segunda-feira, 23 de maio de 2011

Lutando contra si mesmo

A primeira vez que ouvi falar em "Temple Grandin", há alguns meses, não sabia nem como era a pronúncia correta, que dirá do que se tratava. Depois fiquei sabendo que se trata de uma pessoa e a pronúncia é a do inglês, mesmo ("Têmpol Grêndin"). O que me chamou a atenção foi o fato de a competente atriz Claire Danes ser a protagonista de um filme com esse título e estar sendo elogiadíssima por seu trabalho.

A verdadeira Temple,
em foto deste ano.
 Temple Grandin, telefilme da HBO Films, dirigido por Mick Jackson e lançado no ano passado, conta a história da personagem homônima, que se tornou exemplo de superação porque conseguiu driblar o autismo e frequentar uma escola e uma universidade, alcançando o título de doutora em ciência e aplicando os seus conhecimentos no manejo de animais.
O que o filme explora é o fato de que, por ser autista, o cérebro de Grandin funciona de um modo peculiar, bastante visual, o que permitiu à moça identificar aspectos do comportamento do gado quando posto nos currais para ser vacinado e abatido.
Preocupada em lhes render "algum respeito", já que morrerão para virar alimento, ela desenvolve métodos de manejo a partir de uma infraestrutura que respeita os hábitos naturais desses animais (andar em círculos, sentir-se seguro quando pisa, não gostar de sombras ou reflexos, etc.). Obviamente, não é levada a sério. Mas ela consegue atenção quando fala uma língua que americano entende: dinheiro. Ela argumenta que os empresários do setor gastavam dinheiro pagando peões para lidar com as reses, perdiam tempo nos casos de estouro do grupo e sofriam perdas, p. ex., com animais que se afogavam na piscina de higienização. Usando seu método, os animais andariam em ritmo lento, porém constante, chegando calmamente à plataforma de abate, sem incidentes, sem danos, sem estresse, até o momento de uma morte mais digna.
A duras penas, porque seu autismo e até o fato de ser mulher dificultam que os empresários do setor a escutem, Grandin consegue provar que seu método funciona e, segundo o filme, hoje metade dos estabelecimentos de criação de gado nos Estados Unidos usam em algum nível as ideias por ela desenvolvidas. Isso a tornou célebre, de um modo que não conseguiria se não fosse autista, ou seja, portadora de um distúrbio que compromete a sua interação social.
Merece atenção que, ao ser diagnosticada, aos quatro anos, a recomendação do médico foi interná-la numa instituição manicomial. Sua mãe se recusou a isso e, criando sozinha a filha, submeteu-se a uma vida de ardorosa dedicação, sem contar sequer com o alento de um abraço (Temple não permitia que ninguém a tocasse). A audaciosa decisão faz de sua mãe um exemplo.

Cena da formatura de Temple, em 1970,
na qual ela foi a oradora.
 O filme, apesar de não empolgar (provavelmente por causa da mão do diretor), é muito bom e merece ser visto. A interpretação de Claire Danes é competentíssima, justificando os prêmios que recebeu (Emmy, Globo de Ouro e Screen Actors Guild). Mas a bela Julia Ormond, no papel da mãe, emociona até mais (talvez porque eu tenha visto o filme com olhos de pai).
A sequência final explica porque Temple Grandin é um nome mundialmente famoso entre todos os que se interessam pelo tema do autismo. Hoje referência inevitável, por ter chegado tão longe, a um limite que se duvida que um autista seja capaz de chegar, ela deixa boquiaberta uma plateia de pais desesperados por novas perspectivas para seus filhos ao explicar, ela mesma, que era autista e tudo o que havia conseguido fazer.
Classificado como espécie de transtorno global de desenvolvimento, o autismo compromete as capacidades de comunicação e de socialização do indivíduo, dificultando as suas respostas às influências externas que recebe. Afeta inclusive a linguagem, mas está normalmente associada a inteligências privilegiadas. Há muitas instituições congregando famílias em torno do assunto, buscando inclusão social e melhora na qualidade de vida dos pacientes.

Para saber mais:

4 comentários:

André Uliana disse...

Excelente filme.

Yúdice Andrade disse...

Foi muito instigante, André.

André Uliana disse...

Este foi um filme que me atraiu por duas situações distintas. Já conhecia o trabalho Dra. Grandin há muitos anos, pois trabalhei em atividade ligada a seu campo de pesquisa. Seu trabalho é algo realmente fantástico e revolucionário.
Por outro lado, eu também tenho um filho autista. O tema do filme, obviamente, me chama toda a atenção.
Como o autismo é uma condição que a grande maioria das pessoas já ouviu falar e viu alguma coisa na TV mas, geralmente, não tem um conhecimento mais profundo, considero importante as oportunidades que surgem para trazer à discussão este assunto. Para isso, nada tão bom quanto um bom filme.
Recomendo, também, assistir Rain Man. Outro maravilhoso filme sobre o autismo.

Maria Cristina disse...

Muito oportuna a postagem sobre esse filme que, quando vi, me ficou na cabeça vários dias, pela peculiaridade e, sobretudo, força dessa história. Eu gostaria de ver de novo, pois foi uma surpresa. Também não a conhecia.
Impressionou-me com seu olhar sobre o gado, completamente diferente do olhar comum, especialmente do olhar econômico e tecnológico sobre o aproveitamento de um "recurso". Mesmo quando se trata de um recurso natural, o olhar comum incide sobre um objeto, um meio para nossos fins, nós, os únicos sujeitos no processo. A Dra. Grandin conseguia se colocar no lugar do boi, aproximar-se dele, de sua sensibilidade, como em um diálogo com um agente não humano. Ela desenvolveu seus estudos dentro do sistema econômico capitalista, é claro, procurando mostrar que seus métodos eram produtivos, para criadores até então muito pouco interessados em inovações daquele tipo. Contudo, vemos que ela se preocupava com respeito, dignidade, minorar sofrimento dos animais, tornando-se por isso doutora em Ciência Animal. Seu olhar privilegiado, de aproximação ao animal, tem paralelo com os olhares de pescadores e caçadores de pequena escala, que desenvolvem um profundo conhecimento dos comportamentos dos seres da natureza, seres que eles "estudam", como mais de uma vez ouvi de pescadores. E, como mostram estudos etnográficos sobre saberes tradicionais, não capturam sem determinadas atitudes de respeito, noções de reconhecimento pelas trocas que se estabelecem. Sem idealizações, é claro, vale notar que a tecnologia pretensamente moderna pode ser primitiva e rude, em comparação a complexos conhecimentos de povos que, no entanto, lmitaram e limitam suas intervenções no meio natural às suas necessidades sociais e materiais. A personagem Grandin, vivendo na sociedade da "escassez" e, portanto, da busca da eficiência, enfrentou resistências na busca de uma relação de apropriação humanizada, imbuída do respeito e da consideração dos animais como sujeitos. Ela estava mostrando que a racionalidade econômica não podia excluir as demais racionalidades inerentes a uma relação, não a uma simples predação, como é o caso da pecuária. Afora sua superação esplêndida das limitações do autismo, foram esses aspectos que me chamaram bastante a atenção nesse atraente filme. Valeu essa sua postagem.