar alunos como se estivéssemos aplicando testes na Caixa de Skinner é mais fácil do que aplicar valores humanos. É prazeroso sabermos que ainda existem profissionais e seres humanos dispostos a educar, aplicando o conhecimento de uma forma que vá além de transmitir informações através de um quadro em sala de aula.

Yúdice Andrade disse...

Folgo em saber, Maíra, que o episódio mencionado deixou uma opinião tão favorável. Sei que nem todos concordariam comigo.

Experimentamos e tentamos um pouco a cada dia, das 11h49. Nem sempre acertamos, mas penso que a boa fé com que certas atitudes são tomadas já nos ajusta com nossas consciências.