Um dos episódios mais grotescos da história criminal brasileira vai completar 10 anos amanhã: o horrendo assassinato do índio pataxó Galdino José dos Santos, ativista da causa indígena que fora a Brasília lutar pelos interesses de seus pares, dormiu em um ponto de ônibus e foi confundido com um mendigo, o que lhe rendeu ser queimado vivo. Leia mais aqui. E isso um dia depois daquele dedicado aos índios.
O caso é emblemático por uma série de motivos: pela violência inconcebível com que praticado; pelo motivo apresentado; pela condição dos criminosos, filhos da classe média alta de Brasília, um deles filho de juiz federal, o que levou a acusações de corporativismo no tratamento que receberam e nas primeiras decisões judiciais. Por fim, pelas enormes liberalidades que os mesmos tiveram no cumprimento de suas penas. Como professor de Direito Penal, asseguro que esse homicídio permite uma valiosíssima discussão em torno do que é dolo eventual e do que é culpa consciente.
Para mim, contudo, a questão mais importante sempre foi a motivação. Os assassinos alegaram que não pretendiam matar, mas apenas brincar, pregar uma peça na vítima. E só o fizeram porque não sabiam tratar-se de um índio; pensaram que era um mendigo.
A emenda sai pior do que o soneto. A explicação escancara o mais infamante desprezo pelo semelhante, que mal se pode conceber. Brincar com a vida alheia? Achar mera diversão atear fogo a uma pessoa que dorme, para vê-la despertar em pânico? E fazer tudo isso porque era um mendigo? Ou seja, um mendigo não se insere na categoria "alguém" — ser humano — de que cuida a legislação penal? Os jovens não se disporiam a queimar um estudante, um político, um comerciário. Mas um indigente pode. A dar uma justificativa dessas, eu preferiria manter-me calado.
Uma década se passou e a turma está em liberdade condicional. Saiba como estão os criminosos hoje lendo aqui. Assim, qualquer coisa que se diga sobre o delito em si já ficou no plano do revisionismo histórico, das teorias antropológicas e das críticas jurídico-judiciárias. Mas há seres humanos com a firme sensação de injustiça. E do outro lado pessoas que, como fazem todos os que deixam o sistema penal, entendem suficiente pôr uma pedra sobre o assunto.
Todavia, não há como sepultar com pedras o caso em questão. Afinal, o trágico acontecimento começou quando Galdino deixou sua tribo para ir à capital federal somar-se à luta pelos direitos dos povos indígenas. 10 anos depois, quase nada se avançou, como mostra a primeira reportagem aqui recomendada. Assim, o germe do infausto continua presente, ameaçando repetir-se. E, de outra forma, a cada dia que passa menos se oferece aos nossos jovens, para que eles cresçam como cidadãos de valor e não se valham de desculpas, quaisquer que sejam, para causar sofrimento, vergonha e horror.
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